Não faltam na imprensa econômica e corporativa brasileira elogios à postura empreendedora de Israel, muitas vezes chamada de “startup nation” [Nação startup – em tradução livre]. O termo se popularizou após a publicação, em 2009, do livro Nação empreendedora: O milagre econômico de Israel e o que ele nos ensina (“Start-up nation: The Story of Israel’s Economic Miracle“), publicado por aqui pela editora Évora. Seus autores, Dan Senor e Saul Singer, são, respectivamente, um ex-consultor de política externa dos Estados Unidos e um ex-editorialista do The Jerusalem Post. Fato que por si só é suficiente para nos fazer questionar sobre as intenções do livro.

Contudo, os números parecem confirmar: Israel hoje é um dos principais países em concentração de startups do mundo, especialmente no que diz respeito à inovação e tecnologia. Segundo o Índice Global de Inovação 2021 da Bloomberg, Israel ocupa a sétima posição no mundo entre as nações inovadoras. Segundo a Forbes, as startups em Israel praticamente dobraram os investimos recebidos em 2021 chegando à cifra de 17,8 bilhões de dólares. A ocupação sionista tem, inclusive, seu próprio “Vale do Silício”: o Silicon Wadi, nos arredores de Tel Aviv.

A explicação romântica dos liberais e repetida nos arredores da Faria Lima é que o mérito de Israel são os méritos naturais da cultura judaico-israelense, preponderantemente voltada para o trabalho árduo e disciplinado, que os levou a “superar os conflitos e desafios políticos” e a construir um “livre mercado e única democracia da região”, como gostam de dizer alguns comentaristas por aqui. Uma cultura empreendedora, por assim dizer.

Nada mais falso do que isso.

Os liberais adoram explicar as coisas pelo mérito, pelo esforço, pela vocação, pelo o dom, enfim, por qualquer coisa que fuja das raízes históricas do processo (e Fukuyama decretando o fim da História é o exemplo inesquecível desse medo liberal). E na explicação do caso de Israel, o colocam quase como uma nação predestinada ao sucesso graças à sua vocação natural. E aqui as coisas ficam ainda mais suspeitas.

Parte importante na propaganda do projeto de sionista de ocupação, colonização e limpeza étnica da Palestina é a sua justificativa revivendo passagens míticas do Pentateuco (Torá judaica ou parte do Antigo Testamento na Bíblia cristã). Segundos os mitos judaico-cristãos, ao povo escolhido de Deus (os judeus, obviamente) estava reservada a terra prometida (Canaã – região da Palestina), terra que “mana leite e mel” (Deuteronômio 26:9). Vejam a própria escolha do editor ao colocar o subtítulo do livro como “milagre econômico de Israel”. Não deve ser um acaso. E essa ideia, da Palestina como terra prometida por Deus aos judeus, é um argumento forte para a ocupação sionista da região. Não à toa grandes parcelas de cristãos pelo o mundo – vide os evangélicos neopentecostais no Brasil – apoiam cegamente a ocupação colonial na região única e exclusivamente pela narrativa Bíblica. A bandeira de Israel sempre presente entre os apoiadores de Bolsonaro também não é um acaso.

Economia de guerra

Bom, mas se a explicação para a inovação sionista não é a vocação natural de sua cultura ou a predestinação de Deus, qual é então?

A explicação para o grau de “investimento em inovação” por parte de Israel está na explicação do próprio projeto colonial de ocupação e limpeza étnica da região. Projeto que só pode ser sustentado, obviamente, por uma forte intervenção estatal e uma economia de guerra. Segundo dados do Banco Mundial, entre 1967 e 1994 os gastos de Israel com assuntos militares nunca ficaram abaixo de 10% do PIB. Hoje esse investimento está na casa dos 5,6% do PIB (12% de todo gasto governamental), valor ainda acima da média mundial. Os EUA, para se ter uma ideia, investem 3,7% e o Brasil 1,4%. Além disso, o projeto militar sionista obriga que todos jovens – quase sem exceções – se alistem nas Forças Armadas (Força de Defesa de Israel – IDF, em inglês). E são três anos de alistamento para os homens e dois para as mulheres. Obviamente, o custeio disso tudo fica por conta do Estado.

E dentro da estrutura das forças armadas sionistas aglumas unidades se destacam. A primeira delas é a Unidade 8200, especializada em serviços de inteligência, como espionagem, interceptação de sinais e criptografia de dados. Unidade que, segundo os dados vazados por Edward Snowden no escândalo de espionagem em massa nos EUA, tem uma parceria com a NSA (Agência Nacional de Segurança, em inglês).

A Unidade 9900, responsável por coleta de imagens aéreas e por satélite, é outro grande celeiro tecnológico. Israel é hoje líder mundial em tecnologias de análise de imagem e, segundo dados do Financial Times, o investimento público e privado nesse tipo de tecnologia praticamente dobrou entre 2017 e 2018, atingindo mais de 500 milhões de dólares.

Por fim, é preciso mencionar a Unidade 81, conhecida como uma unidade secreta de tecnologia da Divisão de Operações Especiais. Muitos dos veteranos e ex-militares que passaram por essas unidades – especializadas em tecnologia – acabam migrando para o mundo corporativo e, especialmente, das startups. É o que aponta um levantamento feito pelo Calcalist, um dos grandes jornais econômicos de Israel. O jornal é enfático ao dizer que os veteranos da Unidade 81 são responsáveis pelo atual boom tecnológico de Israel.

Toda essa situação faz com que seja formado, por demanda militar, um bolsão de engenheiros e cientistas que cedo ou tarde acabam sendo absorvidos pelo mundo corporativo e levando consigo a expertise militar.

Não por acaso muitas dessas startups estão relacionadas a tecnologias como comunicações, inteligência artificial, cibersegurança, reconhecimento facial, veículos não tripulados e drones: são tecnologias com grande chance de serem vendidas para as Forças Armadas que, como já vimos, são muito bem financiadas em Israel. É um grande filão para ex-militares se aventurarem no mundo corporativo desenvolvendo esse tipo de tecnologia. E não só: Israel é também um grande exportador de tecnologia militar – tecnologia devidamente testada na repressão e limpeza étnica contra os palestinos. Vale mencionar a Latin America Aero & Defense – LAAD, conhecida como “Feira da Morte”, realizada no Brasil para o comércio de armas. Tecnologias como a “metralhadora do Rambo” – adquirida pela PMSP, ou os “caveirões” do Bope-RJ, ou o Pegasus – software de espionagem que Carlos Bolsonaro queria adquirir – são todas tecnologias militares produzidas em Israel.

Mesmo a indústria farmacêutica e química, responsável por quase 10% das exportações em Israel segundo a Organização Mundial do Comércio, tem forte relação com a economia de guerra colonialista. Além da medicina militar, há inúmeras denúncias feitas por organizações internacionais de que prisioneiros palestinos são usados como cobaias vivas dos fármacos produzidos por lá.

Além das forças armadas como grande compradora, o fenômeno das startups sionistas deve ser explicado também pelo maciço investimento do governo na área. Segundo dados da própria Autoridade para Inovação em Israel (IIA), seu orçamento em 2019 foi de mais de 550 milhões de dólares e, desse total, 154 milhões (28%) foram destinados a fundo perdido para as startups. A meta para o orçamento de 2022 é que essa cota suba para os 35%. Dinheiro que acaba se convertendo em uma espécie de investimento indireto em tecnologia militar.

Velha propaganda sionista

Portanto, nem predestinação, nem vocação, nem livre mercado, nem democracia. O que está por trás do desenvolvimento tecnológico em Israel é o seu projeto de ocupação colonial e de limpeza étnica na Palestina, sua posição de enclave militar ocidental no mundo árabe, e os fortes investimentos estatais nessa economia de guerra. Investimento direto em tecnologia militar ou que vai acabar produzindo tecnologia militar indiretamente, pelo forte peso das Forças Armadas na economia de Israel. São esses os fatores que criam condições favoráveis para a proliferação de startups no país. Checkpoints, drones, blindados, espionagem, tudo isso é previamente testado contra a resistência palestina antes de ser vendido ao mundo como “tecnologia de segurança”. E muitas dessas tecnologias, quando não atingem seus fins militares, acabam sendo vendidas aos civis como “serviços inovadores”.

Qualquer tentativa de explicar o fenômeno das statups em Israel a partir de uma suposta vocação moral não passa de propaganda – mesmo que não tenha essa intenção – do projeto colonial sionista. A mesma lógica está por trás da suposta ajuda humanitária enviada por Israel à Brumadinho durante o crime da Vale, ou do financiamento do “bloco de Tel Aviv” na Parada do Orgulho em SP em 2018 (política chamada de pinkwashing pelo movimento). No fundo, tal discurso não passa da velha propaganda sionista que se pinta como “povo esclarecido e democrático em meio a selvageria árabe”. Israel se vende como a dádiva de Deus na terra, desempenhando um papel quase mítico de salvação da civilização (ocidental), como os procuradores no presente de um futuro high tech. Cultivar no deserto é provar de que daquela terra mana leite e mel. Aos poucos, tudo se encaixa na propaganda escusa do projeto sionista. Em um paralelo com o termo usado pelo movimento LGBTQ, o que Israel pinta de si sobre a tecnologia é uma espécie de “tech washing“, tentando disfarçar seus crimes contra os palestinos sob um manto de inovação e disrupção. Crimes sistemáticos contra a humanidade não podem ser justificados com o pretexto da inovação e desenvolvimento. E nos parece que as explicações por aqui apenas repetem esses argumentos, ou por ingenuidade ou por alinhamento a esse projeto etnocida.

Por fim, como está muito na moda falar em inovação e disrupção, vale a reflexão sobre o papel do desenvolvimento tecnológico nisso tudo e como a lógica do capital o distorce. Os liberais por aqui saúdam o cenário em Israel mas fecham os olhos para todas as atrocidades. Vale a inovação pela inovação, tal como coloca o capitalismo? Mesmo que seja às custas de uma limpeza étnica? A resposta óbvia, lógica e moral, deve ser não. Mas não é isso que o capitalismo reserva para a inovação tecnológica. Ao invés da busca por liberdade, o capitalismo põe o desenvolvimento tecnológico à serviço da destruição do planeta e do próprio ser humano. Desconfiem de quem defende a técnica pela técnica ou a inovação pela inovação. Se não estiverem atreladas a um projeto político de sociedade e liberdade humana, podem produzir monstros. E é isso que o “milagre” da inovação em Israel nos mostra ao não passar de uma maldição para os palestinos e tantos outros povos que vivem sob a mira dessas armas. A tecnologia tem o universo a nos oferecer, mas para mostrar todo seu potencial deve ser libertada do jugo do capital.