Antes mesmo de começarem os jogos, o espírito olímpico já se espalhava pelo país e inaugurava uma nova modalidade que já começava popular: o apagamento de tocha. Em inúmeras cidades, o circo montado para a passagem da tocha olímpica foi recebido por protestos contra o descaso com a saúde e a educação, principalmente no estado que recebeu o evento.
Aberta oficialmente as Olimpíadas, os protestos contra o governo Temer foram parar dentro das arenas e estádios. Evidente que, cercado por um megaesquema militar e restrito pelos preços dos ingressos (ainda que muitos bem abaixo do que se costuma cobrar nos estádios de futebol), as manifestações foram individuais. Menos a vaia a Temer. A vaia é coletiva, democrática.
As Olimpíadas trouxeram um sentimento contraditório. As pessoas, e os trabalhadores, sobretudo, rechaçavam os preparativos para os jogos. Sabem dos interesses das grandes empresas, empreiteiras e multinacionais, que estão por trás do megaevento. Os trabalhadores e o povo pobre do Rio sabem das agruras que enfrentaram por conta disso, das remoções forçadas e da militarização absoluta a que foram submetidos.
Mas, para além do absurdo contraste social retratado por fotos como a de Técio Teixeira, do coletivo RUA, as Olimpíadas trazem algo que a população, os trabalhadores e o povo pobre amam: o esporte. O ser humano em sua imanente busca por superação. A ânsia e a necessidade de ultrapassar os próprios limites. Não é à toa que Moreno dizia que, no regime capitalista, poucas pessoas têm a possibilidade de viver uma vida realmente plena. Os artistas, os cientistas e os esportistas.
Assim como a arte, o esporte não é um espaço de alienação como diz certo senso comum, difundido principalmente entre a esquerda. É uma atividade de realização humana. Assim como no teatro grego, na arena do esporte também se revelam os dramas humanos. A arrogância, prepotência, a busca por reconhecimento custe o que custar (o que depois certamente se converterá em polpudos patrocínios e muita grana). Mas também traz cenas inesquecíveis e emocionantes, como a da corredora da Nova Zelândia, Nikki Hamblin, ajudando sua competidora, a norte-americana Abbey D’Agostini, após as duas se chocarem na pista.
Cenas como a recusa do judoca egípcio El Shehaby em cumprimentar o lutador israelense Or Sasson. Uma atitude execrada pela mídia hipócrita, pelo Comitê Olímpico Internacional e pela própria delegação egípcia por supostamente atentar contra o “Fair Play”, mas certamente comemorada como um gesto de resistência e verdadeira solidariedade pelos palestinos (leia artigo de Soraya Misleh). A Palestina que, inclusive, foi ovacionada pelo público, assim como os esportistas refugiados.
Brasil: o ouro é dos negros e das mulheres
As Olimpíadas do Rio terminaram com o ouro inédito do futebol masculino, conquistado após uma sofrida campanha e um elenco pago a peso de ouro e tratado a pão de ló pelas empresas patrocinadoras. Mas não é exagero dizer que esses foram os jogos das mulheres. A seleção feminina, com Marta à frente, realizou uma bela campanha, driblou o machismo dos comentaristas, o descrédito e o descaso da própria CBF e emocionou milhões que torceram como há muito não torciam.
A judoca Rafaela Silva, primeiro ouro do Brasil nas Olimpíadas, enfrentou o machismo e o racismo em seu tortuoso caminho da Cidade de Deus ao posto mais alto do pódio. Já o mineiro Maicon Siqueiro, obrigado a dividir o trabalho de servente de pedreiro aos treinos, conquistou o bronze no taekwondo. Trajetória que guarda certa semelhança com a do líbero do vôlei Serginho, filho de lavradores de café e morador de Pirituba, zona norte de São Paulo.
Isaquias Queiroz, já o maior nome da canoagem no Brasil com três medalhas, nasceu numa família pobre no interior da Bahia. Enfrentou anos de descaso da Federação Brasileira de Canoagem a tal ponto que esteve por um triz em largar o esporte. Origem também parecida com a do conterrâneo Robson Conceição, de Salvador, ouro no boxe.
Histórias individuais de força e superação, como a imprensa diz? Muito mais do que isso. Uma pequena mostra da potencialidade que tem o país se o esporte fosse realmente levado a sério.
Para se ter uma ideia, o nome que está à frente do Ministério do Esporte é o de Leonardo Picciani, membro do clã dos Picciani no Rio. Filiado ao PMDB, esteve à frente na defesa de Dilma em seu partido na votação do impeachment na Câmara, até desembarcar do barco furado do PT e assumir a pasta já no governo Temer. Essa mesma lógica fisiológica se reproduz nos estados e municípios, onde as secretarias de esporte são balcões de troca e venda de favores políticos.
Quem se dedica ao esporte como profissão está fadado a enfrentar uma vida de precariedade, mendigando patrocínio para sobreviver. Ou ao programa de marketing das Forças Armadas, que paga um soldo de R$ 3 mil para esportistas já consagrados com a esperança de os verem batendo continência no pódio.
O país não tem uma política pública voltado ao esporte. Muito menos uma política de base que incentive crianças, adolescente e possíveis atletas. Soa hipócrita, assim, a meta do COB de fazer o país chegar ao 10º lugar no rol de medalhas, figurando entre as principais potências.
Mas o que essas Olimpíadas tiveram de tão especial? O esporte é representação dos muitos e complexos aspectos humanos. Um deles é a resistência. A recusa a sobreviver às injustiças e determinadas condições impostas. Entre os que mais sofrem com a falta de políticas públicas e os sucessivos cortes do Estado, estão os negros e as mulheres. É assim na Saúde, na Educação, e é assim também nos Esportes. Um privilégio de poucos num país tão desigual. Negros e mulheres que ainda enfrentam o racismo e o machismo cujo extremos se concretizam no feminicídio e no genocídio da juventude negra.
Desta forma, quando Rafaela Silva, Isaquias, Robson Conceição, sobem no pódio, ou até mesmo quando nossas jogadoras de futebol brilham em campo, estão, por que não, praticando um ato de resistência. Algo que o governo, os políticos, as multinacionais e a lógica do sistema capitalista não conseguiram impedir.