Guedes, Boldonaro e Claudio Castro na abertura do leilão da Cedae

Por Cyro Garcia

Em Junho a mídia noticiou que Cláudio Castro (PL), atual governador do RJ, fechou um acordo com o governo Bolsonaro para renovar o Regime de Recuperação Fiscal (RRF), em vigor desde 2017. O governador, que conseguiu emplacar a privatização da CEDAE como uma das “contrapartidas” ao RRF, afirmou em suas redes sociais que estava conseguindo pagar os salários do funcionalismo em dia como resultado de uma “gestão austera e responsável”. Ao mesmo tempo, começou uma intensa articulação com a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), principalmente com seu presidente, André Ceciliano (PT), para aprovar um pacote com as exigências do governo federal para renovar o RRF.

Infelizmente, a maior parte do movimento social do Rio de Janeiro não tem debatido com a profundidade necessária esse assunto e, portanto, não se constrói a devida resistência e questionamento. Mais que isto – não há hoje clareza sobre o que é o Regime de Recuperação Fiscal. Em nossa opinião, ele é um ataque enorme, não apenas aos servidores estaduais, mas ao conjunto da classe trabalhadora do Estado, como vamos tentar demonstrar abaixo.

Como surgiu o RRF?

O Regime de Recuperação Fiscal surgiu no contexto de uma gravíssima crise econômica, motivada em parte pela baixa do preço das commodities no mercado internacional, que atingiu com força muitos estados e municípios a partir de meados de 2015, mais notavelmente Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Os governos, após anos transferindo dinheiro para o empresariado de diversas maneiras (títulos de dívida pública, isenções fiscais bilionárias, corrupção direta, investimentos em obras faraônicas da Copa e Olimpíadas, entre outros), tiveram uma queda brusca em suas receitas. Porém, ao invés de cobrar os grandes devedores do Estado, resolveram cortar na carne… dos servidores públicos e da população.

As consequências foram dramáticas. Milhões de trabalhadores (fossem servidores ou terceirizados) tiveram seus salários parcelados e/ou atrasados por meses ou até anos a fio, pacotes de leis retirando direitos históricos foram apresentados nas Assembleias Legislativas de uma hora para a outra, e houve tentativas, algumas bem-sucedidas, de privatização e fechamento de vários órgãos públicos. Os trabalhadores responderam à altura, com greves fortíssimas e passeatas enormes; no Rio, trabalhadores da UERJ, UENF, UEZO e FAETEC ficaram em greve por praticamente dois anos seguidos, e as manifestações eram tão frequentes e tão poderosas que o governo simplesmente cercou a ALERJ com um alambrado e equipe policial permanente, temendo que o funcionalismo e a população ocupasse a assembleia.

Em resposta a isso que o governo Temer apresentou, em 2017, um programa de “socorro” para os Estados e municípios endividados. O motivo é simples: Temer era um governo muito frágil e questionado, odiado pela população, afundado em denúncias de corrupção, e que estava tentando ele mesmo aplicar um ajuste fiscal violento no país. As reformas da Previdência, Trabalhista, a PEC do Fim do Mundo, entre outros ataques que patrocinava, provocaram um levante no movimento de massas do país e duas greves gerais, além de uma marcha que levou centenas de milhares de pessoas a Brasília em maio de 2017 – e os servidores estaduais foram parte importante dessas lutas. Além disso, as lutas nos estados enfraqueciam governos que sustentavam Temer.

Por que o Rio de Janeiro é o único estado que aderiu ao RRF ?

Esse “socorro” é tão cruel que apenas o Rio de Janeiro, em todo o país, aderiu a ele. Em linhas gerais, o governo federal renegocia e parcela as dívidas dos Estados com ele próprio, além de permitir novos endividamentos… e exige em troca, sob o nome pomposo de “austeridade”, que estes desmontem seus serviços e ataquem os trabalhadores. Foi exigido que o Rio imediatamente aumentasse o desconto de previdência dos seus servidores (e portanto diminuísse seus salários), vetasse reajustes salariais, praticamente proibisse concursos e convocações dos concursados, retirasse direitos como o Aluguel Social dos desabrigados das chuvas de 2011 na Região Serrana e o Bilhete Único Intermunicipal, e realizasse uma série de privatizações. A própria condição para a adesão do Rio foi a privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (CEDAE), a lucrativa estatal fluminense do saneamento, na época leiloada para o BNP-Paribas, banco francês denunciado por envolvimento em escândalos humanitários em todo o mundo como o genocídio de Ruanda.

“Austero e responsável”?

Quatro meses após a assinatura do Regime, em setembro de 2017, o governo Pezão finalmente voltou a pagar os salários do funcionalismo, e as greves foram suspensas. Isso estabilizou um pouco o Rio, e desde então a manutenção do RRF foi a prioridade absoluta de Pezão, Witzel e agora de Cláudio Castro, que sempre buscaram apresentá-lo como algo positivo e necessário, no que infelizmente foram ajudados por um grande silêncio por parte das grandes figuras públicas da esquerda. Esse esforço combina uma chantagem permanente da volta dos atrasos salariais, pela negativa, com algumas poucas migalhas, como a “antecipação” do 13o terceiro dos servidores, a abertura de alguns concursos com poucas vagas, a possibilidade de migração dos trabalhadores da Secretaria de Educação para uma carga horária maior, entre outras.

O discurso de governo “austero e responsável” cai por terra facilmente. Os salários do funcionalismo estão congelados desde 2014 e já acumulam mais de 45% de perdas inflacionárias, enquanto os salários do governador e seus secretários aumentaram em 11% em plena pandemia da Covid. A crise da saúde do estado do Rio – que é um constante epicentro da pandemia, com taxas de contágio e mortalidade altíssimas –  foi agravada pelo escândalo de corrupção (coordenado pelo então secretário de Saúde, Edmar Santos, ex-diretor do HUPE-UERJ) que desviou milhões de dólares dos respiradores e levou à derrubada de Witzel e boa parte do seu secretariado. Houve casos de corrupção em vários outros órgãos, como a FAETEC e o DETRAN, e o próprio Castro foi denunciado por receber propina de um empresa terceirizada da Fundação Leão XIII, órgão estadual de assistência social.

Por outro lado, o estado do Rio de Janeiro foi, entre 2017 e 2020, o segundo ente federativo com maior contenção de despesas com pessoal. Além disso, nos três primeiros anos do RRF houve grande sacrifício dos investimentos (despesas de capital) – que ficaram R$ 3,1 bilhões abaixo do previsto no PRF de 2017 – e redução de despesas de custeio da máquina pública (outras despesas correntes), R$ 2,9 bilhões abaixo do planejado. O balanço de receitas e despesas totais nos três primeiros anos do RRF do estado do Rio de Janeiro, portanto, apresentou um saldo positivo de cerca de R$ 500 milhões frente ao proposto em 2017. Assim, em 2020 o estado alcançou resultado primário de R$ 2,3 bilhões.

A degradação das condições de vida da população fluminense

O resultado destes números é visível para qualquer um na degradação das condições de vida da população fluminense. O Regime de Recuperação Fiscal, em todos esses anos, em nada melhorou a vida da população do Rio de Janeiro, com exceção da medida mais básica que foi voltar a pagar os salários dos servidores (o que poderia ter sido garantido de várias outras formas, como a cobrança das dívidas de grandes empresários com o estado ou a simples moratória da dívida com a União).  Mas, agora, as coisas vão ficar ainda piores, pois o objetivo do Regime é permitir que o estado apresente resultado primário maior que serviço da dívida. Por isto, neste momento, volta a tona a necessidade de implementar outros ataques. O novo RRF do governo Bolsonaro, vigente pelos próximos 10 anos(!), aprofunda e muito os ataques em relação ao acordo entre Pezão e Temer em 2017. Para além da privatização da CEDAE e da continuação do veto a novos concursos e reajustes, as novas cláusulas exigem que o Rio aplique uma combinação de Reforma da Previdência e Reforma Administrativa para os servidores, com a retirada de vários direitos importantes, a exigência de uma idade mínima de 65 ou 62 anos para aposentadoria e a criação de um teto de gastos estadual.

Já o montante da dívida pública do estado aumenta exponencialmente. Como denuncia o coordenador da Auditoria Cidadã da Dívida do RJ, de um valor inicial de R$ 9,4 bilhões em Setembro de 2017, após 3 anos, agora totalizam cerca de R$ 61 bilhões. Como uma dívida pública no valor inicial de R$ 9,4 bilhões em três anos pode chegar a R$ 61,5 bilhões? Foi um aumento de cerca de 656% no saldo da dívida financeira do Estado do Rio de Janeiro?

O novo RRF de Guedes/Bolsonaro e o papel de capacho da ALERJ

Com tantos ataques, evidentemente estabelece-se algum tipo de questionamento. Há, por exemplo, uma ação de insconstitucionalidade por parte da Alerj, pois o novo acordo modifica todas as bases do regime fiscal do Estado e ameaça o pacto federativo.

Mas, durante todo este período, as bancadas legislativas foram co-agentes da RRF, A privatização da CEDAE foi autorizada já em fevereiro de 2017, numa criminosa votação na ALERJ que ocorreu simultaneamente às agressões da Polícia Militar do lado de fora do “Palácio”. Quem garantiu essa votação, assim como todas as posteriores relativas ao RRF (também à base de gás lacrimogêneo e balas de borracha), foi o então vice-presidente da ALERJ, o já mencionado André Ceciliano (PT), então em exercício devido à prisão do titular da cadeira, Jorge Picciani (PMDB). Ceciliano, naturalmente, votou a favor da privatização e dos cortes.

Depois de tudo isto Ceciliano continua no PT e hoje, como presidente da Assembleia, virou um dos principais agentes da “governabilidade” do Estado. A CEDAE foi leiloada no final de abril de 2021, com 2 de seus quatro blocos arrebatados por um consórcio liderado pelo BTG-Pactual, banco fundado, “coincidentemente”, pelo ministro-banqueiro Paulo Guedes. Ceciliano e parte da Alerj deram um show de hipocrisia ao tentar proibir a votação que eles mesmos apoiaram anos antes, o que evidentemente não teve resultado. Com isso, 80% dos trabalhadores da CEDAE podem ser demitidos no próximo período e as contas de água das famílias vão ficar muito mais caras.

Levar para as ruas a luta contra o RRF

Por todos estes motivos, nós do PSTU fazemos um chamado a todas a toda militância e um chamado a responsabilidade das organizações que se dizem de oposição a Bolsonaro e Claudio Castro – é necessário não só questionar como lutar contra o RRF do Rio.

A crise econômica e social do nosso Estado segue se aprofundando. O número de desempregados subiu 48% e são milhões hoje em situação de completa vulnerabilidade. Qualquer política de contenção fiscal só agravará esta situação O investimento em saúde, auxílios de renda e moradia é uma questão de vida e morte.

A mudança das condições mínimas de vida de milhões só podem ocorrer a partir de medidas profundas. Deve-se partir não apenas da revogação do RRF (e da Lei de Responsabilidade Fiscal), como também do não pagamento de toda a dívida pública. Não basta dar fim às isenções fiscais, como será necessário uma política fiscal agressiva, atacando os lucros dos bilionários, das grandes empresas e dos banqueiros. É necessário proibir a remessa de lucros e taxar fortemente as multinacionais, nacionalizando os setores essenciais e as 100 maiores empresas, que controlam 70% da economia. Também é necessário prender todos os envolvidos em corrupção, assim como expropriar dos bens de corruptos e corruptores.

-Não ao RRF!

-Fora Bolsonaro, Mourão e Claudio Castro!

-Contra o sucateamento dos serviços públicos! Não as reformas administrativas federal e estadual!

-Defender a soberania! Impedir as privatizações!