Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU
Depois que o governo sul-africano impôs, com um atraso irresponsável, o isolamento social por 21 dias (leia o quinto artigo desta série), a partir da madrugada do dia 27 de março – e diante do inquestionável e rápido aumento de casos em todo o continente – vários países tendem a adotar medidas semelhantes. Gana que tem 152 contaminados e registrou 05 mortes, e Zimbabwe 07 contaminados e 01 morte iniciariam o confinamento em 30 de março, juntando-se, assim, ao Marrocos que já possuía 479 casos confirmados e 26 mortes, Ruanda com 70 casos confirmados e nenhuma morte e Zimbabwe 07 contaminados e 01 morte, que tiveram iniciativas neste sentido na semana passada.
INTRODUÇÃO | Especial coronavírus e África
ARTIGO 1 | Covid-19 na África: uma bomba-relógio um terreno minado
ARTIGO 2 | Uma bomba prestes a explodir, do Norte ao Sul da África
ARTIGO 3 | Governos africanos e prevenção da Covid-19: hipocrisia e irresponsabilidade
ARTIGO 4 | África: um continente debilitado e uma rede hospitalar doente
ARTIGO 5 | África do Sul: O epicentro, não por acaso
Na Costa do Marfim com 140 casos confirmados e nenhuma morte (140/00) de acordo com a Rádio França Internacional (RFI), o presidente Alassane Ouattara decretou, no dia 24 de março, o fechamento de restaurantes e parques, a introdução de um toque de recolher entre 21h e 5h da manha e, agora, pretende adotar uma política “de confinamento progressivo, por área geográfica, de acordo com a evolução da pandemia“.
No Senegal (142/00), onde os casos dobraram entre os dias 24 e 30 de março, o presidente Macky Sall havia decretado Estado de Emergência em todo o território no início da semana passada, com toque de recolher entre as 8 horas da noite e as 6h da manhã, além da restrição de movimento, a proibição de qualquer atos e reuniões públicas, além do fechamento de locais públicos e de reunião. E, agora, já prometendo que “essas medidas não abrangentes podem evoluir de acordo com as circunstâncias“.
Diante dos obstáculos, descaso e repressão
Esse é o mesmo tom que tem se visto no resto da África. Contudo, para além dos vacilos irresponsáveis dos governos, há uma série de problemas semelhantes aos relatados sobre a África do Sul que precisam ser encarados para garantir as necessárias medidas de isolamento social. Questões bastante bem conhecidas pelo povo das quebradas, periferias, comunidades, favelas, áreas rurais isoladas, territórios indígenas e quilombolas do Brasil. Só que elevados à escala continental, envolvendo mais de 1 bilhão de pessoas.
Há, desde temas culturais – como a tradição de várias gerações habitarem numa mesma moradia, juntamente com agregados, ou de que é uma “obrigação” tratar os idosos no interior da família – até problemas sociais e econômicos, como já vimos em relação aos “townships” sul-africanos.
O fato é que, na África, por mais necessário que seja, não é sempre que é possível ficar em casa. Na já mencionada edição de março da revista Science, os especialistas chamavam a atenção para a quase impossibilidade de estabelecer políticas de distanciamento e isolamento sociais no continente africano. Algo sintetizado por Francine Ntoumi, uma parasitologista e especialista em saúde pública na Universidade Marien Ngouabi (República do Congo): “Eu temo que será um caos. Como nós iremos proteger os mais velhos? Como a gente pode dizer para a população dos vilarejos para que lavem as mãos se não há água ou usar gel para higienizar suas mãos, se eles não tem nem o dinheiro suficiente para comer?”
E isto não é tudo. Assim como no Brasil, mesmo quando as políticas de isolamento social são adotadas, a última coisa em que os governos sul-africanos estão pensando é como garantir a sobrevivência das pessoas. E, na África, em particular, ao invés de criarem estas condições, os governos têm investido numa resposta lamentavelmente conhecida: a repressão.
Assim como já mencionado no artigo sobre a África do Sul que possui 1.280 casos confirmados, sem mortes (1.280/00) e no caso do Quênia (42/01), onde a polícia atacou, com bombas de gás, centenas de pessoas que faziam fila na porta de um supermercado, também houve episódios de repressão em Uganda (33/00), onde dois homens foram baleados pela polícia por terem ignorado o decreto que proíbe a circulação de transporte público.
“O que a gente vai comer?”
O problema é que o que a população precisa, ao contrário de balas e cassetetes, são condições objetivas para poderem fazer a única coisa que, no momento, pode nos proteger contra a pandemia. Condições que, no caso da África (assim como das periferias brasileiras), vão pra muito além do “home office” (trabalho em casa) ou do “estudo online” (também pelo computador).
Exemplos não faltam. E um deles vem de Gana (que registrou o aumento de 30 casos em apenas um dia), onde, como mencionado, o isolamento será imposto a partir de segunda-feira, dia 30 de março, mas apenas nas duas maiores áreas urbanas do país (as regiões metropolitanas das chamadas Grande Accra e Grande Kumansi), uma medida que, primeiro, não é recomendada pelos especialistas, que defendem a aplicação da quarentena em escala nacional.
De qualquer forma, dias antes, em 25 de março, quando o número de casos confirmados era a metade, uma reportagem feita pelo portal Africa News, registrou uma conversa entre um motorista de aplicativos (Ali Seidu) e um servidor público (Abraham Ofei) que exemplifica bastante bem as contradições enfrentadas na África.
O primeiro temia a decretação do confinamento e, na verdade, se opunha, com uma única pergunta: “O que é que a gente vai comer?”. Já o segundo, paradoxalmente também pensando na sua sobrevivência, denunciava a inércia do governo, defendendo a medida sob o seguinte argumento: “Se eles não fizerem isso logo, quando decidirem já será tarde demais!”.
Por trás da conversa, estão a concretude e a crueza de uma realidade que atravessa o continente: o desemprego, a “informalidade” ou a mais pura indigência. Os milhões e milhões vivem sem absolutamente nada, em completa escassez, numa situação bastante bem definida por uma expressão da língua inglesa que acompanhou uma foto de Brian Inganga (Associated Press) que estampou inúmeros jornais africanos no dia 24 de março, quando as propostas de isolamento começaram a ser seriamente discutidas: aqueles que vivem “hand to mouth”, que, no pé da letra, seria algo como os que sobrevivem “daquilo que cai na mão e vai direto pra boca”.
Acompanhando a foto, que mostra um morador de rua de Nairobi, no Quênia, a legenda sintetizava o que se passa pela cabeça de milhões de africanos e africanas neste momento: “Muitos moradores de favelas dizem que ficar em casa ou adotar medidas de isolamento social é impossível para quem vive “hand to mouth”, recebendo salários diários por trabalho informal, sem comida ou assistência econômica do governo, assim como também é [impossível] manter higiene onde uma latrina pode ser compartilhada por mais de 50 pessoas.”
Uma quebrada com dimensões continentais
A foto foi reproduzida em inúmeros jornais do continente exatamente porque este é um problema que, de forma alguma, se limita aos países já mencionados ou às pessoas que vivem nas ruas. Sofian, um vendedor marroquino, também falou sobre o tema à agência de notícias Africa News, em 30 de março: “A maioria das pessoas que vivem neste bairro moram em um casas que têm um único cômodo, com famílias de seis ou sete pessoas. Elas não tem como ficar em casa porque é superlotado, e o isolamento compulsório se torna muito difícil”.
Algo que também foi destacado pelo portal de uma organização norte-americana chamada Atlantic Council, no mesmo dia 24, num artigo que discutia a profunda desigualdade social existente no interior do continente e, inclusive, de cada um dos países.
Bronwyn Bruton, diretora da entidade e responsável pelos estudos sobre África Central, lembra que “nos enclaves mais abastados de Joanesburgo ou Nairóbi, os profissionais de colarinho branco serão capazes de manter as crianças estudando em casa e trabalharem no esquema de ‘home office’ [pelo computador] no decorrer da crises, assim como os profissionais estão fazendo em Washington, DC.”
Contudo, Bruton lembra que esta, de foram alguma, é a realidade predominante na África, onde “mais de 70% dos africanos que moram em cidades – aproximadamente 200 milhões de pessoas – residem em favelas lotadas, com acesso limitado a encanamentos ou eletricidade (…); cerca de 40% dos africanos vivem em regiões com escassez de água, nas quais a obtenção de acesso a água limpa – sem falar em sabão – é um obstáculo diário insuperável e, para essas populações, até medidas simples para impedir a propagação do vírus, como lavagem frequente das mãos, estará fora de alcance.”
Obstáculos que terão que ser enfrentados, cotidianamente com outra preocupação em mente, já que, ainda segundo Bruton, “para os 85% dos africanos; ou seja, todos aqueles que vivem com menos de US$ 5,50 por dia, a interrupção do trabalho será uma ameaça existencial. Abrigar-se por longos períodos de tempo – semanas ou mais – simplesmente não será possível”.
Se isso não bastasse, em vários países há de se lidar com a interferência de lideranças religiosas, principalmente as neopentecostais fundamentalistas, que têm atuado de forma extremamente irresponsável na África, como no já citado caso do Zimbabwe, onde a Ministra da Defesa, Oppah Muchinguri, defende que a COVID-19 é uma “punição de Deus” contra os que ameaçam o país (os EUA e algumas nações européias), uma insanidade na qual está implícita a ideia de que os zimbabuenses estão imunes à pandemia.
lgo semelhante está ocorrendo na Nigéria, o país mais populoso do continente, onde, apesar dos 97 casos registrados até 28 de março, um grupo de pastores, segundo a RFI, tem bombardeado as redes sociais com mensagens que afirmam que Deus não permitirá que o país seja atingido.
Socialismo ou barbárie
O grande temor, contudo, na maioria da população do continente tem a ver com a insegurança em relação às questões mais práticas e concretas a começar por: como se manter isolado se se é necessário trabalhar; ou, se for realmente necessário ficar em casa, como garantir a sobrevivência.
Mas, por tudo o que vimos até aqui, esta situação sem precedentes criada pela pandemia tem história. Uma história de exploração e opressão que potencializa os efeitos de uma doença cujo descontrole é, por si só, um indício de que os investimentos feitos pelo sistema capitalista (em pesquisa, fabricação de remédios, criação de vacinas etc.) não têm como prioridade as vidas da enorme maioria da humanidade, mas, sim, os interesses de um 1% da população, cuja ganância historicamente tem se transformado em crimes genocidas.
A pandemia da COVID-19 somente escancarou, de forma terrível, o quão doente é a sociedade em que vivemos. Por isso, assim como no Brasil e em todo resto do mundo, isolados em suas casas, ou lutando para sobreviver onde for possível, cada vez mais gente está percebendo que este é um sistema apodrecido. Um sistema que fede a cadáveres. E, por isso, em todos cantos do mundo, e também na África, pessoas estão se organizando e discutindo uma solução que vá para além da crise desta pandemia e da grande crise econômica mundial que se avizinha.
As atrocidades que estamos vendo ao nosso redor devem servir para lembrar de algo que os socialistas revolucionários têm dito há muito tempo. Algo que está na essência dos textos de Marx e Engels, a começar pelo Manifesto Comunista (1848), e que foi popularizado num texto da genial Rosa Luxemburgo, em 1916, quando o mundo também atravessava um momento de crise econômica, combinada com a tragédia criada pela disputa de mercados que explodiu na forma da Primeira Guerra Mundial e, igualmente, uma pandemia (a gripe espanhola) estava provocando mais e mais mortes.
Foi olhando para este mundo tomado pela Primeira Guerra Mundial e por uma pandemia que Rosa declarou que as alternativas para a humanidade eram: “SOCIALISMO OU BARBÁRIE”. Hoje, este lema é ainda mais atual!