O atleta jamaicano Usain Bolt
Henrique Canary, da Secretaria Nacional de Formação

Encerraram-se os Jogos Olímpicos de Londres. No Opinião Socialista desta quinzena (Nº 447) há um excelente artigo sobre o nefasto papel cumprido pelo capital neste que deveria ser um grande espetáculo de cooperação e fraternidade universal. Como demonstra o artigo, o capitalismo transformou as Olimpíadas em um festival de injustiças em nome do lucro: remoções forçadas das populações que vivem próximas aos equipamentos olímpicos, “zonas de exclusividade” para o marketing (onde ninguém pode, por exemplo, usar uma camiseta que mostre uma marca não autorizada pelo Comitê Olímpico Internacional) e outras barbaridades.

A próxima cidade a enfrentar as terríveis consequências de uma Olimpíada será o Rio de Janeiro. Não é preciso ter muita imaginação para prever as atrocidades que serão cometidas contra a população de rua do Rio, contra os menores que pedem esmolas nos sinais, contra os vendedores ambulantes e o povo em geral. É evidente que se prepara um verdadeiro estado de sitio na cidade, com a proibição de manifestações e greves, com uma repressão policial jamais vista. Chegaremos a ver algum tipo de “zona de exclusividade social” ou algum outro mecanismo que impeça o povo trabalhador de se aproximar dos locais de prova e trânsito de turistas? Só o tempo dirá. Não duvidamos de nada. De qualquer forma, a violência contra os pobres será a marca dos Jogos Olímpicos de 2016.

Mas o objetivo deste artigo não é analisar os fatores políticos e sociais imediatamente ligados às Olimpíadas. Aqui queremos tomar um elemento mais profundo, que em geral escapa às discussões sobre o tema, mesmo na esquerda: o esporte em si, sua relação com o indivíduo, com a vida em sociedade e com as ideias do socialismo.

O esporte de competição e os limites do corpo humano
“Superação!” Eis a palavra mais dita e ouvida em qualquer evento esportivo de grande porte. Os comentaristas não param de repetir que este ou aquele atleta “superou seus próprios limites” e que este ou aquele recorde acaba de ser quebrado. Os próprios telespectadores ficam eufóricos diante de figuras como Usain Bolt e Michael Phelps, que parecem de fato desafiar nossa compreensão sobre as capacidades humanas. Mesmo os esportes coletivos se tornam cada vez mais espetáculos de velocidade, força, agilidade e perfeição.

Mas se enganam aqueles que pensam que os atletas “testam” os limites do corpo humano, como gostam de dizer os jornalistas esportivos. Na verdade o esporte de competição já trabalha há algum tempo além dos limites do corpo humano, com gravíssimas consequências físicas e psíquicas para os atletas.

No futebol, por exemplo, um esporte que alterna piques explosivos com paradas abruptas, são observadas sérias consequências para o coração dos jogadores e as chamadas “mortes súbitas” em campo, fruto de infartos fulminantes, têm se tornado um fenômeno recorrente. Segundo a própria FIFA, nos últimos 5 anos, 84 jogadores de futebol morreram em campo devido a problemas cardíacos. É o que revela um relatório apresentado pela entidade em maio deste ano e que tem como base informações recebidas de 129 das 208 federações que compõe a FIFA. Além disso, os clubes apostam na hipertrofia muscular do atleta para suportar a violência das partidas e levar a melhor nas bolas divididas. A ênfase na musculação faz com que os jogadores ganhem uma massa muscular incompatível com sua estrutura óssea e articulações. Resultado: repetidas fraturas, seguidas de cirurgias, seguidas de novas fraturas.

Na ginástica olímpica, que para a perfeição técnica exige uma preparação física desde a mais tenra infância, o corpo das crianças que praticam esse esporte gasta praticamente toda a energia disponível nos treinos, o que gera a interrupção prematura de seu crescimento. Dito de maneira simples: param de crescer muito antes do que deveriam porque seu organismo não tem energia para mais nada, a não ser treinar.

No caso do fisiculturismo, fala-se muito dos anabolizantes, mas a verdade é que este sequer é o principal problema para a saúde dos que praticam essa modalidade. Algumas semanas antes da competição, a fim de “secar” e mostrar um corpo definido, os atletas reduzem drasticamente o consumo de água. Nos dias que antecedem a competição, a ingestão de líquidos chega literalmente a zero. A única água ingerida é a presente nos alimentos, que também são escolhidos especialmente em função de seu baixo teor de água. Não contentes com isso, os atletas tomam diuréticos para forçar a eliminação de líquido pela urina. Como resultado, desenvolvem graves doenças renais, têm dores de cabeça constantes e sérios desequilíbrios hormonais e metabólicos.

Nas corridas de cavalo, os jóqueis, que em geral já são de baixa estatura e magros, para não pesarem sobre o cavalo, fazem algo parecido: não só deixam de comer e beber antes das corridas, como tomam laxantes e fazem sessões de sauna nas horas que antecedem as corridas para eliminar o máximo possível de peso. Algumas gramas a mais sobre o cavalo podem fazer diferença. Resultado: desidratação crônica, novamente com consequências para os rins e outros órgãos.

Estes são apenas alguns exemplos. Em muitos outros esportes ocorrem fenômenos semelhantes.

A próxima fase do esporte sob o capitalismo:
a transformação genética dos atletas

Entendendo que o corpo humano chegou ao seu limite e até o ultrapassou, alguns pseudocientistas a serviço das grandes marcas e corporações começam a pensar novas formas de aumentar o rendimento dos atletas, sem recorrer ao doping, que sempre pode ser detectado por exames precisos. Assim, começa-se a entrar em um terreno verdadeiramente escandaloso: a chamada “transformação genética” dos atletas.

Sabe-se, por exemplo, que o oxigênio é o grande combustível do corpo humano. Até certo ponto, o rendimento de um atleta em uma prova é determinado pela sua capacidade de “queimar” oxigênio e transformá-lo em energia e essa capacidade é determinada geneticamente. O grande “veículo” que carrega oxigênio através do corpo humano, levando-o para os tecidos que dele necessitam são os glóbulos vermelhos presentes no sangue. Quanto mais glóbulos vermelhos, melhor o indivíduo aproveita o oxigênio que respira. A partir daí o raciocínio se desenvolve com nitidez: bastaria injetar no atleta os seus próprios gens responsáveis por produzir glóbulos vermelhos para que o corpo passasse a produzir mais dessas células e o rendimento do atleta fosse melhorado. Esse procedimento não seria detectado em nenhum exame porque não se trataria de uma droga, mas sim de um componente até certo ponto “natural”: o material genético do próprio atleta. Não há hoje, pelo que se sabe, possibilidade técnica de realizar esse procedimento, mas do ponto de vista teórico ele deve funcionar e há muito dinheiro investido nesse tipo de pesquisa.

Essa ideia, por mais escandalosa que seja, é defendida hoje abertamente nos meios esportivos como a nova fase de desenvolvimento do esporte, uma fase onde recordes já consolidados seriam novamente quebrados com folga por esses “superatletas”. Daí para experiências secretas de conteúdo mais horripilante – é um pulinho. Qualquer semelhança com os experimentos realizados pelos médicos nazistas durante a 2ª Guerra Mundial não é mera coincidência. É o desenvolvimento lógico de um sistema opressor e racista.

“Mens sana in corpore sano”?
O esporte deveria ser o exercício e aperfeiçoamento das capacidades físicas do ser humano, com o objetivo de manter sua saúde e promover seu lazer, entretenimento e confraternização. Ou seja, em última instância, o objetivo final do esporte reside no bem estar psíquico do homem, que realiza todas as suas potencialidades físicas em associação com outros seres humanos e obtém daí prazer ou satisfação psicológica. Todos sabemos o quanto é simplesmente divertido jogar bola com os amigos, mesmo quando o placar do jogo não é sequer contado. O esporte deveria ser, portanto, em primeiro lugar, um momento de humanização e socialização.

Ao invés disso, o esporte de competição, tal como vem se desenvolvendo nas últimas décadas, tem significado um verdadeiro martírio psicológico para atletas de todos os estilos e idades, bem como para seus familiares.

A frustração diante das derrotas, as agressões psicológicas sofridas pelos atletas por parte dos treinadores, as cobranças da imprensa, as pressões e a humilhação a que os atletas estão submetidos por parte dos patrocinadores – tudo isso gera um clima que nada tem a ver com o chamado “espírito esportivo”. Há também casos de abuso sexual de atletas mulheres por parte dos técnicos, onde o caso de Joanna Maranhão é apenas o mais conhecido porque foi denunciado pela nadadora.

De uma forma geral, o esporte de competição se converteu em um profundo fator alienante para aqueles que o praticam. Crianças são retiradas de seu convívio normal, se tornando na prática prisioneiras e semi-escravas de clubes e empresas. Os estudos, as amizades, as brincadeiras sem compromisso e todas as outras atividades que não sejam o esporte são abandonadas. Alguns desses atletas demonstram de fato um enorme talento ou capacidade para o esporte e se transformam em grandes ídolos que fazem a alegria de milhões. Mas o preço que pagam é alto. Não fazem outra coisa além de competir. Que hoje em dia surja alguém como Sócrates (médico, jogador de futebol, ativista político e mais tarde jornalista), é praticamente impossível. O esporte de competição simplesmente não permite.

Assim, o esporte perde uma de suas principais funções: a manutenção da saúde psíquica daqueles que o praticam, o estabelecimento de relações sociais saudáveis, a interação humana em uma atividade livre e voluntária.

As lições da União Soviética
Nestas Olimpíadas muito se comentou sobre o resultado obtido pelos países que até 1991 compunham a antiga União Soviética. Somadas todas as medalhas ganhas pelos 15 ex-membros da URSS, estas ultrapassariam a quantidade de medalhas dos EUA, e a URSS, nessa projeção hipotética, terminaria os Jogos Olímpicos de Londres no topo do quadro.

De fato, os países que foram parte da URSS e outros antigos Estados operários são herdeiros de uma importante tradição esportiva e os resquícios dessa conquista podem ser vistos ainda hoje no desempenho dos atletas e equipes da ex-URSS, Europa Oriental e Cuba.

Mas de onde exatamente vinha o bom desempenho dos atletas soviéticos? Para quem assistiu Rocky IV, um filme de 1985 com Silvester Stalone, onde o boxeador ítalo-americano Rocky Balboa enfrenta o russo Ivan Drago, pode parecer que os bons resultados da URSS vinham apenas da disciplina individual dos atletas e do investimento pesado no esporte por parte do Estado. Neste lamentável filme dirigido pelo próprio Stalone, o russo Drago é retratado como um semi-robô sem emoções, criado praticamente em laboratório, e que tem à sua disposição nos treinos a mais avançada tecnologia soviética. Rocky o derrota na luta final treinando apenas com peças de carne e blocos de gelo em um frigorífico, sacos de areia e correndo atrás de galinhas, provando assim que nem mesmo o mais avançado treinamento tecnológico é páreo para a “superioridade norte-americana”.


O filme Rock IV e a visão estereotipada do Esporte na URSS

Bem, é verdade que na antiga URSS havia um forte investimento estatal no esporte. Também é verdade que os atletas eram bastante disciplinados. Mas arriscamos dizer que o incrível desempenho do esporte soviético não vinha nem de um fator, nem de outro. O investimento e a dedicação ajudam a explicar o fenômeno, mas não esgotam a questão. No fundamental, o sucesso da URSS se explicava por outro motivo: a massificação do esporte para praticamente toda a população. Expliquemos.

Ora, como se “descobrem” talentos esportivos hoje em dia? Busca-se exaustivamente nos clubes e empresas jovens que “prometam”, que mostrem indícios de que podem se desenvolver como atletas. Depois, se investe pesado nestes jovens, se impõe a eles uma rígida e opressiva disciplina, se estabelece para eles um ritmo alucinante e desumano de treinos, até transformá-los em grandes desportistas. Isso é assim mesmo nos países mais ricos e desenvolvidos. Ou seja, sob o capitalismo, trabalha-se com muito pouco material humano, com um universo muito restrito porque o esporte é extremamente elitizado. Por isso, qualquer jovem que demonstre algum talento para o esporte é “esfolado vivo” até render aquilo que se espera que ele renda…

Pois na URSS era diferente: o esporte era massificado, praticamente toda a população o praticava até certa idade, em maior ou menor grau. Dessa forma, os talentos não precisavam ser “pescados” em processos seletivos arbitrários e injustos; não havia “olheiros”, como nos países capitalistas. Os novos talentos brotavam de maneira mais ou menos espontânea da massa da população, que praticava esportes desde a infância. Trabalhava-se com um universo muito mais amplo, com um material humano muito mais diverso e abrangente. O que os países capitalistas conseguiam alienando e robotizando seus atletas, a URSS conseguia oferecendo a toda a população a possibilidade de praticar algum esporte e testar nele suas aptidões. Ou seja, a imagem “Rocky x Drago” (homem do povo x semi-robô alienado) é justamente o contrário do que existia na realidade.

Obviamente, devido ao fato de que as competições internacionais eram encaradas pela burocracia stalinista como peça de propaganda de seu regime, os atletas soviéticos de maior destaque sofriam consequências mais ou menos parecidas àquelas sofridas pelos atletas dos países capitalistas. Era o resultado inevitável do fato de que a URSS era dirigida por uma casta parasitária, que via o esporte como mais uma forma de manutenção de seu poder. Mas o fundamental não é isso. O fundamental é que na antiga URSS, principalmente nos primeiros anos de poder soviético, praticamente todas as empresas tinham seu time de futebol, de hockey, sua equipe de ginástica, de xadrez etc etc etc., e os torneios entre empresas, entre escolas, entre cidades, eram a forma predominante de confraternização esportiva. Fenômenos como doping, assédio, violência de torcidas, brigas em campo etc., eram simplesmente inimagináveis naquela situação.

O socialismo e o futuro do esporte
O mesmo capitalismo que promove o esporte de competição ou de “alto rendimento” é o que mantém uma parte significativa da população subnutrida, sedentária e doente. Uns poucos fazem coisas inacreditáveis, para que milhões e milhões apenas paguem o “pay per view”, comprem as camisetas e compareçam aos estádios. A famosa frase de Lula, gravada por uma câmera escondida, onde ele diz para um menino pobre do Rio de Janeiro, que reclamava do fechamento da quadra de tênis de um Complexo Esportivo do Governo do Estado, que “tênis é esporte da burguesia” é o triste retrato da concepção de esporte predominante em nossa sociedade. “Da burguesia” quer dizer “não é para você”, “vá fazer outra coisa”. Além disso, o capitalismo sonha com “super-atletas” que atraiam aos estádios e para a frente da TV multidões ainda maiores. E se esses super-atletas não surgem de maneira espontânea, o capitalismo está disposto a fabricá-los genética ou quimicamente.

Para o marxismo, as coisas são diferentes. A tarefa do socialismo em relação ao esporte é, em primeiro ligar, massificá-lo de uma maneira jamais sonhada. O esporte deve ser parte integrante e inseparável da educação do ser humano, tão importante quanto sua formação científica ou artística.

Obviamente, para isso será preciso um grande e permanente investimento estatal, tanto nos níveis fundamentais da formação esportiva (como atividade recreativa para crianças e adolescentes em idade escolar), quanto nos níveis mais qualificados. Mas esse investimento estatal de grande porte não pode estar em contradição com as demais necessidades da população, como moradia, saúde, transporte etc. A ideia de grandes espetáculos e competições esportivas construídas sobre o sofrimento e a exclusão da maioria (seja em função de remoções forçadas das populações, seja em função da falta de investimento em outras áreas) deve ser radicalmente abolida da prática social.

Da enorme massa da população que terá acesso ao esporte, se destacarão de forma mais ou menos natural os novos talentos e grandes desportistas do socialismo. Surgirão não um ou dois, mas inúmeros “Usain Bolt”, não dois ou três, mas incontáveis “Michael Phelps”.

O esporte voltará a ser um espetáculo de verdade, mas sua base não será mais a destruição do adversário ou a auto-negação do atleta enquanto ser humano completo. O esporte será novamente espetáculo porque será uma confraternização universal, da qual todos os cidadãos socialistas poderão participar ativamente.

Em uma sociedade socialista, igualitária por excelência, a competição desaparecerá por completo? Os placares deixarão de ser contados? Tornar-se-á o esporte apenas brincadeira, como é para as crianças? É difícil dizer. Somente as gerações que chegarem ao socialismo, e depois ao comunismo, poderão decidir o que fazer com esse grande legado do passado que é o esporte. O certo é que a competição, caso se mantenha, deixará de ser feita às custas da saúde física e psíquica dos atletas e seus familiares. E obviamente, conceitos como “dinheiro”, “patrocínio”, “marca” e outros – deixarão de ter qualquer relação com a prática esportiva. O esporte será esporte e nada mais.

Os desportistas do socialismo não serão ídolos intocáveis e inatingíveis. Serão pessoas comuns, que, além do esporte, realizarão atividades produtivas e intelectuais úteis para toda a sociedade. Não serão apenas atletas, mas seres humanos completos, universais, porque o esporte deixará de ser um fim em si, para se tornar um meio de educar e formar os cidadãos socialistas.

O socialismo não quer super-humanos; quer apenas seres humanos melhores. Desde que se livre das amarras impostas pelo capital, pela propriedade privada e pelo lucro, o esporte pode ser uma ferramenta fundamental nessa construção.