Redação
Um dos aspectos mais questionados pelo “vendaval oportunista”, que após a queda do Muro de Berlim varreu os partidos políticos que se reivindicavam de “esquerda”, é a questão do partido leninista.
Na medida em que o “socialismo real” havia “fracassado” e que “a democracia (burguesa)” adquiria um “valor universal”, a maioria desses partidos acelerou seu rumo oportunista de adaptação à estratégia eleitoral e eminentemente parlamentar. Evidentemente, se o que o novo horizonte de “radicalizar a democracia” impunha era a tarefa de “conseguir votos”, para assim obter mais e mais cadeiras no parlamento, não só não era mais necessário, mas chegava a ser pernicioso o afã de construir partidos leninistas, isto é, operários, revolucionários, internacionalistas, de combate. Era suficiente construir partidos que funcionassem e se aperfeiçoassem como “máquinas eleitorais”, movendo-se sempre no terreno “do possível”.
Este processo de negação do marxismo e, mais especificamente, do leninismo tomou a via da adaptação à democracia burguesa e adquiriu diversas formas ideológicas. Uma delas foi o velho e conhecido “apartidarismo”.
Todo tipo de “novas teorias” e de “teóricos” pós-modernos e horizontalistas, com argumentos mais ou menos “sofisticados”, alistaram-se para reforçar a velha cruzada contra a influência “dos partidos” no movimento sindical e social, principalmente contra os partidos leninistas.
Ser “militante” de um partido “leninista” tornou-se sinônimo de anacronismo, de “falta de compreensão” dos “novos tempos” que se abriram entre 1989-1991. Em oposição a isso, ser “apartidário” passou a estar na moda. Recrudesceu, assim, o estigma contra o “militante de um partido”, contra as “bandeiras partidárias” nas manifestações e até mesmo contra a “simbologia” (na verdade, contra as tradições) dos partidos operários e socialistas.
Muito foi escrito sobre este assunto. A intenção deste texto não é, portanto, apresentar nada “novo”, mas resgatar a posição de V. I. Lenin, fundador do bolchevismo, sobre o tema. Nesse sentido, existe um texto de sua autoria, provavelmente pouco conhecido, que data de dezembro de 1905, intitulado O partido socialista e o revolucionarismo sem partido[1]. Nele, Lenin discute o caráter do apartidarismo e explica qual deve ser a atitude dos comunistas em relação a esta ideologia e sua tarefa nas “organizações não partidárias” (de tipo sindical).
A Revolução Russa de 1905, como não poderia deixar de ser, levantou novos problemas e fenômenos políticos para os marxistas. Entre esses problemas estava o surgimento dos soviets (conselhos populares): organismos de frente única que as massas exploradas criaram e fortaleceram no calor da luta revolucionária; algo sem precedentes. Nos soviets, os partidos políticos atuavam abertamente, burgueses e operários, reformistas e marxistas, embora as decisões fossem sempre tomadas de maneira autônoma, coletiva e democrática pelas massas, pertencessem ou não a esses partidos políticos.
Os bolcheviques respeitavam a autonomia dos soviets e dos sindicatos em geral. Essa atitude, por outro lado, não podia significar qualquer forma de abstenção política. Desse problema surgiu a necessidade de compreender e se posicionar diante da ideologia “apartidária” que começou a tomar forma com o desenvolvimento da luta de classes.
Lenin, que nessa época defendia a fórmula programática da “ditadura democrática do proletariado e do campesinato”, entendeu o “apartidarismo” como expressão inevitável do caráter democrático-burguês da Revolução Russa:
“O caráter bem delimitado da revolução [democrático-burguesa] em desenvolvimento dá origem, de forma completamente natural, a organizações sem partido. Todo o movimento em seu conjunto, inevitavelmente, adquire a marca do apartidarismo externo, uma aparência de apartidarismo […]“[2]
Desse ponto de vista, ele explica as razões para o surgimento deste “fenômeno”:
“O apartidarismo não pode deixar de ser uma palavra de ordem da moda, porque a moda marcha impotente atrás dos acontecimentos e, como fenômeno “habitual” da superfície política, aparece precisamente uma organização sem partido, democracia sem partido; movimento grevista sem partido, revolucionarismo sem partido.”[3]
Compreendendo o caráter desse processo, Lenin dedica seus esforços para combater a ideia apartidária como uma ideologia reacionária, e para explicar sua adequação aos interesses da burguesia: “A burguesia não pode deixar de tender ao apartidarismo, [pois] a ausência de partidos entre aqueles que lutam pela libertação da sociedade burguesa implica a ausência de uma nova luta contra essa mesma sociedade burguesa”[4].
Dessa forma, Lenin argumentava contra aqueles que afirmavam que o apartidarismo, por se tratar de uma posição aparentemente “neutra”, expressaria de maneira mais fiel os “interesses do movimento”, contra aqueles que, de maneira mesquinha, defendiam os “interesses” de “seus” partidos. O revolucionário russo revela a falsidade desta afirmação:
“Em uma sociedade baseada na divisão em classes, a luta entre as classes hostis se transforma inevitavelmente, em determinada etapa de seu desenvolvimento, em luta política. A luta entre os partidos é a expressão mais abrangente, completa e específica da luta política entre as classes. O apartidarismo significa indiferença diante da luta dos partidos. Mas essa indiferença não é equivalente à neutralidade, à abstenção na luta, porque na luta de classes não pode haver posições neutras […] Por isso, permanecer indiferente diante da luta não significa, na verdade, afastar-se ou abster-se da luta nem ser neutro. A indiferença é o apoio tácito ao mais forte, àquele que domina.”[5]
Em seguida, refere-se às condições materiais das quais surgem esse tipo de teorias e “teóricos”:
“A indiferença política não é nada mais que a saciedade política. Aquele que está satisfeito é ‘indiferente’ e ‘insensível’ diante do problema do pão de cada dia; mas aquele que tem fome será sempre um homem ‘de partido’ diante dessa questão. A ‘indiferença e a insensibilidade’ de uma pessoa diante do problema do pão de cada dia não significa que ela não necessite de pão, mas sim que para ela o pão está sempre assegurado, que nunca lhe falta, que está bem acomodada no ‘partido’ dos saciados.“[6]
Portanto, aqueles que atacavam os partidos revolucionários eram, em primeiro lugar, “[…] liberais, representantes dos pontos de vista da burguesia, [que] odeiam o espírito socialista de partido e não querem ouvir falar de luta de classes”[7].
Isso é assim porque, para Lenin, “na sociedade burguesa, o apartidarismo é a forma hipócrita, dissimulada, passiva, de expressar a adesão ao partido dos saciados, daqueles que dominam, dos exploradores”[8].
E mais: “O apartidarismo é uma ideia burguesa. O espírito de partido é uma ideia socialista. Essa tese é aplicável, em geral, a toda a sociedade burguesa”[9].
Lenin, a partir desse raciocínio, conclui que:
“O partidarismo rigoroso é sequela e resultado de uma luta de classes altamente desenvolvida. E, ao contrário, em benefício de uma ampla e aberta luta de classes, é necessário promover um partidarismo rigoroso. Por isso, o partido do proletariado consciente, a socialdemocracia, combate sempre e com toda a razão o apartidarismo, e se esforça, invariavelmente, para criar um partido operário socialista fiel aos princípios e bem coeso.“[10]
E reforça a ideia de que a intervenção dos revolucionários nos sindicatos e em outras organizações “sem partido” é útil, em primeiro lugar, à própria luta de classes, pois, “[…] o partidarismo rigoroso é uma das condições que transformam a luta de classes em uma luta consciente, clara, precisa e fiel aos princípios”[11].
Enquadrando-se nessa concepção, a tarefa dos militantes dentro das organizações não partidárias é “em primeiro lugar, aproveitar todas as possibilidades de estabelecer nossos próprios contatos e de difundir nosso programa socialista íntegro”[12].
Evidentemente, a condição dessa participação é:
“Salvaguardar a independência ideológica e política do partido do proletariado é a obrigação constante, invariável e incondicional dos socialistas. Quem não cumpre essa obrigação, deixa de ser socialista nos fatos, por mais sinceras que sejam suas convicções ‘socialistas’ (socialistas em palavras).”[13]
Ao mesmo tempo, a inserção sindical dos comunistas “somente é admissível com a condição de resguardar completamente a independência do partido operário e desde que todo o partido em seu conjunto controle e dirija obrigatoriamente seus membros e grupos de ‘delegados’ nas associações ou soviets sem partido”[14].
A luta contra a ideia burguesa do “apartidarismo” é uma característica do leninismo. Tem a ver com a defesa da construção do partido revolucionário, operário e centralista democrático, ferramenta indispensável para a tomada do poder pela classe operária e seus aliados, e para a construção do socialismo internacional. Para Lenin, apenas no partido comunista é possível realizar a síntese de todas as formas de luta do proletariado (econômica, ideológica, política) e, assim, lutar pela conquista do poder.
“Apenas o partido comunista, se é realmente a vanguarda da classe revolucionária; se abarca os melhores representantes dessa classe; se é formado por comunistas conscientes e leais, que tenham sido educados e temperados pela experiência de uma luta revolucionária tenaz; se este partido conseguiu vincular-se indissoluvelmente a toda a vida de sua classe e, por meio dela, a todas as massas de explorados, e ganhar completamente a confiança de classe dessas massas; apenas um partido como esse é capaz de dirigir o proletariado na luta mais implacável, decisiva e final contra todas as forças do capitalismo.“[15]
Esses ensinamentos de Lenin são fundamentais para guiar nossas ações na atualidade. Sua vigência é talvez maior do que quando foram escritos. O trotskismo, o continuador legítimo do marxismo-leninismo nos nossos dias, tem o mérito de ter mantido vivas essas lições e tradições sobre o partido revolucionário em geral, e sobre a relação partido comunista – movimento de massas, em particular. É por isso que nos permitimos concluir essas notas com as palavras que Trotsky escreveu sobre o tema em 1923:
“Os comunistas não temem a palavra ‘partido’, porque o seu partido não tem nem terá nada em comum com os outros partidos. Seu partido não é um dos partidos políticos do sistema burguês, é a minoria ativa e com consciência de classe do proletariado, sua vanguarda revolucionária. Portanto, os comunistas não têm nenhuma razão, nem ideológica nem organizativa, para se esconder atrás dos sindicatos. Não os utilizam para manobras de bastidores. Não rompem com eles quando estão em minoria. Não perturbam de nenhuma forma o desenvolvimento independente dos sindicatos e apoiam suas lutas com todas as suas forças. Mas, ao mesmo tempo, o Partido Comunista se reserva o direito de expressar suas opiniões sobre todos os problemas do movimento operário, inclusive sobre os problemas sindicais, de criticar as táticas dos sindicatos e fazer propostas concretas que estes, por seu lado, são livres para aceitar ou rejeitar. O partido se esforça com a ação prática para ganhar a confiança da classe operária e, principalmente, do setor organizado nos sindicatos.“[16]
Tradução: Márcio Palmares
Notas:
[1] LENIN, V.I. O partido socialista e o revolucionarismo sem partido. In: LENIN, V.I. Obras Completas. Tomo XII. Moscou: Editorial Progreso, 1982, pp. 135-143. Todos os grifos, salvo indicação em contrário, são nossos.
[2] Idem, p. 138.
[3] Ibidem.
[4] Idem, p. 139.
[5] Ibidem.
[6] Idem, p. 140.
[7] Ibidem.
[8] Ibidem.
[9] Ibidem.
[10] Idem, p. 135.
[11] Idem, p. 142.
[12] Idem, p. 143.
[13] Idem, p. 142. Sublinhado de Lenin.
[14] Ibidem.
[15] LENIN, V. I. Tese para o II Congresso da Internacional Comunista.
[16] TROTSKY, Leon. Una explicación necesaria a los sindicalistas comunistas. Disponível em:http://www.ceip.org.ar/Una-explicacion-necesaria-a-los-sindicalistas-comunistas>. Consultado em 18-08-2016.