Mariucha Fontana
Mariúcha Fontana
No dia da especulação sobre a iminente demissão do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS), parecia que Bolsonaro iria praticamente decretar o fim isolamento social horizontal, defendido e aplicado por governadores, aliás, de maneira bastante parcial e insuficiente.
Como bem retratou Luís Fernando Veríssimo: imaginamos um Weintraub na Saúde
Afinal, a política de Bolsonaro é genocida ao promover carreatas da morte contra o isolamento social, fazer campanha para que as pessoas desobedeçam a quarentena e saiam de casa; se negar a decretar estabilidade no emprego e boicotar medidas sociais que podem ajudar os setores mais pobres a ficar em casa. Se aplicada até o final tal política, morreriam mais de 1 milhão de brasileiros.
No final do dia, coube a Mandetta declarar que continuava ministro.
As redes sociais foram tomadas de memes com Bolsonaro de Rainha da Inglaterra, perante o recém-nomeado ministro da Casa “Civil”, o general Braga Netto. Ainda será preciso analisar em mais profundidade o grau de tutela das Forças Armadas sobre Bolsonaro. Uma coisa é certa, o Executivo Federal é militarizado e a cúpula das Forças Armadas, ainda que através de generais no governo, se mete como mais um poder na relação entre os poderes. E nós não estamos entre aqueles que confiam na cúpula das Forças Armadas, como historicamente fazem democratas e reformistas. É só lembrar que Pinochet foi nomeado ministro por Allende.
Porém, o enfraquecimento e o isolamento político de Bolsonaro, no tocante ao combate à pandemia do coronavírus, é patente, inclusive dentro do seu próprio governo.
Pelo “Fica Mandetta” juntaram-se a cúpula das Forças Armadas, o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal, os governadores, a imprensa, dois dos três setores do governo – os militares e os ministros Sérgio Moro e Paulo Guedes -; e também a oposição parlamentar de conciliação de classes (PT, PCdoB e PSOL), como o tweet “Fica Mandetta” de Marcelo Freixo (PSOL-RJ) explicitou. Ainda que, para demover Bolsonaro da demissão, segundo toda a imprensa, contou-se especialmente com a ala militar.
Estando 76% da população a favor do isolamento social e contra a política de barbárie do presidente, os panelaços diários nos grandes centros explodiram mais cedo naquele dia, gritando das janelas: Fora Bolsonaro!
Ao o ministro aparecer como contraponto ao discurso genocida de Bolsonaro, e ser aclamado pela mídia (junto com os governadores, especialmente Dória, Witzel e Flávio Dino), sua popularidade sobe nas pesquisas. Mas, nos de baixo e também nos setores médios, apesar das ilusões, o que há é a aspiração de que exista realmente quarentena social, preocupação com a catástrofe sanitária e social, e crescente vontade de que saia Bolsonaro.
Já a ampla unidade nas alturas em torno do “Fica Mandetta” tem outros motivos e acordos no atacado: estão todos contra botar fora Bolsonaro do governo já, com distintos argumentos; e estão a favor da PEC do Orçamento de Guerra (aliás, desta PEC, inclusive Bolsonaro está a favor, embora tenha outras prioridades). Do “Aliança” ao PSOL votaram todos – a toque de caixa e sem nenhuma discussão com a população – a favor dessa PEC do Orçamento de Guerra que aproveita a pandemia para dar mais dinheiro aos banqueiros e atacar os trabalhadores, os pequenos empresários e os pobres desse país.
“Unidade Nacional” e Orçamento de Guerra
Temos então dois setores burgueses, com duas políticas diferentes perante à pandemia do coronavírus. Mas esses dois setores, frente à catástrofe social e à economia, possuem uma posição comum no atacado (apesar de algumas diferenças no varejo). Ambos atuam para jogar a crise nas costas da classe trabalhadora.
Em relação à pandemia, a política de Bolsonaro é a de genocídio puro e simples. Já a dos governadores e de Mandetta é de isolamento social horizontal, porém muito insuficiente.
O isolamento social aplicado pelos governadores e defendido pelo Ministério da Saúde é muito parcial: mantém milhões de pessoas trabalhando em setores não essenciais, apenas para assegurar o lucro dos capitalistas, fazendo da classe trabalhadora bucha de canhão. Para não falar da falta de planejamento, de equipamentos de proteção para profissionais de saúde, de leitos, máscaras, além de não assegurarem emprego e renda para que a população fique em casa.
Tudo isso mostra o quão obsoleto está o sistema capitalista. Mostra também que políticos como Mandetta, Dória e Witzel governam para os capitalistas. Basta ver a denúncia da Folha de S. Paulo sobre os “hospitais de campanha” que eles construíram. Ao invés de fortalecerem a estrutura do SUS, entregaram os hospitais ao gerenciamento de empresas privadas acusadas de corrupção, às quais estados e prefeituras pagam milhões de reais. Nestes mesmos hospitais, os profissionais de saúde são contratados como trabalhadores emergenciais e temporários, sem garantias de salário e emprego caso sejam eles mesmos infectados, conforme noticia o jornal.
Então, apesar de terem uma política diferente da posição genocida de Bolsonaro, a política de Mandetta e dos governadores está muito distante do que realmente é necessário e possível para enfrentar a situação.
Ou seja, no combate à pandemia há uma diferença real entre eles, mas em relação à catástrofe social e à questão econômica, há, em essência, um acordo.
Da mesma forma como defenderam a “reforma” da Previdência e trabalhista, defendem agora usar a pandemia para rebaixar salários, tirar direitos e cortar verbas sociais. De quebra, fazer do “Orçamento de Guerra” mais um instrumento para privilegiar bancos e grandes empresas. Um negócio rentável para banqueiros.
Como alerta Maria Lúcia Fatorelli, da Auditoria Cidadã da Dívida: “O Objetivo dessa PEC do Orçamento de Guerra é legalizar a indecente remuneração da sobra de caixa dos bancos que desviou, de forma ilegal, cerca de R$ 1 trilhão de recursos públicos em 10 anos (2009 a 2018), segundo dados do balanço do próprio Banco Central, além de jogar os gastos com a calamidade do coronavírus nas contas das áreas sociais! A PEC do ‘Orçamento de Guerra’, no art 115 § 10 (ADCT), promove salvamento de empresas e bancos, transferindo para os cofres públicos o ônus de papéis podres em poder do mercado (…)” (leia a íntegra da nota técnica da Auditoria Cidadã aqui)
Mas, não é só a questão do Orçamento de Guerra. O governo permite e não faz nada contra demissões em massa. Pior, as Medidas Provisórias, como a MP 936, que reduz jornada e salários, ou a 905 (da “carteira verde e amarela”), aprofundam a reforma trabalhista, rebaixam jornada e salários, barateiam demissões em massa e precarizam totalmente o trabalho.
Para o Posto Ipiranga do Bolsonaro (o ministro Paulo Guedes e a sua equipe econômica), a ficha da pandemia custou a cair. Agora está vendo que seu liberalismo a lá Chile de Pinochet não segura essa “gripezinha”. Aliás, também na crise de 2008 os capitalistas foram todos salvos com dinheiro público. Mas agora o tsunami é maior. No mundo inteiro o liberalismo está questionado.
Aqui também o plano original do Paulo Guedes, se antes da pandemia já estava fazendo água, agora, de certa forma, foi para o vinagre. Daí o “Orçamento de Guerra”, para despejar grana para banqueiros e grandes empresários. Mas, longe de fazer concessões aos trabalhadores, ao contrário, aproveitam-se da pandemia para privilegiar especuladores parasitas como eles mesmos, com o apoio do lumpen empresariado bolsonarista, da cúpula das Forças Armadas, do Congresso Nacional, do STF e da imprensa. Aproveitam-se da pandemia para dar um salto na exploração levando a um empobrecimento e derrocada dos salários da classe trabalhadora, mantendo intocados os lucros escandalosos dos bancos e grandes empresários.
A esquerda parlamentar de conciliação de classes deveria ter denunciado os R$ 600 como insuficiente e exigido muito mais, e não comemorado como se fosse a maior conquista do século. Pois, além de demorar a chegar e não resolver a situação dos milhões de trabalhadores informais que ganhavam bem mais do que isso, tem servido para jogar uma cortina de fumaça sobre os graves ataques à classe trabalhadora e a indecente transferência de recursos para os muito ricos.
Mundialmente essa epidemia está desnudando esse sistema capitalista obsoleto. Governos até então liberais começam a falar de intervenção do Estado para salvar o capitalismo. O jornal britânico Financial Times acaba de falar sobre a “necessidade de mudar a política neoliberal das últimas 4 décadas”, e aceitar um “papel mais ativo” dos governos na economia, vendo “serviços públicos como investimentos e não passivos”.
Enfim, como sempre nas crises, resolvem recorrer ao Estado para salvar o capitalismo. Lá fora também estão fazendo enormes aportes às empresas e “concessões” muito rebaixadas aos trabalhadores, como nos EUA de Trump. Aqui, todavia, é pior, porque o grau de desigualdade no Brasil é muito maior, além do que a submissão e espoliação do nosso país pelos países ricos é enorme.
A burguesia escravocrata brasileira, submissa aos países ricos, apoia a fala mentirosa e indecente de Paulo Guedes no Jornal Nacional, onde disse ser preciso combater a pandemia e também os direitos trabalhistas, que seriam, como o coronavírus, “exterminadores de empregos” no Brasil. Isso mostra que, em que pese as diferenças que possam ter em relação à pandemia, vigora uma grande “unidade nacional” para jogar a crise nas costas dos trabalhadores em prol de banqueiros e grandes empresários.
Diferenças maiores virão entre eles quando a discussão não for sobre esfolar os de baixo, mas sobre dividir os privilégios entre os de cima.
A esquerda parlamentar como apêndice da “Unidade Nacional” dos de cima
O PT, PCdoB e PSOL estão contra colocar Bolsonaro para fora. A direção do PSOL desautorizou, e o deputado Marcelo Freixo polemizou contra o pedido de impeachment de Bolsonaro protocolado por três deputados da esquerda do partido.
Depois, os partidos de oposição no Congresso Nacional assinaram um manifesto em prol da “renúncia” de Bolsonaro, sabendo que isso não tem exatamente nenhuma consequência.
O argumento deles todos é que lutar para derrubar Bolsonaro atrapalha a luta contra a pandemia do coronavírus, e em prol de medidas que defendam a população. Mas, o primeiro obstáculo contra o isolamento social é justamente Bolsonaro, que usa o cargo de Presidente e a estrutura do Estado para chamar as pessoas a saírem de casa, fazer sua campanha para 2022 e organizar um partido de ultradireita com traços fascistóides. Então, como é que derrubar Bolsonaro atrapalha a luta contra a pandemia?
Acontece que estes partidos defendem o sistema capitalista e o regime político atual. Para eles o centro da sua atividade deve ser o Congresso, os mandatos nos legislativos ou Executivos nos municípios e estados. Não veem que a solução para a crise está na luta contra Bolsonaro, mas também contra o Congresso (que representa os interesses dos banqueiros, do agronegócio e dos grandes empresários em primeiro lugar), e o próprio sistema capitalista. Não veem que só a luta dos de baixo e a auto-organização da classe trabalhadora, do povo pobre e, inclusive, dos setores médios, é que pode derrotar Bolsonaro, e também evitar adiante um auto-golpe.
É por isso também que ficam exultantes com os parcos R$ 600, que sendo bem mais que os R$ 200 que propunha originalmente Bolsonaro, não chega nos 2,3 salários que em média ganha o trabalhador do setor informal e não atende os mais de 110 milhões de trabalhadores, desempregados, semi-proletários e autônomos que ficarão sem renda. Não ficam indignados quando o Congresso Nacional destina menos de R$ 100 bilhões aos trabalhadores e dá mais de R$ 1 trilhão aos banqueiros. Fecham os olhos aos desmandos da patronal e governadores contra a classe trabalhadora e não exigem a suspensão imediata de toda atividade não essencial, com manutenção do emprego.
Pior, votaram todos pela aprovação do “Orçamento de Guerra”, como pediu Guedes e Rodrigo Maia, sendo que este não socorre os pobres, mas os ricos. O PSOL chegou a apresentar um destaque para retirar a possibilidade do Banco Central comprar títulos de crédito público e privado, mas ao final votou a favor da PEC, legitimando a medida como um todo.
Além do tweet em que pede “Fica Mandetta”, o deputado Marcelo Freixo deu uma entrevista esclarecedora ao Uol, onde fica nítida essa política de sustentação do regime e de propostas cosméticas inteiramente nos marcos da ordem atual: “A sociedade bater panela e gritar: ‘fora, Bolsonaro!’ é importante, justo e necessário. Mas o Congresso não pode, neste momento, jogar suas forças para o Bolsonaro. Então, o desejo do impeachment, que é correto e compreensível, não poderia ser realizado neste momento. Imagina se a gente para a votação de uma renda mínima ou uma política de recursos para hospitais de campanha para tratar de Bolsonaro e paralisar o país por seis meses? ”.
Em outro trecho diz: “As ações com relação ao coronavírus têm sido interessantes. Estamos conseguindo, com todo o campo progressista, fazer uma proposta comum. Tem que nascer daí um caldo de cultura que nos gere responsabilidade e, passada essa crise, não vire cada um para o seu quintal. Mas que possamos buscar na figura do Fernando Haddad, do Ciro Gomes, do Flávio Dino – considero o Flávio Dino uma pessoa muito importante nesse processo republicano da nova construção de um campo democrático. ”
Já Lula teceu elogios a João Dória, que retribuiu. Disse Lula: “Chegamos ao ponto do Doria ter que mandar a PM invadir fábrica pra pegar máscara. A gente tem que reconhecer que quem tá fazendo o trabalho mais sério nessa crise são os governadores e os prefeitos”. Respondeu Dória: “Temos muitas diferenças. Mas agora não é hora de expor discordâncias. O vírus não escolhe ideologia nem partidos. O momento é de foco, serenidade e trabalho para ajudar a salvar o Brasil e os brasileiros”
Flávio Dino (PCdoB), por sua vez, reafirmou em entrevista ao jornal El País, declaração que fez na reunião do Conselho da Amazônia com governadores da região e o vice de Bolsonaro, onde, por incrível que possa parecer, defendeu que Mourão governe: “Tivemos uma reunião com diálogo técnico, respeitoso, sensato. Claro que Mourão não é do meu campo ideológico. Mas, se Bolsonaro entregar o governo para ele, o Brasil chegará em 2022 em melhores condições“.
É necessário construir uma alternativa socialista e revolucionária
Estamos vivendo provavelmente a maior crise mundial do sistema capitalista. Perante esse processo, temos em nosso país um governo militarizado e genocida, mas em crise e com a popularidade em queda. Um governo que tem um projeto de ditadura, o qual, porém, não tem relação de forças para se impor no momento. Temos também outro bloco burguês, que busca uma saída de “unidade nacional”, jogando a crise sobre as nossas costas. Tal bloco cooptou também a oposição de esquerda parlamentar e de conciliação de classes (PT, PCdoB e PSOL), que imaginam defender a “democracia” burguesa com uma “frente ampla”, sendo apêndice desse bloco burguês.
A burguesia, ao mesmo tempo que joga todo peso da crise sobre os de baixo, teme uma explosão social logo adiante. Tenta evitá-la com concessões irrisórias, sem deixar de preparar a repressão. Estão aí as Forças Armadas para combater o “inimigo interno”, cumprindo função de polícia como na utilização da Força Nacional nas ações de Garantia da Lei e Ordem (GLO), chamadas para intervir inclusive em estados em que o PT governa. Mais do que isso, a cúpula delas está intervindo politicamente como um poder a mais junto aos demais poderes.
Apesar de que a epidemia dificulta manifestações de rua e várias ações, os de baixo (a classe operária, trabalhadores, o povo pobre e mesmo os setores médios) têm encontrado formas alternativas de mobilização. Mais importante, o sistema capitalista ficou nu com a crise, colocando na ordem do dia a necessidade de medidas anticapitalistas e socialistas, que se tornam muito compreensíveis. Tende a ser crescente a revolta contra os de cima, contra o governo, o regime e o sistema. Num momento como este é fundamental apresentar e avançar na construção de uma alternativa socialista e revolucionária. É hora de avançar em luta, consciência e organização. A classe trabalhadora, a juventude, os setores oprimidos e a maioria do povo devem confiar nas suas próprias forças e na sua ação para defender a vida.
Devemos fazer toda unidade na ação necessária com quem quer que seja para lutar e derrotar Bolsonaro, ou para impedir qualquer tipo de ataques ou medidas autoritárias. Mas precisamos confiar nas nossas forças e ter como objetivo lutar por uma outra sociedade, um governo socialista dos trabalhadores. Não uma “frente ampla”, que só pode nos reservar como destino seguir sendo um país subordinado, em processo de recolonização e dos mais desiguais do mundo.
Queremos botar fora Bolsonaro e Mourão já! E construir uma alternativa na qual os trabalhadores governem através de conselhos populares para mudar o sistema. E não repetir de novo um governo de colaboração com a burguesia (os 1% de bilionários) como fez o PT, que em 13 anos nem a questão do saneamento básico conseguiu resolver.