Redação
Como a tese da onda conservadora flerta com o mito da democracia racial
Desde o resultado do primeiro turno das eleições de 2014, através de um artigo de Guilherme Boulos que defendia a tese de um crescimento do pensamento reacionário e conservador no Brasil, muitos ativistas honestos tomaram para si essa tese, acreditando que no país havia uma escalada crescente da burguesia e os trabalhadores estavam na defensiva.
Esse pano teórico de fundo, gerando uma falsa polarização para o segundo turno entre Dilma (PT) e Aécio (PSDB), como se de um lado tivesse o representante dos trabalhadores e do outro lado dos ricos, fez com que a última eleição presidencial fosse a mais disputada dos últimos anos. O que realmente foi, mas a disputa foi longe de ser um conflito entre diferentes classes sociais. Na verdade, o que estava em jogo era o nome de quem jogaria a conta da crise econômica sob as costas dos trabalhadores. E por pouco, Dilma ganhou.
O voto de castigo em Aécio, vindo de muitos trabalhadores também descontentes com as três gestões anteriores do governo petista, não foi por acordo programático com o que o PSDB defendia, até mesmo porque, se fosse isso, bastaria votar no PT, pois ambos os partidos defendem os mesmos interesses.
Esse voto se deu porque os trabalhadores que foram em enormes caravanas para Brasília em 2003 assistir a posse de Lula escutaram promessas de um amanhã cheio de esperanças. Mas ao se depararem com a realidade, já em 2004, com a reforma da Previdência e a invasão no Haiti, a esperança se tornou em pesadelo. Um pesadelo parcelado com cada ataque, que tanto Lula tanto Dilma amordaçavam com projetos mínimos de administração da pobreza. E hoje, Temer (PMDB), dá continuidade aos ataques defendidos pela presidenta afastada.
Compreender isso é enxergar qual o pano de fundo que os defensores da chamada “escalada onda conservadora” tentam esconder. Há um enorme sentimento na classe trabalhadora de revolta, aberto em junho de 2013, onde os debaixo (negros, mulheres, LGBTT’s, sem tetos, desempregados, juventude periférica) não aceitam serem governados pelos de cima (PT, PSDB, PMDB, ambos representantes dos grandes empresários e latifundiários). Esses, ao verem seus poderes ameaçados, apostam todas suas fichas na repressão e criminalização dos movimentos sociais e lutadores. Afinal, como explicar a aprovação de Dilma, quando ainda era presidenta, da Lei Antiterror que na prática colocará ativistas na cadeia?
Greve dos garis no Rio em 2013
Restringir luta de classes às eleições
Um dos pilares que sustenta a tese da onda conservadora é o resultado eleitoral de 2014, com a eleição de parlamentares racistas como Coronel Telhada (PSDB) e homofóbicos como Marco Feliciano (PSC), ou até mesmo o machista e corrupto Eduardo Cunha (PMDB), transformando o Congresso em um verdadeiro show de horrores representados por velhas raposas que sempre buscaram arrancar os direitos dos trabalhadores pelos dentes.
A idéia de que há um crescimento do pensamento reacionário em nosso país, por conta do resultado das eleições, é no mínimo equivocada. Parte do pressuposto de que as eleições burguesas, com suas cartas já marcadas e totalmente antidemocráticas (como no caso da própria cláusula de barreira, que infelizmente contou com o apoio do PSOL), agem como árbitras da luta de classes. Desta forma, o crescimento do número de greves, ocupações, enfrentamento nas ruas contra a polícia, se minimizaria frente ao resultado das urnas.
Nos EUA, por exemplo, no ano de 1968, marcado por massificados protestos negros em defesa de direitos civis e também da juventude contra a Guerra do Vietnã, o carrasco republicano e declaradamente anticomunista, Richard Nixon, foi eleito à presidência do país. Segundo os idealizadores da tese da onda conservadora, o sentimento que prevalecia nos Estados Unidos de Martin Luther King Jr., de Malcolm X, dos protestos antibélicos, dos Panteras Negras, se encaixaria aos moldes da “escalada da onda conservadora”? Ou então, a eleição de Nixon é fruto do sentimento defensivo dos trabalhadores que não viam forças para lutar?
Acreditamos que a resposta é “não” para ambas as perguntas. A eleição de Nixon foi uma resposta à ofensiva que os setores explorados e oprimidos estavam realizando nos Estados Unidos. Afinal, nenhum burguês racista quer ver negros se armando contra a violência policial e chamando os bairros pobres a se organizarem por conta própria.
No Brasil de 2014, não foi muito diferente. Com mobilizações gigantes por todo o país, desde a poderosa greve dos Garis no Rio de Janeiro antes do Carnaval, até as grandes manifestações que denunciavam os gastos excessivos da Copa do Mundo, o que prevalecia no ar era totalmente o contrário de um sentimento defensivo dos trabalhadores.
Os explorados e oprimidos estavam na ofensiva, fazendo com que a burguesia começasse a temer a nova situação em aberto do país. Não é à toa o forte aparato militar que o governo Dilma garantiu para os jogos da Copa, chegando a oferecer a Alckmin (PSDB-SP) a Força Nacional para reprimir os metroviários em greve. O número de greves, que só em 2013 cresceu 58%, continuou aumentando.
Era essa a realidade que a burguesia buscava enfrentar. Mas não podiam mais contar cegamente com a reeleição de Dilma, cuja taxa de popularidade no primeiro semestre de 2014 caía de 36% para 31% de brasileiros avaliando seu governo como bom, sendo que 52% confiavam na presidenta Dilma.
E por mais que Dilma tenha conseguido ser reeleita no segundo turno, dificilmente sua aprovação voltaria a crescer muito. Mesmo assim, bancou as MP’s 664 e 665 antes mesmo de seu segundo mandato iniciar. Não foi por menos que sua rejeição aumentou, chegando a ter menos de 10% de aprovação.
Em uma projeção para as eleições de 2018, os dois candidatos que dividem a liderança é Marina Silva e Lula. Uma mulher negra e ex-seringueira e um ex-operário nordestino estão na frente das pesquisas em um possível confronto eleitoral. Mesmo ambos sendo candidatos da burguesia, passam de longe de serem uma expressão de uma onda conservadora.
Enxergar o mundo através do resultado das eleições, como se isso fosse o termômetro da luta de classes, é partir de uma compreensão de que a mudança na vida dos trabalhadores passa e se reflete exclusivamente através das urnas. Assim como os EUA de 68, marcados pelas grandes mobilizações negras e antiguerras não se resume ao desastrado resultado eleitoral que levou Nixon à presidência, por que no Brasil de 2014, marcado pelas greves dos garis cariocas e das mobilizações contra os gastos excessivos das obras da Copa do Mundo ficaria marcado e restrito a apenas o resultado das eleições?
A tese da Onda Conservadora flerta com o Mito da Democracia Racial
A única resposta ao questionamento acima é que vivemos durante décadas marcados pelo Mito da Democracia Racial, onde as lutas lideradas pelos negros e negras são invisibilizadas. O fator decisivo que se abriu em 2013, que não é considerado pelos entusiastas da defesa de que os trabalhadores estão sendo atacados e ficando calados, é que todas as grandes mobilizações dos trabalhadores eram dirigidas pelos setores oprimidos.
Desde o “Cadê o Amarildo?”, que ecoou em diversas quebradas e morros, denunciando a violência policial e seu caráter racista, até as ocupações de escolas públicas, lideradas por secundaristas que não vinham representados pelas velhas entidades (UNE, UMES) e muito menos nutriam ilusões nos aparatos do Estado, como a PM, a negrada sempre esteve à frente das lutas. Seja lutando em defesa da escola pública, do emprego, contra a violência policial e racista do Estado e da polícia.
No início do ano passado, professores do Paraná ocuparam a assembleia legislativa, fazendo com que os corruptos parlamentares da base de apoio do tucano Beto Richa (PSDB) saíssem escoltados. No mesmo ano, em São Paulo, mais de 200 escolas públicas e estaduais foram ocupadas contra a reorganização das escolas, que na prática, seria um ataque aos bairros negros de São Paulo por fecharem suas escolas e fazer com que a juventude negra – para estudar – tivesse que percorrer uma longa distância e ainda ter que enfrentar salas de aula superlotadas. Essa mobilização levou, em São Paulo, à queda do Secretário de Educação, Hermann, e a desmoralização do governador Alckmin, que foi obrigado pelo movimento dos secundaristas a recuar.
Um ano depois, aprendizes e comunidade ocuparam a Fábrica de Cultura do Capão Redondo por 51 dias, defendendo uma Fábrica de Cultura democrática, onde a comunidade pudesse participar das decisões.
Recentemente circulou pelas redes sociais um vídeo que mostrava a abordagem truculenta da polícia a um jovem negro, agredindo-o, e em resposta a população presente na praia se voltou contra os policiais os expulsando a cadeiradas do local.
E o que isso tem a ver com o Mito da Democracia Racial?
A atual conjuntura de lutas, com negros e negras à frente dos processos, está em sintonia com o crescimento da autodeclaração racial, onde a negrada, como expressão do avanço da consciência racial,ao se deparar com as contradições da sociedade, começa a não só buscar alternativas de organização contra a opressão mas também contra a exploração. Um trabalhador negro quando percebe que somente seus pares são os primeiros demitidos, ou um estudante da periferia que vê só sua escola na quebrada ser fechada, percebe que o que está ocorrendo no país é uma combinação de ataque, onde os negros trabalhadores são os principais alvos.
O avanço da consciência racial vem em uma conjuntura que se possibilita o debate da luta de raça e classe, como no caso da greve dos garis cariocas que calaram a boca dos que defendiam que o racismo já havia acabado.
Adriana Beringuy, técnica do IBGE, em entrevista ao jornal El País sobre o aumento do número de autodeclarados negros no Brasil nos últimos tempos, afirma que esse percentual não tem relação com o aumento da taxa de natalidade entre os negros. “O fator mais determinante é a autodeclaração”, afirma.
Operários do Comperj fecham ponte Rio-Niterói em 2015
A autodeclaração faz com que todos percebamos que os ataques são muito maiores aos setores oprimidos. Não é à toa que em muitas marchas contra a bizarra PL 5069, tiveram à frente delas as mulheres negras, assim como também nos atos contra a redução da maioridade penal, por compreenderem que são as mulheres pretas as principais vítimas dos ataques da burguesia.
E todos esses casos citados, e compreendemos que há outros mais, passam “despercebidos” pelos defensores da tese da “onda conservadora”. Como se só fossem válidas as lutas que tivessem à frente homens, brancos e heteros. O levante da juventude negra nas periferias, expressada nas ocupações de escolas e Fábrica de Cultura, as grandes marchas contra os ataques do carrasco Eduardo Cunha (PMDB) às mulheres, os atos contra os crimes lgbttfóbicos, as ocupações e greves, para os que acreditam que a classe trabalhadora está na defensiva, não é o suficiente para afirmar que a cada dia o conflito entre as classes se aprofunda, apontando dois caminhos. Ou uma saída que beneficie os ricos, ou uma que atenda as necessidades dos explorados e oprimidos.
Obviamente que a segunda alternativa não será conquistada sem resistência dos ricos, que através de seus governos, impõem ajustes fiscais e leis repressivas, como a própria Lei Antiterror.
O que ocorre é que para os defensores da chamada “onda conservadora”, todas essas mobilizações dirigidas pelos setores oprimidos, principalmente pelos negros, não entra em suas cartilhas de “lutas legítimas”. Durante a história, as mobilizações dirigidas pelos negros e negras foram invisibilizadas ou simplesmente tratadas como uma “contribuição” às lutas gerais. Do contrário, como explicar que em uma conjuntura como a nossa, onde greves e ocupações estão ocorrendo em todos os cantos do país, onde a juventude negra se enfrenta diretamente contra a polícia racista, e ainda ser considerado como “onda conservadora”?
Esse é um questionamento que certamente os defensores da ideia de que os trabalhadores estão na defensiva, apáticos, passivos diante dos ataques, não responderão. E é simplesmente pelo fato de a tese da onda conservadora flertar com o mito da democracia racial, onde não só nossas demandas são deixadas de lado, como também as experiências dos processos de lutas em que nos envolvemos e ousamos dirigir.