Redação

Mudanças nos personagens e no roteiro para garantir bilheteria não conseguiram reduzir a importância do filme

Poucas semanas após a estréia da adaptação do livro de Dan Brown para as telas do cinema, chega em cartaz a transposição da obra mais famosa do escritor ítalo-americano John Fante. Diante de O Código Da Vinci, Pergunte ao Pó chega a ser uma verdadeira lufada de ar fresco, provando que nem todas as adaptações estão fadadas ao fracasso.

Um dos principais méritos de um filme deste tipo é a popularização de um nome do naipe de Jonh Fante, escritor nascido em 1909 no Colorado. Filhos de imigrantes italianos, o escritor é considerado um dos principais precursores do movimento beat, apesar de não se poder classificá-lo assim. Enquanto a literatura beatnik floresceu durante os anos de bonança que se seguiram após a II Guerra, Fante retrata os anos de depressão, após o crash de 1929.

No entanto, alguns elementos de sua literatura influenciaram de forma decisiva os autores beats. Uma narrativa intimista e pessoal, aliada a um estilo simples e direto, forneceram matéria prima para os jovens que, anos depois, se revoltaram contra os valores puritanos e reacionários da sociedade norte-americana e botaram o pé na estrada ao som de bebop.

Não é difícil também perceber porque Fante se tornou referência para os beatniks. Tal literatura retratava os rejeitados da sociedade. Alcoólatras, drogados, promíscuos perceberam no escritor de sobrenome latino uma estreita proximidade. Não por acaso, o autor saiu do semi-anonimato por conta de Charles Bukowski, ícone dos chamados escritores malditos. Bukowski, em uma de suas inúmeras andanças solitárias pelas bibliotecas americanas, deparou-se com o então desconhecido Pergunte ao Pó e ficou totalmente fascinado por Fante.

Anos depois, o escritor de ascendência alemã seria o responsável pela reedição da obra de Fante pela editora Black Sparrow. Tal medida não era nada menos que uma cláusula contratual de Bukowski com a editora, para o próprio autor publicar seus livros.

O Filme
A adaptação do segundo livro de Fante, publicado em 1939, foi dirigida por Robert Towne, que roteirizou Chinatown, filme ganhador do Oscar de 1974 e dirigido por Roman Polanski. Towne, enquanto trabalhava no filme de Polanski, leu Pergunte ao Pó e se aproximou de Fante, travando uma amizade que durou até a final da vida do escritor. A idéia de lançar a obra para as telas ficou encubada por anos até a C/W Productions, produtora de Tom Cruise, encampar o projeto.

Porém, ao mesmo tempo em que o projeto finalmente saiu do papel, teve que fazer muitas concessões. A começar pelas estrelas dos blockbusters incumbidos de incorporar as personagens de Fante, em geral atuando com a profundidade de uma folha de papel. Assim como o livro, o filme de Towne gira em torno do aspirante a escritor Arturo Bandini, alter-ego de Fante, interpretado por Colin Farrell. Recém chegado à ensolarada Los Angeles, o jovem Bandini, que publicara até aquele momento apenas um conto numa revista literária, tenta a vida como escritor.

Enclausurado num quarto de hotel barato, sobrevivendo alimentando-se apenas com frutas já podres, Bandini sofre com sua “falta de experiência” com a vida real, sentindo-se incapaz de reunir material para um livro. Em meio a esse conflito, conhece a garçonete mexicana Camilla Lopez, interpretada por Salma Haiek com quem trava uma relação obsessiva.

A primeira parte do filme se esforça em retratar fielmente o livro. Aos conflitos internos de Bandini, que alterna momentos de soberba e depressão em relação ao trabalho, soma-se a complexa relação com Camila. Neste aspecto, pesa um pouco a escolha de Farrel para o papel, sendo que o Bandini de Fante é um jovem que mal completara vinte anos. Já a frustração causada pela condição imigrante faz com que Bandini trate a garçonete com um profundo desprezo racista, aspecto aliás em muito amenizado no filme.

Do meio para o fim da adaptação, ressalta-se a tentativa de encaixar a obra aos moldes comerciais de Hollywood e o filme desanda num dramalhão constrangedor. Infelizmente, tal elemento foi o que norteou o enorme bombardeio deflagrado pela crítica, que naturalmente já recebe uma adaptação literária com muito receio. Porém, há que se ressaltar que o filme não se resume a isso.

Se é verdade que o diretor descaracteriza completamente os personagens de Fante, envolvendo-os numa trama romanesca, é também verdade que ele enfoca outro elemento explorado de forma secundária no livro: a questão imigrante. Em tempos em que Bush endurece as leis contra a imigração, causando monumentais protestos contra o governo, o diretor mostra que a situação não difere tanto dos Estados Unidos dos anos 30. Ou seja, apesar do diretor relativizar a violência de Bandini contra Camilla, enfoca a hipocrisia e preconceito com que a sociedade trata os imigrantes.

Deve-se notar como Bandini, contraditoriamente, incorpora valores reacionários como o chauvinismo, machismo e, pelo menos no livro, um moralismo religioso, tudo de que também é vítima, e os direciona contra Camila. Desta forma, Pergunte ao Pó pode ser comparado, guardada as devidas proporções, ao mais recente ganhador do Oscar, Crash, que retrata os conflitos étnicos e raciais e a opressão nos Estados Unidos.

A angústia religiosa, aliás, é um aspecto muito interessante no livro que poderia ter sido transposta para o filme. Bandini oscila entre o ceticismo intelectual e sua educação religiosa, proporcionando um dos muitos momentos cômicos da obra. Em certo momento, o jovem escritor faz uma oração em que pede desculpas a Deus por não acreditar em sua existência: “desculpe, mas o senhor já leu Nietze? Que livro!”, diz em sua prece.

Enfim, o filme de Towne não supera e tampouco substitui a obra de Fante, mas, em tempos em que o Código da Vinci reina absoluto nas prateleiras das livrarias, pode servir como uma boa introdução aos livros do autor ítalo-americano e, seguindo no atual revival da onda beat, porta de entrada aos beatniks.

O que ler?
Pergunte ao Pó foi recentemente reeditado pela editora José Olympio, que também publicou o primeiro romance de Fante, Espere a Primavera Bandini, em que o autor retrata a juventude de seu alter-ego.

Além disso, a LP&M lançou em formato pocket “Sonhos de Bunker Hill”, último livro de Fante e “1933 foi um ano ruim”.