Os dois últimos livros de Mike Davis, traduzidos no Brasil (O monstro bate à nossa porta. A ameaça global da gripe aviária, Record, 2006; e Planeta Favela, Boitempo, 2006) são uma análise lúcida e precisa das condições sociais e ambientais (melhor diríamos, sócio-ambientais, pois são intrinsecamente relacionadas) que nos esperam no futuro das próximas décadas.

Davis, atualmente professor de História na Universidade da Califórnia, Irvine, vem escrevendo notáveis obras em que faz uma análise crítica das condições urbanas contemporâneas. Em Cidade de quartzo (Scritta, 1993), contou a história de Los Angeles, metrópole pós-moderna, por excelência, nascida do nada, no deserto, para tornar-se uma cidade para automóveis, espalhada como a mais extensa mancha urbana do mundo. Em Holocaustos coloniais (Record, 2002), analisou as ondas de fome do século XIX e suas relações com o clima, o mercado mundial e as expansões dos impérios europeus na Ásia e África.

Agora, em 2006, com dois livros quase simultâneos, ele se debruçou sobre dois dos mais terríveis cavaleiros do apocalipse: a pobreza e a peste.

É difícil não sentir um arrepio apocalíptico diante dos cenários catastróficos que se combinam: explosão de hiper-urbanização favelizada em megacidades, aquecimento global e pandemia. A fome, a doença, a guerra e a pobreza potencializam-se num complexo espantoso de desastres e tragédias anunciadas.

Em algum momento de meados do ano de 2007, ocorrerá (ou já ocorreu…) um fato inédito na distribuição da população planetária, pela primeira vez na história da humanidade há mais pessoas vivendo em cidades do que no campo. Esse crescimento urbano se concentra em megacidades, especialmente na periferia pobre, em condições de crescente degradação das condições sanitárias e ambientais. O desmatamento e a poluição são o resultado de um modelo industrial de consumo de combustíveis fósseis e de disseminação atmosférica dos derivados de carbono que fizeram dos Estados Unidos o maior espoliador perdulário dos recursos naturais globais. A entrada crescente da China na economia de mercado, no entanto, irá trazer nos próximos anos um montante ainda maior de degradação ecológica.

O complexo do agrobusiness que pressupõe a agricultura extensiva sob controle de grandes empresas com uso de sementes transgênicas, a criação de animais confinados em enormes quantidades, a destruição das formas de pequena agricultura e criação de animais, o desmatamento e a destruição de espécies, a globalização financeira, o poder crescente dos monopólios e o empobrecimento de camadas cada vez maiores de populações em expansão demográfica em regiões urbanas são um conjunto de fatores interligados.

No ano da Revolução Francesa havia no mundo cerca de vinte milhões de pessoas vivendo em cidades, hoje são mais de três bilhões. Em 1950, existiam 86 cidades no planeta com mais de um milhão de habitantes, hoje são 400, em 2015 prevê-se que serão 550.

A grande crise presente e futura do capitalismo, o verdadeiro “choque de civilizações”, como Davis parodia a fórmula de Samuel Huntington, é entre as crescentes populações urbanas faveladas e o sistema que as exclui não apenas da prosperidade, mas até mesmo da sobrevivência, pois passam cada vez mais a serem consideradas como “humanidade excedente” e, portanto, populações descartáveis.

As megacidades do século XXI são um contínuo urbano-rural em que o campo não precisa mais migrar para a cidade, pois esta migra para o campo, num “urbanismo difuso” de “novas conurbações como teias policêntricas sem núcleos tradicionais nem periferias fáceis de reconhecer”. E esse fenômeno será cada vez mais característico da periferia, do hemisfério sul e do Oriente. Na China existem 166 cidades com mais de um milhão de habitantes, na Índia 35 e apenas 9 nos Estados Unidos. Só na Ásia haverá nas próximas décadas mais de dez cidades de mais de vinte milhões de habitantes.

Na China onde, segundo Mike Davis, está ocorrendo a “maior revolução industrial da história”, há também uma revolução urbana, com mais de duzentos milhões de camponeses migrando para as cidades desde os anos de 1970.

Mas a China é uma exceção, a regra da grande expansão urbana planetária tem sido o inesperado fenômeno de uma “urbanização sem indústria”. Ao contrário do estereótipo clássico de uso intensivo de capital nas cidades e de mão de obra no campo, estaria ocorrendo um despovoamento do campo e uma desindustrialização das cidades.

Os PAE (Planos de Ajustes Estruturais) do FMI, especialmente após a “crise da dívida” nos anos 80, ajudaram a desmontar os Estados nacionais, ampliaram a informalidade econômica, agravaram a crise agrária mundial e incharam as cidades do terceiro mundo, especialmente na África e Ásia. Lagos, capital da Nigéria, por exemplo, tinha 300 mil habitantes em 1950, hoje passam de 13 milhões.

Bombaim (cujos indicadores apontam para tornar-se a maior cidade do mundo com mais de trinta milhões em 2025), Delhi, Daca, Xangai, Jacarta, Karachi, Kinshasa, mas também México, São Paulo, Lima, são os modelos urbanos do futuro das megacidades.

Em todas, o crescimento urbano é sinônimo de favelização, habitação precária, sem direitos de posse e moradia garantidos, sem serviços sanitários ou de qualquer outro tipo, mas com um florescente “mercado invisível” de locações, subornos, extorsões. Hoje, no mundo, segundo os dados da ONU, um bilhão de habitantes são favelados. A conferência Habitat-2002, em Nairóbi, Quênia, patrocinada pela ONU, definiu favela (em inglês, slum; em francês, bidonville) como a habitação em que ocorre: excesso de população, moradias pobres ou informais, acesso inadequado à água potável e condições sanitárias e insegurança na posse da moradia.

Mike Davis denuncia os projetos surgidos sob a égide do Banco Mundial, a partir dos anos 70, como uma forma de desobrigar os estados nacionais das suas responsabilidades, substituindo o seu papel por projetos reformistas de “melhorar a favela ao invés de substituí-la”. A pulverização das ações particulares e isoladas reforça a urbanização irregular, a privatização das invasões e à perda na economia de escala na construção de casas.

A concessão de títulos de propriedade, como defende o peruano Hernando de Soto, e outras formas de promoção do “micro-capitalismo”, passam a considerar o defeito virtude ao elevar a informalidade econômica a equivalente do “empreendedorismo” capitalista”, mas, iniciativas como micro-crédito ou titularização de propriedade de terrenos favelados insalubres e sem serviços urbanos básicos, ao invés de trazerem consigo um potencial de enriquecimento social tendem a aumentar a divisão social interna nas populações, romper solidariedades sociais e iniciativas de reivindicações coletivas além de tirar o Estado do foco da exigência de uma política habitacional, substituído pelo semi-assistencialismo burocratizante e parasitário da imensa maioria das ONGs.

Esse modelo de crescimento desordenado das cidades inverte todos os princípios do planejamento urbano: preservação dos espaços abertos, separação entre residências, condições ambientais não nocivas e leva a conseqüências destrutivas como desastres agudos e crônicos.

Entre os danos agudos, 1984 é um dos anos horríveis: 500 mortos em Cubatão (explosão de tubulações), dois mil em San Juanico no México (explosão de instalações de gás), e ao menos dez mil mortos em Bophal, na Índia (explosão da fábrica de embalagem de inseticida da Union Carbide).

O trânsito também mata mais nas megacidades do terceiro mundo, onde dois terços das vítimas são pedestres ou ciclistas e a explosão no número dos automóveis, motos, caminhões e outros veículos (só os riquixás de tração humana são cerca de três milhões na Ásia), acompanha, e às vezes ultrapassa, a taxa de crescimento dos humanos, trazendo a poluição atmosférica e constituindo-se em uma das grandes fontes das emissões de derivados de carbono que está fazendo das cidades chinesas as mais poluídas do mundo.

O lixo sem tratamento, e particularmente os dejetos humanos são um dos problemas graves da megaurbanização caótica das cidades contemporâneas. Num capítulo intitulado sem rodeios “Viver na merda”, Davis afirma que “o excesso de excrementos é a contradição urbana primordial”. Na Índia, 700 milhões de pessoas defecam ao ar livre. Doenças relacionadas à ausência ou ao mau tratamento das águas, esgotos e lixos provocam cerca de 75% das doenças humanas.

Como escreve Davis, as cidades precisam de alianças com a natureza para reciclar dejetos por meio de cinturões verdes periféricos, o que nos faz lembrar a tese da ecologia marxista, que afirma ter sido a privação dos campos ingleses de seus adubos naturais após a revolução industrial e sua conseqüente urbanização que levaram, ao mesmo tempo, à poluição dos rios e à carência de fertilizantes na agricultura, com o resultado de uma ruptura no “metabolismo da humanidade com a natureza” e à crescente dependência inglesa dos fertilizantes como o guano peruano e o salitre peruano-chileno. Sem resolver essa contradição, as cidades se transformam em amontoamentos crescentes de lixo e seres humanos misturados.

Qualquer catástrofe natural como um terremoto, um tsunami ou uma epidemia, atingem, sobretudo, os mais desfavorecidos, mesmo no interior dos EUA, como mostrou eloqüentemente o caso de Nova Orleans.

E é sobre as epidemias que Mike Davis dedica seu outro livro quase simultâneo ao Planeta favela, chamado ameaçadoramente de O monstro bate à nossa porta.

A gripe espanhola foi, segunda a OMS, “o evento patológico mais mortal da história da humanidade”. A estimativa tradicional de 1% da humanidade morta nessa época (cerca de 20 milhões, dos quais mais de 12 milhões só na Índia), que foi calculada por um estudo em 1927 de E. O. Jordan, foi qualificada pelos últimos estudos de demógrafos médicos, numa conferência na Cidade do Cabo, em 2001, como “ridiculamente baixos”, devendo ser duplicados ou até quadruplicados.

A ameaça atual da gripe aviária poderia se tornar algo semelhante? Há um consenso crescente de que a única dúvida é a extensão exata da próxima pandemia, a sua inevitabilidade parece ser compartilhada por quase todas as autoridades científicas.

A gripe comum normalmente já mata, associada a outras doenças, especialmente as enfermidades respiratórias bacterianas (pneumonia, tuberculose) cerca de um milhão de pessoas por ano. Mas a gripe aviária é um tipo especial, cuja existência em aves selvagens é endêmica e que, através das aves domésticas, poderá alcançar a espécie humana sem que tenhamos qualquer imunidade adquirida. O resultado seria como o de uma gripe comum entre populações indígenas sem contato com a civilização.

As causas da ultrapassagem da barreira interespécies e da chegada da gripe aviária aos seres humanos são, para Davis, indissociáveis da chamada “revolução na criação de animais”, ocorrida após os anos de 1980 e que levaram a uma concentração inédita de animais em grandes fazendas. A explosão demográfica na Terra não é apenas dos seres humanos e de seus automóveis, mas também dos animais de criação (cerca de 10 bilhões de frangos e 50 bilhões de animais de diferentes tipos de gado), que são em maior número e produzem muito mais dejetos orgânicos do que os seres humanos (uma megafazenda de suínos em Milford Valey, nos EUA, por exemplo, produz, segundo Davis, mais esgoto do que a cidade de Los Angeles). A criação de porcos em fazendas com mais de cinco mil animais, entre 1993 e 2003, subiu de 18% para 53% do total do rebanho suíno estadunidense.

A densidade de produção de frangos e suínos e a sua separação da agricultura vêm criando as condições de um “cadinho pandêmico”, enquanto o desmatamento e o aumento de contato dos humanos com a vida selvagem vem colocando em contato “nichos biológicos” que podem contaminar com novas doenças. Esta seria a causa tanto da AIDS, devido ao consumo humano de macacos africanos, como da SARS (Síndrome respiratória aguda grave), vinda do consumo de pequenos animais selvagens nos mercados chineses.

Esta última doença, ocorrida em 2003, e que não deve ser confundida com a gripe aviária, teve como epicentro a cidade chinesa de Guangdong, “a maior plataforma de fabricação para exportação do mundo”. A combinação de alta urbanização, poluição atmosférica, criação intensiva de aves junto com porcos levou esta e outras cidades do sudeste asiático a se tornarem o elo mais fraco na saúde pública global.

Na Tailândia, de onde vem a maior empresa criadora de frangos da Ásia, a CP (Caroen Popphand), a sua influência política levou a sucessivas tentativas de minimização do problema e depois a um extermínio monstruoso de aves. Desde o início de 2004, mais de 120 milhões de frangos foram abatidos no sudeste asiático.

A maior produtora de aves da Europa na Inglaterra, também já sofreu, em 2007, uma contaminação de suas criações e repete-se, após a crise da vaca-louca, o abatimento em massa de animais.

Davis menciona vários autores que estudaram o “imperialismo biológico”, como Alfred Crosby, e cita as três transições históricas que William McNeil identificou, em 1976, na co-evolução entre os seres humanos e os micróbios: 1) a agro-urbana na revolução neolítica; 2) a criação de um Ecúmeno Eurasiano na época da antiguidade clássica; e 3) o surgimento do mundo moderno no século XVI. A pergunta que fica pendente, segundo Davis, é se a globalização neoliberal constituiria uma quarta transição?

As condições para isso estariam dadas com a conquista da agricultura pelo agrocapitalismo com a revolução na criação de animais dos anos 80, com a revolução industrial no sul da China, com o surgimento das megacidades do Terceiro Mundo e com a ausência de um sistema de saúde pública internacional.

Se ocorrer a pandemia, o cenário que poderia repetir-se, em escala global, é o da peste pneumonia em Surat, na Índia, em 1994: quarentenas obrigatórias, isolamento de cidades, fuga das classes médias (a maior parte dos médicos seriam os primeiros a fugir), caos, rebeliões, pilhagem, forte repressão militar. Como as vacinas e o anti-viral oseltamivir (Tamiflu) seriam escassos, só os ricos, a elite governante e, especialmente, as forças policiais e militares receberiam os remédios.

Tais recursos continuam escassos porque quase todos os governos recusam-se a quebrar as patentes e a retirar o monopólio da sua produção das grandes empresas farmacêuticas, como a Roche, que produz o Tamiflu.

O setor farmacêutico é “o mais lucrativo dos EUA” e possui o lobby mais poderoso. Como afirma Márcia Angell, citada por Davis, as dez maiores empresas da indústria farmacêutica na lista da Fortune 500, em 2002, juntas ganharam mais lucros do que todas as demais 490 corporações da lista!

Vacina e antibióticos são remédios menos lucrativos, o da gripe então é muito pouco apreciado pela indústria, pois são difíceis de produzir, ficam obsoletos e sofrem flutuações de demanda. Os melhores remédios para a indústria não são para doenças infecciosas, presentes, sobretudo, nos países pobres, mas para doenças crônicas como problemas cardíacos, câncer, diabetes, hipertensão e os destinados para melhorar o humor e o “estilo de vida” como o Viagra e os anti-depressivos. Por isso, a indústria farmacêutica gasta 27% da sua receita em marketing e apenas 11% em pesquisa.

A opinião majoritária da comunidade científica internacional vem alertando sobre as terríveis conseqüências da contaminação humana pela gripe aviária. Da mesma forma, essa comunidade anuncia oficialmente a partir do estudo da ONU sobre as condições do clima no planeta que o aquecimento global é resultado da ação humana e que suas conseqüências, nas próximas décadas, tendem a se tornarem catastróficas.

Ao delinear estes cenários catastróficos na realidade urbana global, Mike Davis tem sido acusado de não apresentar saídas. Ao contrário dessa opinião, creio que Davis aponta sim que há uma saída potencial em curso: a recusa das populações pobres, faveladas e excluídas de serem exterminadas. Isso se expressa em revoltas, como Soweto, “a maior das rebeliões de favelas”, na África do Sul, ou em Cidade Sadr, em Bagdá, onde os habitantes passaram a chamar sua rua principal de Rua Vietnã. Tal perspectiva de rebeliões e combates em zonas urbanas extremamente pobres e hiper-povoadas está levando o Pentágono a uma preparação especial para as chamadas “operações militares em terreno urbanizado”, consideradas como o “futuro da guerra”.

Como vêem mostrando Falujah, Gaza, Cité Soleil, Cidade Sadr, de uma forma direta, e metrópoles como Rio de Janeiro, São Paulo, México, Bogotá, e outras cidades, de uma forma indireta, mas não menos mortífera, a “guerra de baixa intensidade” já começou, e o maior número de mortos, como sempre, contam-se entre os favelados, os pobres, os negros, os jovens.

As editoras Record e Boitempo merecem cumprimentos pela publicação dos livros de Davis no Brasil. Esta última, entretanto, na edição de Planeta Favela, incluiu um posfácio de Ermínia Maricato que, embora traga discussões importantes sobre as especificidades brasileiras e questione inclusive o cálculo de Davis de 36,6% da população brasileira vivendo em favelas, assim como o uso de uma bibliografia quase somente em língua inglesa, parece servir basicamente como uma defesa política dos governos petistas. É curiosa essa defesa política da gestão da prefeita Erundina em São Paulo e do atual governo Lula, ambos criticados por Davis, pois Maricato considera as críticas de Davis “pouco circunstanciada”, mas também se dedica a defender “no varejo” a política habitacional de Erundina ou aspectos das políticas sociais do governo Lula, sem levar em conta que a análise de Davis condena tais governos por sua submissão mais geral, “no atacado”, aos ditames da política financeira global, por manterem o pagamento das dívidas públicas e, assim, inviabilizarem qualquer saída estrutural para a crise do Estado e do investimento público, fortalecendo, ao contrário, os mecanismos de tutelização, fragmentação e cooptação dos movimentos sociais.

*(Historiador-USP e membro do Conselho Editorial da Revista Outubro)