Augusto Boal
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Augusto Boal, um dos mais importantes encenadores brasileiros, morreu no dia 2 deste mês, aos 78 anos, no Rio de Janeiro. Se existe alguém que fez a diferença no teatro brasileiro, esse alguém foi Boal. Sua morte nos leva a relembrar esse diferencial que ele representou não só dentro do território nacional, mas em todos os palcos do mundo.

Nossa intenção é relembrar um pouco de sua importância para o teatro e a cultura de resistência, porque nestes tempos de privatização descarada da arte, falar de Augusto Boal e resgatar seu teatro de combate não é qualquer coisa. Se algo marcou sua trajetória de encenador foi justamente a denúncia incansável contra a indústria cultural, a insurgência contra a privatização da arte e a alienação do artista e a ação consciente e constante contra a transformação dos objetos artísticos em produtos de mercado.

Uma bofetada no gosto do público
Boal nasceu no Rio de Janeiro em 1931, filho de um padeiro português. A pedido do pai, estudou Engenharia Química nos Estados Unidos. Mas a veia artística falou mais alto e Boal não resistiu: cursou também Artes Cênicas. “Eu estudava plásticos e drama moderno, num dia, petróleo e Shakespeare, no outro”, gostava de dizer, em tom de brincadeira. Em 1955, Boal voltou ao Brasil já dedicado integralmente às artes cênicas. Tanto que logo em seguida assumiu a direção do Teatro de Arena em São Paulo.

Nessa época, o que se conhecia em matéria de teatro por aqui era o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), companhia criada em 1948 pela burguesia paulista para encenar os clássicos do teatro francês. Teatro de elite, que pouco ou nada tinha a ver com a realidade nacional, o TBC cultuava um teatro comercial, no qual as estrelas brilhavam e as privilegiadas famílias paulistanas coqueteavam em noites de gala.

Na segunda metade dos anos 1950, isso começou a mudar. Surgiu o Arena, uma verdadeira bofetada no gosto desse público, que até então constituía “o” público de teatro em São Paulo. Criado pelo ator e diretor José Renato, o Arena logo se fundiu com o Teatro Paulista do Estudante, formado pelos atores Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho e Flávio Migliaccio. O propósito da nova companhia não era nada modesto: ela se propunha a revolucionar a arte teatral. A idéia era apresentar as peças não só no teatro, mas também nas fábricas, escolas e clubes, nos bairros operários. Foi quando chegou Boal.

O teatro como instrumento de luta
No Arena, Boal começou a aplicar seu projeto de teatro. Ele podia ser resumido em uma frase: fazer da arte um instrumento de luta para transformar o mundo. Coerente com essas idéias e firme em seu propósito, Boal manteve esse projeto até o fim da vida. Tanto que encerrou o último discurso que fez em público pouco ante de morrer, durante o Fórum Social Mundial, em Belém, dizendo que “cidadão não é quem vive em sociedade, mas quem luta por transformar a sociedade”.

O que mais caracterizou Boal como encenador foi a sua crença inabalável na força da arte teatral para conscientizar o público, no seu poder para mobilizar os trabalhadores e os oprimidos para a luta pelas grandes causas políticas e sociais de nosso tempo. Nesse sentido, era preciso fazer nascer entre nós um teatro realmente brasileiro, não no sentido nacionalista do termo, mas um teatro que falasse a nossa língua e os nossos problemas, que estivesse dirigido à classe trabalhadora e à juventude estudantil, que nos anos 60 estava no olho do furacão dos grandes movimentos de contestação no mundo todo.

Com esse propósito, o Arena foi se transformando num pólo aglutinador de artistas dispostos a inovar a linguagem teatral, a fazer um teatro pobre de dinheiro, mas rico em inteligência, com um espírito crítico aguçado e, sobretudo, engajado nas causas em defesa dos interesses do povo brasileiro.

Naquele pequeno palco em forma de arena na rua Teodoro Baima, centro de São Paulo, reuniu-se a nata dos jovens artistas, a maioria em início de carreira, dirigidos por Boal. Dentre as mais importantes montagens do Arena estão Chapetuba Futebol Clube, de Vianinha, Eles Não Usam Black-Tie, Arena Conta Zumbi e Arena Conta Tiradentes, de Guarnieri, além de Revolução na América do Sul, de autoria do próprio Boal.

Desde então, o teatro brasileiro nunca mais foi o mesmo. Entrou num novo patamar. Boal introduziu novas técnicas de encenação e interpretação, como o chamado Sistema Coringa. Caía por terra o teatro das estrelas, o culto à personalidade. Agora todos os atores poderiam representar todos os personagens. Caía por terra a elitização do teatro. Qualquer pessoa podia ser um ator. E essas concepções tinham um sentido político bem preciso: fazer com que os setores oprimidos encontrassem no teatro um instrumento de expressão, de conscientização e de luta para mudar a vida.

O teatro do oprimido
Golpe militar em 1964. Decretação do AI-5 em 1968. A repressão se torna mais dura e atinge em cheio o movimento teatral. Em 1971 Boal é preso e torturado. Libertado, parte para a Argentina, onde retoma suas atividades, agora pondo em prática um projeto acalentado há tempos: o Teatro do Oprimido, um projeto teatral completo, que combina dialeticamente as artes cênicas e as lutas dos oprimidos por sua libertação.

Boal explica que “para que se compreenda bem a Poética do Oprimido, deve-se ter sempre seu principal objetivo: transformar o povo, ‘espectador’, ser passivo no fenômeno teatral, em sujeito, em ator, em transformador da ação dramática. Penso que todos grupos teatrais verdadeiramente revolucionários devem transferir ao povo os meios de produção teatral, para que o próprio povo os utilize à sua maneira e para os seus fins. O teatro é uma arma e é o povo quem deve manejá-la!”.

O teatro perdeu Augusto Boal, mas seus métodos e suas idéias vieram para ficar. Com certeza, eles continuarão a ser estudados com afinco e seguidos avidamente por inúmeros grupos de teatro nos bairros operários por este mundo afora. O último de seus livros é A Estética do Oprimido, lançado agora, que reúne suas principais concepções sobre a arte.

Boal abre o livro com uma dedicatória: “Sinto sincero respeito por todos aqueles artistas que dedicam suas vidas à sua arte – é seu direito ou condição. Mas prefiro aqueles que dedicam sua arte à vida”.

Post author Cecília Toledo, da revista Marxismo Vivo
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