O advogado José Eduardo Gibello Pastore, mestre em Direito das Relações Sociais e especialista em cooperativismo, publicou artigo no jornal Estado de São Paulo no dia 1º de abril, intitulado “Direitos do trabalho e ao trabalho”. Nele, o advogado defende o direito ao trabalho sem carteira assinada, criticando a forma como o ministério do Trabalho e Emprego lida com a questão.
Para defender o direito ao trabalho sem emprego, utiliza exemplos de atividades de ponta, como a tecnologia da informação, cujos técnicos percebem remuneração mais vantajosa prestando serviços por contratos do que numa relação de emprego forma, com carteira assinada. Argumenta, também, que hoje existem mais trabalhadores no setor informal do que com carteira assinada. E diz, ainda, que os Auditores Fiscais do Trabalho, ao “forçarem” determinadas empresas a registrarem seus empregados, criam empregos precários em detrimento de trabalhos sem emprego que poderiam ser mais dignos. Por fim, afirma que os AFTs não têm competência para definir o que se configura ou não uma relação de emprego, o que seria uma prerrogativa apenas da Justiça do Trabalho.
Nada mais equivocado. Pastore ignora que os Auditores Fiscais do Trabalho são os únicos agentes que vão ao local de trabalho, que são testemunhas oculares das situações encontradas e fiscalizadas. A Justiça do Trabalho baseia-se em provas e evidências, mas, raramente, é testemunha ocular do fato. Portanto, assim como os AFTs, porém, em maior escala, está sujeita a cometer enganos.
Defensor do cooperativismo, quiçá das cooperativas de trabalho, o advogado cita exceções como se fossem regra. A grande maioria dos empregos informais mal sustentam a sobrevivência das pessoas. São, sim, subempregos, em alguns casos assemelhando-se a trabalho escravo ou degradante. O noticiário, felizmente, cada vez mais denuncia esse tipo de situação.
Para se opor aos argumentos de José Eduardo Gibello Pastore, uma pesquisa da Market Analisys Brasil, há poucas semanas, confirmou que 91% dos brasileiros querem que o Estado continue tutelando os direitos dos trabalhadores. Isso não é gratuito, tem razão de ser. Os direitos dos trabalhadores são violentamente desrespeitados todos os dias, seja em empregos formais, seja em relações de trabalho sem emprego. Não é porque a globalização trouxe uma tendência, que temos que engoli-la goela abaixo sem questionamentos. Pelo contrário, vários ícones da globalização já foram e ainda serão desmitificados, pois nem tudo é assimilado por todas as culturas para o bem.
O trabalho sem emprego, a autonomia da vontade do trabalhador, em nossa sociedade, em nosso mercado de trabalho, soam quase como utopia. Que bom seria se tivéssemos tanta escolha. Mas isso não é real. A nós, nos parece que o advogado Pastore fala de outro mundo, de outra sociedade, que não a brasileira. E defende interesses que não são os dos trabalhadores, nem do Estado. Seria interessante, portanto, que ele deixasse claro a que interesses está vinculado.
Diretoria do SINAIT – Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho
Leia, abaixo, o artigo publicado no Estadão de 1º/04/2006.
01/04 – Estadão
Opinião – Direitos do trabalho e ao trabalho
José Eduardo Gibello Pastore*
Pode-se dizer que a reflexão sobre as relações de trabalho se divide em dois grandes grupos: o dos estudos voltados para o trabalho subordinado, ou seja, em que o trabalhador exerce atividades na condição de empregado – o direito do trabalho -, e o dos estudos voltados para o trabalho exercido fora desse contexto – o direito ao trabalho.
O direito ao trabalho personifica o trabalho fora do contexto da relação capital x trabalho. É fenômeno relativamente novo, fomentado pela globalização dos mercados. No entanto, as reflexões sobre o direito ao trabalho costumam ser superficiais e equivocadas como, por exemplo:
– O trabalhador que exerce o trabalho sem emprego está na marginalidade, equiparando-se a um escravo;
– o trabalho sem emprego deve ser combatido, visto que representa em si um retrocesso ao século 19, quando o capital desumanamente explorava o trabalho;
– o único sistema que deve ser privilegiado, capaz de solucionar todos os problemas de inclusão social, é o trabalho tutelado pelo Estado, com a desconsideração ou eliminação sumária de outros modelos.
O mais interessante é que os representantes do poder público, constituídos para fomentar o trabalho e o emprego, só se focam no estímulo ao emprego, em detrimento do trabalho sem emprego. O Ministério do Trabalho e Emprego, não obstante sua denominação incluir dois fenômenos distintos, desenvolve exclusivamente estudos na busca incessante do “emprego“, ignorando o “trabalho sem emprego“. A Delegacia Regional do Trabalho está dominada pela idéia fixa da busca do “pleno emprego“, lavrando contra algumas empresas autos de infração que, muitas vezes, destroem o trabalho digno em prol do emprego precário. Quem tem competência para declarar se uma relação é de emprego ou não é o juiz do Trabalho, e não o fiscal do Trabalho.
Por sua vez, o Ministério Público do Trabalho não leva em conta o sentido do vocábulo “trabalho“ em sua denominação, uma vez que está restritivamente voltado à identificação de postos de emprego.
O “trabalho sem emprego“, que está no campo do direito ao trabalho, e não do direito do trabalho, é um fato social. A Recomendação 193 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) já identifica o “trabalho associativo“, por exemplo, como um dos modelos de trabalho sem emprego. O trabalho sem emprego privilegia principalmente o princípio da autonomia da vontade do trabalhador, em detrimento do princípio do trabalho tutelado. Não são poucos os juízes do Trabalho que têm trilhado este caminho.
Como se sabe, o número de trabalhadores sem emprego é muito maior que o dos que estão empregados. Nem por isso essas atividades devem ser equiparadas à escravidão ou ao subemprego. Equivoca-se quem considera “trabalho informal“ sinônimo de “trabalho precário“. Aliás, alguns economistas gostam de se posicionar assim. O trabalho sem emprego pode ser exercido informalmente, podendo ser até mais digno que o trabalho com carteira assinada. O direito ao trabalho de forma alguma pressupõe trabalho escravo.
O direito ao trabalho exercido por trabalhadores na área de tecnologia da informação, por exemplo, não os empurra para condição subumana. Eles percebem em média R$ 12 mil mensais, ao passo que, se fossem registrados, com a suposta proteção da carteira assinada e do sindicato da categoria, sua remuneração não passaria de R$ 3 mil, isso com “todos os direitos garantidos“. Neste caso, é exatamente a não-presença da Carteira de Trabalho assinada que lhes garante vida socioeconômica mais digna e vantajosa financeiramente. Isso enerva o poder público, mas é uma realidade que está cada vez mais evidente.
O direito ao trabalho, como dito, é fato social. Trabalhar é um direito fundamental, anterior ao fato de se trabalhar com registro em carteira. É uma escolha que antecede o direito do trabalho, em conformidade com a interpretação sistemática da Constituição federal de 1988. O trabalho sem emprego, digno, justamente remunerado, devidamente reconhecido e socialmente almejado por muitos é também outro fato social. Que atentem os agentes públicos para isso, sob pena de, em pouco tempo, estarem pregando suas teorias apenas para camelos e beduínos, no mundo desértico do trabalho com emprego.
*José Eduardo Gibello Pastore, advogado, é mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP