Augusto Boal
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Redação

Luiz Fernando da Silva

O criador do teatro do oprimido, Augusto Boal, faleceu aos 78 anos no Rio de Janeiro. São significativas as inovações teatrais que ele realizou ao longo de 50 anos de atividades. Sua concepção teatral influenciou distintos grupos artísticos e movimentos sociais, porque apresentou de maneira sistematizada uma nova maneira de pensar e fazer teatro.

Em seu aspecto formal, a coerência do teatro do oprimido encontrou-se no permanente desenvolvimento de sua concepção, técnicas e jogos teatrais, além da sua expansão geográfica no país e internacionalmente. No entanto, a proposta sofreu uma grande modificação, ao nosso entender, quando se distanciou de uma perspectiva eminentemente política e, aos poucos, passou a adotar uma diretriz cada vez mais próxima do psicodrama e do que poderíamos chamar de um “teatro da cidadania”.

Ser diretor do grupo Teatro Arena, entre 1958-1970, permitiu a Boal sistematizar uma série de experiências de laboratório que o grupo desenvolvia no período para as peças Chapetuba Futebol Clube, Arena conta Zumbi, Arena Conta Tiradentes, Eles não usam-black-tie, entre outras. No exílio, Boal percorreu distintos países latino-americanos, incorporando em sua concepção as experiências locais de teatro popular.

No livro Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas, editado em Portugal em 1977 pela editora Civilização Brasileira, estão condensadas essas experiências e sua concepção. Diz o diretor: “Este livro reúne ensaios que foram escritos com diferentes propósitos, desde 1962 em São Paulo, até fins de 1973 em Buenos Aires, relatando experiências realizadas no Brasil, Argentina, Peru, Venezuela e em vários outros países latino-americanos”.

Boal defendeu a “dessacralização” do teatro. Em outras palavras, o teatro é uma forma de expressão e comunicação que deveria ser apropriada por não-atores, como instrumento político para reflexão e transformação social. A sua proposta trouxe para cena o não-ator, transformou o espectador passivo em sujeito da atuação. Roteiriza coletivamente os problemas políticos e sociais do grupo social, para discuti-los estética e politicamente, para possíveis ações coletivas.

Em síntese, ele afirmava: “se destrói a barreira entre atores e espectadores: todos devem representar, todos devem protagonizar as necessárias transformações da sociedade”, “destrói-se a barreira entre os protagonistas e o coro: todos devem ser, ao mesmo tempo, coro e protagonistas”. Essa seria a força motora da poética do oprimido, voltada para a “conquista dos meios de produção teatral”. Essa concepção teatral aproxima-se muito da perspectiva da pedagogia do oprimido, desenvolvida pelo educador pernambucano Paulo Freire.

Em Teatro do Oprimido, encontra-se a fundamentação teórica, que se orienta por concepções artísticas de autores marxistas, como Arnold Hauser (História social da arte) e pelo dramaturgo e diretor Bertold Brecht. A partir dessas referências, constrói uma crítica à concepção aristotélica de teatro, como também ao teatro medieval e burguês. Os quatro pilares de sua prática teatral são assim sintetizados: a) conhecimento do corpo; b) o corpo expressivo; c) o teatro como expressão: produção de roteiro (expectador e ator); teatro-imagem; teatro debate; d) por último, teatro como discurso: jornal, invisível, fotonovela etc.

Depois de passar pelos Estados Unidos, o diretor segue em 1976 para Lisboa e em seguida para a França. Em 1979 fundou em Paris o Centro de Teatro do Oprimido (CTO), por meio do qual aperfeiçoa as técnicas que havia sistematizado na América Latina. Nesse período começou a retornar ao Brasil, inicialmente realizando sessões do Teatro do Oprimido, ao lado do seu grupo francês, nos espaços do Teatro Ruth Escobar, na Escola de Sociologia e Política, e em diversos debates. O CTO hoje localiza-se no Rio de Janeiro.

No aspecto formal da proposta, como assinalamos, a poética do oprimido apresentou uma grande coerência de concepção e no aperfeiçoamento e aplicação de técnicas, jogos e suas formas teatrais (teatro fórum; teatro invisível; teatro-imagem; teatro escultura etc.). Mas se verificarmos mais de perto os aspectos políticos norteadores iniciais da proposta, parece-nos que sua concepção operou uma profunda mudança em relação aos seus conceitos iniciais.

O oprimido, na proposta original, referia-se à opressão política e econômica ocasionada pelo sistema capitalista de exploração. O teatro é necessariamente político, por isso é uma arma: “o teatro pode ser igualmente uma arma de liberação”, dizia Boal. Esse conteúdo deixou de existir em sua proposta ou, pelo menos, foi muito amenizado.

Em sua fase europeia, como o próprio dramaturgo observa em Stop! C’est Magique (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982), ele foi se deparando com uma nova problemática que não se limitava à dimensão política e econômica. Eram problemas relacionados à discriminação do imigrante, opressão contra a mulher e o homossexual, entre outros. Para Boal, os problemas de fundo do sistema capitalista não estariam mais na centralidade do eixo do teatro do oprimido. Diz o seguinte: “Nas minhas oficinas de Teatro do Oprimido começaram a aparecer ‘oprimidos’ de opressões ‘desconhecidas’ para mim. Eu trabalhava muito com imigrantes, professores, mulheres, operários, gente que sofria as mesmas opressões latino-americanas bem conhecidas: racismo, sexismo, condições de trabalho, salários, polícia etc. Mas, ao lado destas, começaram a aparecer ‘solidão’, ‘incapacidade de se comunicar’, ‘medo do vazio’ e outras mais”.

As necessidades básicas do cidadão europeu, para ele, estariam relativamente satisfeitas, mas as angústias, solidão e suicídios seriam os problemas de fato existentes. Desta maneira, “fui-me obrigando a trabalhar com essas novas opressões e aceitá-las como tais”. Mas nos ficaria uma pergunta sobre as considerações do dramaturgo. Essas “novas” opressões não seriam as formas mais sublimes e fetichizadas (alienadas) decorrentes do modo de produção capitalista?

Nesse novo trajeto de problematização, Augusto Boal estreitou relações com o psicodrama por meio da Associação Internacional de Psicoterapias de Grupo. Suas palavras iniciais, em Arco-íris do desejo. Método Boal de teatro e terapia (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996), são sintomáticas: “Este livro marca uma nova etapa, completa um longo período de pesquisa. É ainda o Teatro do Oprimido, mas é um novo Teatro do Oprimido” (p.17). Observa-se também no próprio título daquele livro que a idéia principal passa a ser designado como “Método de Boal”. O próprio termo “oprimido” torna-se polissêmico, escorregadio e inclusive incômodo. Portanto, em desuso para seu próprio criador.

As propostas teatrais passam a ser produzidas no campo da cidadania, em torno dos direitos humanos e da participação política institucional. Entre 1993-1996, quando se elege vereador pelo PT no Rio de Janeiro, o diretor criou o teatro legislativo, uma forma derivativa do teatro fórum (forma teatral com intervenção direta do espectador) para discussão e constituição com movimentos sociais de projetos de lei para apresentação na Câmara Municipal.

Em relação aos recursos financeiros do Centro do Teatro do Oprimido (CTO), eles estão relacionados com uma instituição inglesa, People’s Palace Projects, e com a Fundação de Desenvolvimento Administrativo (Fundap), responsável pelo desenvolvimento educacional no sistema prisional paulista, em torno do programa Direitos Humanos em Cena. Essa experiência baseia-se em desenvolver grupos de teatro do oprimido através da formação e multiplicação de coringas que têm o papel de constituir grupos de teatro do oprimido. Além dessa atuação, o CTO atuou desde o ano de 2000 junto ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), em diversas partes do país.

Augusto Boal constituiu um referencial teatral que extrapolou os limites do espetáculo e trouxe para o centro de sua prática o próprio público como sujeito da ação teatral. Além disso, suas experiências, propostas e técnicas sistematizadas possibilitaram que inúmeros grupos se apropriassem de uma nova prática teatral, em diversos movimentos sociais.

As práticas e ferramentas teatrais que foram acumuladas nesse percurso de Boal são relevantes. Sua concepção teatral pode se articular a uma pedagogia socialista e revolucionária, inclusive as suas propostas de desmecanização corporal e ideológica. No entanto, é necessário analisar criticamente o limite de conteúdo que Boal foi remetendo sua proposta, especialmente ao caráter de cidadania que ele passou a propugnar.

Luís Fernando da silva é professor de Sociologia e Cultura Brasileira na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e militante do PSTU.