Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

 Sempre que falamos de cinema, é bom lembrar um “princípio” básico da“estética marxista” (ou seja, do estudo sobre as artes baseado na teoria do materialismo histórico): filmes, mesmo quando se debruçam sobre “fatos reais”, nunca podem ser vistos como “documentos históricos” ou retratos fiéis de uma determinada realidade. Eles são, muito mais, “documentos” da época em que são produzidos.

São obras de ficção e expressões da criatividade humana, cujo resultado mescla questões do “aqui e agora”, que vão da subjetividade, referências e ideologia de quem os produzem (diretores, roteiristas, patrocinadores etc.) até pressões do mercado e reflexos distorcidos daquilo que se passa na luta de classes. Por isso, são interessantes para pensar o presente, que, como sabemos,também molda o nosso olhar sobre o passado.

Um símbolo contra as ditaduras

O filme dirigido por Moura é exemplar. Primeiro, porque boa parte das polêmicase até mesmo do prestígio do filme se relacionam ao presente e à verdadeira saga que tem marcado sua trajetória, desde que estreou no Festival de Berlim, em 2019, até chegar às telas brasileiras, somente este ano, muito em função dos embates com o autoritarismo reacionário do governo Bolsonaro.

Como também é evidente que o simples resgate de Marighella, centrando particularmente no período pós-golpe de 1964, está sintonizado não só com a oposição aos atuais delírios ditatoriais de Bolsonaro, mas também com a leitura que um setor da esquerda faz de sua chegada ao poder. Da mesma forma que é impossível não mencionar que a escolha de um ator negro é um reflexo da luta, cada vez mais intensa, contra o “embranquecimento” que marca tanto nossa História quanto nosso cinema.

Mas, se estas escolhas fazem parte dos méritos e qualidades do filme, outras tantas contribuíram para que as contradições e complexidade de alguém como Marighella fossem diluídas numa narrativa que, muitas vezes, o aproxima mais de um herói trágico e mítico do que do dirigente político que foi.

Uma reação ao “terrorismo de Estado”

Há, contudo, muito de instigante na proposta de Moura. Considerando os minutos iniciais do filme, não é pouco importante que, de cara, o diretor deixe evidente que sua obra “tem um lado”. Letreiros sobrepostos às cenas da época revelam a violência e brutalidade do regime militar, denunciam a cumplicidade ativa de empresários, da imprensa e dos Estados Unidos (cuja presençaé constante no decorrer do filme) e nos lembram que a resistência, apesar de ter envolvido vários setores da sociedade, teve, num primeiro momento, os estudantes na linha de frente.

E é, aí, que Moura introduz o que parece ser a “tese” que quer defender através do filme: aqueles foram 21 anos em que os militares e seus aliados decidiram tratar o povo como inimigo, instaurando uma forma cruel, covarde e “suja” de “terrorismo de Estado”, o que praticamente empurrou muitos à luta armada. E se isto fez de Marighella o “inimigo público número 1” do regime, Moura quer nos fazer lembrar que também o transformou em inspiração para toda uma geração.

Um Marighella um tanto unidimensional

Um dos problemas do filme é que, ao iniciar como cenas “reais”, o público pode ser levado ao equívoco de que o que se segue é, de fato, a realidade. Algo, inclusive, que seria uma injustiça com o próprio Marighella que fica um tanto “aprisionado” no figurino de um “herói trágico”, o que faz com que surja como um personagem sem muitas das complexas dimensões do líder da ALN.

Algo acentuado por outra escolha “questionável”: contar a história embalada num gênero feito sob medida para “seduzir” o público, um filme de “ação”. O resultado é o apelo exaustivo à “câmara na mão” e às cenas de perseguição e tiroteios e do suspense dramático entrecortado por diálogos que, também, muitas vezes surgem como “frases de efeito” pronunciadas como se os personagens estivessem num carro de som ou num palanque.

Ver, para lembrar e não deixar que se repita

Seja como for, “Marighella” se transformou num filme “obrigatório”. Não só porque assisti-lo acabou virando um símbolo de rebeldia contra as investidas autoritárias de Bolsonaro. Problemas à parte, o filme pode, sim, instigar a curiosidade sobre o período e, acima de tudo, como ponto de partida para que pesquise e estude tanto a ditadura quanto a resistência a ela.

Por fim, não há como não mencionar a excepcional trilha sonora. Toda ela do “aqui e agora”, a começar pela genial inclusão, logo no comecinho, de “Monólogo ao pé do ouvido/Banditismo por uma questão de classe” (Chico Science, Nação Zumbi e Sepultura) que, ainda por cima, coloca Marighella dentre tantos e tantas outros que deram suas vidas pelo povo, como Zapata, Antonio Conselheiro, Zumbi, Luiza Mahin etc. Um lugar que ele merece.

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