Belém (PA), 08.08.2023 - Presidente Lula participa da reunião dos Chefes de Estado e de Governo dos países signatários do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), em Belém (PA). Foto: Ricardo Stuckert/PR Foto: Ricardo Stuckert/PR

Frustração. Essa palavra define o que foi a Cúpula da Amazônia, que reuniu, nos dias 8 e 9 de agosto, os presidentes dos países amazônicos e terminou como uma declaração pífia, sem metas e compromissos concretos para a defesa do bioma e do clima.

A Declaração de Belém, assinada ao final do encontro, foi alvo de duras críticas por parte dos movimentos socioambientais. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), por exemplo, “considera a Carta de Belém frustrante e reivindica metas concretas para a demarcação de terras indígenas”.  Já Claudio Ângelo, pesquisador do Observatório do Clima, em entrevista ao portal Amazônia Real, ironizou: “O Brasil está achando que vai ser o último vendedor de petróleo do planeta”.

Dando as costas para os movimentos sociais e indígenas

A verdade é que Cúpula deu as costas para as reivindicações feitas pelos movimentos sociais, particularmente dos movimentos indígenas, que exigem mais demarcação de terras e a não exploração de petróleo na Amazônia, tal como foi apresentado no relatório elaborado por povos originários e levado à plenária por Toya Manchineri, coordenador geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

A proposta de limitar novas frentes de exploração de petróleo foi defendida apenas por Gustavo Petro, presidente da Colômbia (para saber mais sobre seu governo, leia a entrevista: “Governo Petro, apesar do discurso, defende os interesses do imperialismo e da burguesia que o apoia”), mas ela não foi mencionada na Declaração de Belém. Já a proposta brasileira de zerar o desmatamento Amazônia até 2030 também ficou de fora do documento por objeção da Bolívia, país que é vice-líder em desmatamento do bioma, ficando atrás apenas do Brasil (veja mapa abaixo).


Em seus discursos, Lula  tem defendido o desmatamento zero e um tipo de desenvolvimentismo “verde”, responsabilizando os países centrais do capitalismo pela catástrofe climática e cobrando reparações no financiamento de um fundo de conservação da Amazônia. Mas, para além da retórica, o governo brasileiro tem planos para a Amazônia que envolvem a exploração de combustíveis fósseis, a construção de uma ferrovia para o agronegócio e até a revitalização da BR-319. Sem exageros, podemos batizar o conjunto deste projeto de “pacotão do fim do mundo”. Vamos explicar o porquê.

Um planeta à beira da catástrofe

Em tempos de  negacionismo científico, nunca é demais lembrar que o aquecimento global é causado pelos gases de efeito estufa, que retêm o calor do nosso Sol na atmosfera. Esses gases, como o CO2 (dióxido de carbono), são liberados quando queimamos combustíveis fósseis, como carvão e petróleo.

Evidências de que estamos prestes a cruzar limites irreversíveis  do sistema Terra gritam alto, a todo o momento e no mundo inteiro. O mês de julho foi marcado por uma sequência de temperaturas recordes e a média global  alcançou 17.23°C. É a primeira vez que a temperatura média global passa de 17°C, segundo o serviço europeu de monitoramento climático, o Copernicus.

O Sul da Europa e áreas da América do Norte e da China chegaram a registrar calor de 45°C a 50°C, provocando incêndios florestais, muitas mortes e problemas de saúde, particularmente entre a população mais vulnerável, trabalhadores pobres e não-brancos. Na Cordilheira dos Andes chilena foram registrados 38.9° C em pleno inverno!

Além disso, desde março deste ano, a temperatura média da superfície dos oceanos também tem batido recordes. Em 30 de julho, a temperatura da superfície dos oceanos atingiu 20,96°C, superando o recorde anterior, de 20,95°C, estabelecido em março de 2016, também de acordo com o observatório da União Europeia.

Esse é um problema extremamente grave. Os oceanos são fundamentais para regular o clima do planeta. Eles absorvem o calor, são o maior sumidouro de carbono da Terra, produzem metade do oxigênio e controlam os padrões climáticos.

Desde 1850, a temperatura média global aumentou em 1.1°C e, com as emissões no ritmo atual, é inevitável que o mundo chegue ao cenário de 1,5ºC (estabelecido como um limite drástico) ainda na próxima década. Mas o que acontece se cruzarmos esse limite?

De acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), em um cenário de aquecimento em 1,5ºC, as ondas de calor seriam comuns no mundo, as chuvas torrenciais e os furacões aumentariam cerca de 7%, as safras de milho teriam 10% de perda e o gelo no Ártico reduziria em 15%.

A única maneira de não cruzarmos esse limite é a redução drástica do consumo de combustíveis fósseis. Segundo a própria Agência Internacional de Energia, o mundo não poderia autorizar mais nenhum projeto fóssil, se quisermos ter a chance de manter o aquecimento global em 1,5ºC.

Governos capitalistas: cegos diante das evidências científicas

Mas todos os alertas da Ciência lembram o mito de Cassandra, da mitologia grega, cujas profecias sobre o futuro não eram acreditadas por ninguém. Os governos capitalistas insistem em ampliar a exploração dos combustíveis fósseis. A começar pelo imperialismo estadunidense, onde Biden tenta emplacar o  projeto Willow, um dos maiores planos de exploração de petróleo da história, no Alasca.

A abertura de novas fronteiras petrolíferas também é uma realidade em Gana, Gâmbia, Quênia, Uganda e Zimbábue. Na Amazônia, a Bolívia, cujas reservas de gás estão chegando ao fim, lançou novos projetos de exploração, que incluem a busca por petróleo na Amazônia. Peru, Equador e Venezuela também têm seus planos ativos. A recente descoberta de reservas de petróleo na Guiana atiçou o Brasil para explorar a Margem Equatorial.

Claro, a maior parte destas explorações é realizada por multinacionais ou em associação entre elas e as empresas estatais (de capital misto, na verdade).

Sonhar com petróleo na Amazônia é um pesadelo

Recentemente, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) não autorizou a exploração do poço 59, na Margem Equatorial do Brasil, constatando corretamente que a Petrobrás (empresa solicitante) não comprovou que a exploração seria segura. Sequer um estudo da dinâmica hidrológica (a influência nos rios, no processo de vaporização e precipitação de chuvas) foi apresentada pela petroleira. Apesar de tudo, o governo não desistiu e Lula disse que quer “continuar sonhando [com a exploração na Margem Equatorial]”.

Grande parte da Margem Equatorial está localizada na Amazônia Legal (que abrange a totalidade dos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins e parte do Maranhão) sendo caracterizada por extensos manguezais, que se estendem desde o Amapá, passando pelo Pará, até chegar aos lençóis maranhenses, compondo, no total, mais de 80% de todos os manguezais brasileiros.

Também abriga a maior faixa contínua de manguezais do planeta. Nestes manguezais  existem ainda 23 unidades de conservação federais, que ocupam 85% desse ecossistema, principalmente Reservas Extrativistas Marinhas, que asseguram o sustento de inúmeras comunidades de pescadores tradicionais.

Além de representarem um enorme “viveiro” para inúmeras espécies marinhas (plantas e animais), os manguezais desempenham um papel fundamental na captura de CO2, um dos principais gases de efeito estufa (GEE). Não por acaso, na “Amazônia Azul”, como é chamada essa região, cada hectare de manguezal contém duas vezes mais carbono que a mesma área de floresta equatorial. Ou seja, os manguezais amazônicos capturam o dobro de carbono quando comparados à floresta equatorial.

Além de lançar toneladas de GEE na atmosfera, agravando o aquecimento global, o risco de explorar petróleo na região  é uma ameaça objetiva à própria existência da Amazônia Azul, aos seus delicados sistemas ecológicos e ao seu povo que lá reside e suas culturas.

Ressuscitando o desastre de uma “transamazônica”

Outro objetivo, menos alardeado pelo governo Lula, seria a reconstrução da BR-319, que liga Porto Velho (RO) a Manaus (AM).  Lula disfarça e diz que a rodovia precisa ser construída com responsabilidade para evitar boicote ao agronegócio brasileiro. “O que nós precisamos é dar garantia à sociedade do que a gente vai fazer. E por que é delicado? Porque o mundo hoje está muito mais exigente. O mundo, hoje, está cobrando muitas coisas e o Brasil é um grande exportador de alimentos para o mundo e nós não queremos que haja qualquer veto nas exportações brasileiras por conta de uma atitude precipitada nossa”, discursou o presidente.

Já o Ministro dos Transportes, Renan Filho (MDB), revelou em entrevista à Rede Amazônica que a BR-319 será reconstruída com garantias de sustentabilidade ambiental.

O problema é que não há condição alguma de reconstruir a rodovia com “sustentabilidade ambiental”. A história da Amazônia é uma confirmação disto. A BR-319 foi uma das rodovias construídas pela ditadura militar, nos anos 1970, para promover a ocupação humana “racional” dos “espaços vazios”. A ditadura tinha por  objetivo formal garantir a integração por meio da construção de rodovias como a Transamazônica, ligando a região Norte ao Nordeste; a rodovia Belém-Brasília; a BR-368, ligando Acre e Rondônia; e a Cuiabá-Santarém, ligando o Mato Grosso à Transamazônica e ao porto de Santarém.

Também encampava um programa de colonização, na faixa de 10 km de cada lado das novas rodovias. Posteriormente, em 1971, foi realizada uma grande operação de federalização das terras, incluindo 100 km de cada lado das rodovias federais na Amazônia.

O desmatamento da Amazônia – em vermelho – acompanha as estradas

Abrindo trilhas para o agro e a destruição do meio ambiente

Os novos eixos rodoviários contrariavam a forma tradicional de circulação pela Amazônia, até então realizada pelos rios, e abriram novos acessos aos recursos naturais da região e para os grupos econômicos nacionais e internacionais. Milhares de hectares de terras foram vendidos a grandes grupos empresariais e caíram nas mãos de especuladores de terras. Províncias minerais, como a Serra dos Carajás, foram abertas à exploração para grandes grupos econômicos nacionais e estrangeiros.

As consequências sociais e ambientais foram desastrosas. Populações indígenas foram exterminadas, seringueiros assassinados (em 1987, Chico Mendes ficou mundialmente famoso, quando foi a uma conferência do Banco Internacional de Desenvolvimento pedir para que instituição não financiasse a pavimentação da BR-364, entre Porto Velho e Rio Branco), e o chamado arco do desmatamento começou a se formar.

Uma rápida olhada em imagens de satélite mostra o impacto da abertura das estradas na Amazônia. É possível ver a estrutura “espinha de peixe”, um padrão espacial que mostra a cicatrizes transversais às rodovias e, daí, outros pequenos cortes, também transversais. A destruição de 20% da Amazônia brasileira ocorreu justamente onde as estradas foram abertas. A região onde se localiza a BR-319 é uma das mais preservadas da Amazônia, bem no coração da floresta. E a floresta só se manteve em pé graças a estrada não ter sido pavimentada nessas últimas três décadas.

Outro projeto do governo em prol do agro é a chamada “Ferrogrão”, uma ferrovia, com 933 quilômetros, que promete reduzir o preço do transporte da soja que vem do Mato Grosso. O plano é construir a ferrovia ao lado da  BR-163 (Cuiabá-Santarém) até um porto em Miritituba (PA). Daí, a soja seguiria de navio para portos da Ásia, África e Europa.

Um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais mostra que a ferrovia pode desmatar 49 mil km², em 48 cidades, uma área que é 64% superior à devastação recorde da Amazônia, em 2022 (de 17,7 mil km²), e maior que o estado do Rio de Janeiro. A devastação deve emitir 75 milhões de toneladas de carbono. Além disso, e não menos importante, vai lançar uma corrida pela grilagem da terra em áreas entre o Mato Grosso e o Sul do Pará, que ainda não foram impactadas pela expansão da soja.

É por esses motivos que a  Cúpula da Amazônia foi uma farsa. A verdade é que nenhum governo que salvar a Amazônia. Mas isso foi apenas o preâmbulo das frustrações ainda mais pesadas que estão por vir. Imaginem como será a Amazônia em 2025, ano em que vai sediar a  30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP-30), que será realizada em Belém (PA). Até lá, não dá pra esperar de braços cruzados. É preciso ir à luta!