Soraya Misleh, de São Paulo
Texto originalmente publicado no site Monitor do Oriente Médio
O reality Big Brother Brasil (BBB 2022) conta com uma participante que deu um show contra o apartheid israelense: a rapper Linn da Quebrada. Como uma mulher negra, travesti, da periferia, que conhece bem a opressão e discriminação, a cantora se somou ao boicote cultural, em suas próprias palavras, “como forma de protesto contra Israel e suas políticas genocidas sobre a Palestina”. Em maio de 2018, ela se recusou a participar de um festival em Tel-Aviv, o TLVFest, usado pela ocupação como estratégia de pinkwashing.
A atitude, que lhe rendeu ataques, mas também apoios importantes como o da ativista Angela Davis, revelou a coragem e a coerência da rapper.
Agora sob os holofotes na Globo, houve quem expressasse apoio a quem não se permitiu ser usada para normalizar o apartheid e encobrir seus crimes contra a humanidade. Em uma tentativa de ‘limpar’ suas violações dos direitos humanos e internacional, Israel tenta se remarcar ou se apresentar como normal – mesmo ‘iluminado’ – por meio de um conjunto intrincado de relações e atividades que abrangem atividades de alta tecnologia, culturais, legal, LGBT e outras. Um princípio-chave que sublinha o termo normalização é que ele é inteiramente baseado em considerações políticas (…) e está, portanto, em perfeita harmonia com a rejeição do movimento BDS de todas as formas de racismo e discriminação racial. Combater a normalização é um meio de resistir à opressão, seus mecanismos e estruturas […]”, explica artigo divulgado no site da campanha de boicote cultural. Essa compreensão está presente em afirmação de Linn à época: “uma postura cada vez mais interseccional em nossas criações e lutas diárias”.
Antissionismo não é antissemitismo
A ofensiva à artista traz a já desgastada falácia de que antissionismo é antissemitismo, principal instrumento do Estado de Israel para tentar silenciar as críticas legítimas ao apartheid e propaganda para atacar o BDS (boicote, desinvestimento e sanções).
O falso argumento não sobrevive a uma mínima análise da realidade. Sionismo é um projeto político colonial e opor-se é se posicionar contra a limpeza étnica, o apartheid, a ocupação, os crimes contra a humanidade. Antissemitismo é a discriminação contra semitas, entre os quais judeus. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.
Como escreveram Shajar Goldwaser, Bruno Huberman e Iara Haasz, de uma rede global judaica por justiça em Palestina/Israel e no mundo, em artigo para a Folha de S. Paulo no ano de 2018, “é preciso questionar e condenar o uso do antissemitismo como ferramenta política para silenciar críticas ao regime israelense, assim como demandar precisão na linguagem e responsabilidade nessas críticas. Urge diferenciar o judaísmo do regime de discriminação e controle imposto pelo Estado de Israel ao povo palestino. Afinal, o judaísmo não tem nenhuma relação com os sistemas de leis distintos por critérios étnico-raciais adotados por Israel, tampouco com os ataques militares israelenses a civis desarmados, demolições de casas palestinas, restrição de movimento e acesso a água a não judeus; ou com a constante expulsão de palestinos e palestinas de suas terras desde 1948”.
O BDS tem se posicionado repetidamente contra todas as formas de opressão e discriminação, inclusive antissemitismo, islamofobia e xenofobia. Boicote é legítimo em situações como a que os palestinos estão submetidos. Um regime institucionalizado de apartheid, uma ocupação desumana, a Nakba (catástrofe) contínua. Ou alguém condenaria hoje um artista por aderir à campanha internacional de boicote que ajudou a pôr fim ao apartheid na África do Sul nos anos 1990? Esse é o modelo. O título do artigo de Shajar, Bruno e Yara sintetiza: “Solidariedade não é antissemitismo.”
Linn da Quebrada deveria servir de exemplo a outros artistas. Assim como abraçou os palestinos e palestinas, agora todos os que defendem direitos humanos e lutam contra a opressão e exploração devem cercá-la de solidariedade. “Das favelas brasileiras à Faixa de Gaza, da luta de negros e negras nos EUA ao movimento antiapartheid da África do Sul, estamos juntas lutando pela liberdade, igualdade e justiça de nossos corpos”, escreveu Angela Davis à rapper em 2018. E continuou: “Você ajudará a ecoar as vozes dos palestinos e palestinas, nós ecoaremos a sua e, juntas, faremos mais barulho do que qualquer esforço de propaganda opressiva possa parar.”
A Linn da Quebrada, os versos do poeta nacional da Palestina, Mahmud Darwish: “Nós sofremos de um mal incurável que se chama esperança. Esperança de libertação e de independência. Esperança de uma vida normal, na qual não seremos nem heróis nem vítimas. Esperança de ver nossas crianças irem à escola sem riscos. Para uma mulher grávida, esperança de dar à luz um bebê vivo, num hospital, e não uma criança morta diante um posto de controle militar. Esperança de que nossos poetas verão a beleza da cor vermelha nas rosas e não no sangue. Esperança de que esta terra reencontrará seu nome original: terra de amor e de paz. Obrigado por carregar conosco o fardo dessa esperança.”