Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Como afirmamos na introdução, o destaque que queremos dar não tem a ver unicamente com o fato de que, hoje, este é o país africano que registra o maior número de casos, mas também porque através de sua história recente é possível discutir o quanto da atual pandemia – em todos os seus aspectos – está relacionada com a lógica perversa do capitalismo neoliberal. Neoliberalismo que também é um empecilho para que, hoje, de fato, possamos enfrentar o problema.

Introdução
Artigo 1 | Covid-19 na África: uma bomba-relógio um terreno minado
Artigo 2 | Uma bomba prestes a explodir, do Norte ao Sul da África
Artigo 3 | Governos africanos e prevenção da Covid-19: hipocrisia e irresponsabilidade
Artigo 4 | África: um continente debilitado e uma rede hospitalar doente

Como se sabe, o país entrou em um processo de confinamento da madrugada de 27 de março, quando os casos já tinham batido na casa do primeiro milhar. Em 30 de março, o boletim matinal da Africa CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças) indicava 1.280; já no boletim da tarde, o número havia pulado para 1.346, algo que diz muito sobre a evolução da crise no país.

É preciso dar importância para um “detalhe” que tem sido pouco explorado pela imprensa de lá. Em todo o continente (com 4.760 casos de contágio notificados), 335 pessoas já se recuperaram, o que significa o já baixíssimo índice de cerca de 16% dos que estão doentes. Contudo, na África, apesar de ainda, felizmente, não haver nenhuma morte, a relação entre doentes e casos de recuperação é extremamente preocupante. Considerando-se o boletim matinal, as 31 pessoas “recuperadas” representam míseros 0,4% em relação aos 1.280 contagiados.

E para entendermos o porquê disto, é preciso, primeiro e, mesmo que brevemente, contextualizar a atual situação do país. Como se sabe, lá, negros e negras tiveram suas histórias marcadas pela ultrajante segregação do apartheid, cuja legislação foi abolida no início dos anos 1990. Hoje, contudo, os próprios sul-africanos costumam se referir ao regime em que vivem como um “apartheid neoliberal”, em função da manutenção (e, muitas vezes, aprofundamento) da enorme desigualdade socioeconômica no país.

O “apartheid neoliberal”: solo fértil para a pandemia

Uma situação que é fruto das políticas de conciliação de classe e do aburguesamento da elite negra que hoje governa o país em absoluta sintonia com a lógica do capitalismo e os interesses imperialistas, através da chamada Aliança Tripartite – o Congresso Nacional Africano (CNA) o partido que foi dirigido por Mandela; a principal central sindical do país, a COSATU, e o Partido Comunista Sul-Africano, que, há muito, não tem nada a ver com o nome que carrega.

E também é preciso que se saiba que Cyril Ramaphosa, o atual presidente, sintetiza como poucos o caráter deste governo e a trajetória (lamentável) das principais lideranças da luta contra o apartheid. Ramaphosa começou como trabalhador mineiro (nos anos 1980), virou líder da categoria, foi fundador e dirigente da COSATU, tornou-se braço direito de Mandela no chamado processo de transição, é dirigente do CNA e, ao mesmo tempo, um dos homens mais ricos do continente, tendo fundado uma empresa, a Shanduka, que tem negócios espalhados em áreas como energia, imóveis, bancos, seguros e telecomunicações.

Se isto não bastasse, desde 2007 ele é criador de gado e possui profundos laços com o imperialismo. É dono de 145 lojas do McDonald’s e membro do Conselho Consultivo da Coca-Cola e da Unilever internacionais. Mas foi como acionista e membro da diretoria da mineradora britânica Lonmin que Ramaphosa conquistou sua vaga definitiva como um dos maiores traidores e inimigos da classe trabalhadora e do povo negro, ao ser um dos responsáveis diretos pelo Massacre de Marikana, em agosto de 2012, quando autorizou pessoalmente um ataque contra mineiros em greve que deixou 34 mortos e outros 78 feridos.

O fato de que o país seja o epicentro da pandemia, bem como a possibilidade de uma catástrofe, tem a ver com tudo isto, como foi bastante bem sintetizado pelo “The Guardian”, em 16 de março: “Mais de 25 anos após a queda do apartheid, a África do Sul ainda é um dos países mais desiguais do mundo, o que se traduz no fracasso da prestação de serviços básicos ao seu povo, incluindo cuidados de saúde. 82% das pessoas que vivem na África do Sul não têm seguro de saúde e dependem de clínicas públicas e hospitais. Essas instalações estão superlotadas, com falta de pessoal e, geralmente, não conseguem lidar com a grande quantidade de doenças transmissíveis e infecciosas”.

No que se refere às condições gerais de vida, basta lembrar que os dados oficiais (que, aliás, utilizam parâmetros bastante questionáveis) indicam que 29% da população está desempregada. E mesmo estar empregado não significa muita coisa. Basta checar o Índice de Acessibilidade Financeira por Domicílio, publicado pelo “Grupo por Justiça Econômica e Dignidade de Pietermaritzburg” (PMBEJD).

Em setembro de 2019, mais da metade da população, exatos 56% dos sul-africanos (cerca de 30 milhões de pessoas) estavam vivendo com menos de 41 rands (a moeda local) por dia; ou seja, cerca de R$ 12. E, se isto não bastasse, outro um quarto dos habitantes (cerca de 14 milhões) sobrevivia com menos de 19 rands por dia (míseros R$ 5,5).

Isto significa que, de acordo com os padrões internacionais, 26 anos após a queda do apartheid, 75% dos sul-africanos estão vivendo abaixo da “linha de pobreza” ou da “extrema pobreza”. E é fácil imaginar o que isto representa em termos de desemprego, moradia, educação, direitos sociais e todas demais condições de vida. Como também não é preciso muito esforço para entender como essa situação é uma ferida aberta para a disseminação do coronavírus.

Aqui, não é possível discutir como se chegou a esta situação. Contudo, nossos leitores e leitoras sabem muito bem. A Aliança Tripartite aplicou com afinco e dedicação canina todo o receituário neoliberal: privatizações, ataques aos serviços públicos, desregulamentação das leis trabalhistas, desvio de dinheiro público para os setores privados, etc., etc, etc.

Townships: onde o confinamento pode ser um inferno

Muitos dos que defendem, corretamente, que são necessárias políticas de isolamento social e denunciam a lerdeza criminosa do governo Ramaphosa em empregá-la, também se preocupam seriamente sobre como isto poderá ser implementado e, também, como “ficar em casa” não pode ser uma política que seja imposta desacompanhada de outras medidas sociais.

No centro desta questão estão as condições de moradia dos sul-africanos, gente que vive amontoada, em condições para lá de precárias, já que, até hoje, a gigantesca maioria dos habitantes ainda mora nos chamados “townships”, as comunidades/favelas segregadas que se tornaram símbolo do regime racista, cujas estruturas e condições impedem que sejam adotadas medidas de higiene.

Na verdade, desgraçadamente, hoje, a situação é ainda pior do que na época em que os brancos monopolizavam o poder. De acordo com um estudo feito por um grupo de urbanistas (“Urban@UW”) da Universidade de Washington (EUA) – publicado em 11 de julho de 2019, em um artigo intitulado “Moradia informal, pobreza e os legados do apartheid na África do Sul” – em 1994, quando Nelson Mandela assumiu a presidência do país, “havia cerca 300 townships e favelas no país; hoje, existem aproximadamente 2,7 mil”.

Para se ter uma ideia, somente na Cidade do Cabo, com 3,8 milhões de habitantes, “60% da população vive em townships, onde serviços públicos são limitados, escolas e assistência médica são seriamente subfinanciadas e os empregos são escassos”.

E esta é exatamente a mesma situação de milhares de outras comunidades, algumas com centenas de milhares de pessoas, como, por exemplo, Soweto, nas proximidades de Johannesburgo, com quase 1,5 milhão de habitantes; Umlazi, nos arredores de Durban, com cerca de 500 mil e Khayelitsha, na região da Cidade do Cabo, com mais que 400 mil. Em todas elas, famílias numerosas se amontoam em barracos e casebres, sobrevivendo sem serviços de esgoto e saneamento básico, eletricidade, água limpa e potável.

HIV e COVID-19: uma combinação letal

Repetiremos, aqui, alguns números relativos à epidemia do HIV que citamos em um dos artigos anteriores. Contudo, antes é preciso contextualizá-los em relação à história específica da África do Sul, que nos ajudam a entender que a situação lamentável e perigosa que se vive hoje também tem os governos da Aliança Tripartite em sua raiz, mais especificamente Thabo Mbeki, que presidiu o país por quase uma década, entre 1999 e 2008.

Tendo iniciado sua militância ainda no movimento estudantil, na década de 1960, Mbeki é uma das figuras-chave na história do CNA e chegou à presidência levado pelas mãos de Nelson Mandela (de quem foi vice-presidente, no segundo mandato), sendo responsável pelo aprofundamento e ampliação das medidas neoliberais que também haviam caracterizado o governo anterior. No que diz respeito ao nosso tema, contudo, Mbeki cumpriu um papel nefasto e imperdoável.

Quando na presidência, Mbeki tornou-se um dos principais porta-vozes das desacreditadas teses de que a Aids não era provocada pelo HIV, defendendo que a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) tinha origem em questões sociais e na pobreza. Por isso, graças à intervenção direta dele, por uma década, os programas de tratamentos, inclusive com antirretrovirais, foram praticamente proibidos na África do Sul, o que, inclusive, colocou os sul-africanos na vanguarda mundial das lutas por prevenção do HIV e tratamento da AIDS.

Seja como for, o estrago já estava feito, ao ponto que, em novembro de 2008, o jornal norte-americano The New York Times, publicou um artigo responsabilizando, diretamente, Mbeki pela morte de 365 mil pessoas. E tão criminoso quanto foram os efeitos na população africana que, vendo Mbeki como sua direção na luta contra o apartheid e substituto de Mandela, demorou anos para perceber que havia sido traída também no que se refere à epidemia.

O resultado, como já mencionado, é que, hoje, a África do Sul, segundo dados de 2018 do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) tem 7,7 milhões pessoas vivendo com HIV; a cada ano há 240 mil novos casos; somente em 2018, mais de 71 mil pessoas morreram em decorrência de doenças relacionadas à AIDS e, assim como no resto do continente, acreditava-se que quase metade dos (as) portadores (as) não fazem qualquer tipo de tratamento antirretroviral.

No momento não há dados que relacionem a rápida propagação da Covid-19 no país e esta situação. Contudo, é inegável que a existência de milhões de pessoas soropositivas, que já têm algum nível de imunodeficiência vai ser determinante no comportamento do coronavírus.

Essa é a opinião, por exemplo, da professora Mosa Moshabela, da Escola de Enfermagem e Saúde da Universidade de of Kwazulu Natal, que em um artigo do portal de notícias do mundo árabe, o Al Jazeera, em 20 de março, ao comparar como o vírus está se comportando na Itália, destacou que “a diferença é que não temos uma grande população de idosos, mas, sim, um grande número de pessoas com tuberculose e HIV e os que mais serão afetados terão entre 20 e 60 anos.”

E como exemplo de que a combinação entre a Covid-19 e o HIV pode ser perigosa, podemos citar a opinião do professor Salim Abdool Karim, que coordena o principal centro de pesquisa sobre HIV/AIDS do país, localizado em Durban. Em uma entrevista concedida à agência de notícias da BBC, em 19 de março, Karim lembrou que há cerca de 2,5 milhões de sul-africanos que sequer estão se tratando com os medicamentos antirretrovirais e que, neste grupo em particular, “há uma tendência maior de desenvolvimento de infecções graves”.

Por isso é, ao mesmo tempo, emocionante e doloroso ver e ler os depoimentos de jovens africanos portadores do HIV/AIDS, que, exatamente por estarem, há décadas, em luta constante para garantir a própria sobrevivência, agora, diante da Covid-19, se colocaram na linha de frente na exigência de políticas sanitárias, econômicas e sociais.

Foram estes jovens e entidades que criaram no decorrer das décadas que, por exemplo, tomaram a frente, muito antes de Ramaphosa, de campanhas por todos os lados, divulgando os meios de prevenção, distribuindo máscaras, exigindo políticas de isolamento e pedindo para que as pessoas, se possível, ficassem em casa, através, por exemplo, da projeção de gigantescos “grafites virtuais” nas paredes dos prédios.

Confinamento com repressão

Agora o confinamento é um fato e, apesar de campanhas nefastas como “O Brasil não pode parar” também existirem por lá, a população está tentando se adaptar. E, apesar de todos os obstáculos que mencionamos, estamos entre aqueles que defendem que este também é um momento para “os de baixo” se auto-organizarem para lutar pela sua própria sobrevivência. O terrível exemplo de Milão, na Itália, não deixa dúvidas (e, esperamos, que não seja perdoado).

Em seu pronunciamento, Ramaphosa finalmente reconheceu que o país está diante da possibilidade de uma “catástrofe humana de enormes proporções” e anunciou uma política de confinamento de três semanas (até o dia 16 de abril), durante o qual, a população “está proibida” de sair de casa, sob pena de punição (multa ou seis meses de prisão), a não ser para comprar comida, medicamentos, receber subsídios sociais atendimento médico.

Durante este período, todo comércio e serviços deverão permanecer fechados. As exceções são as farmácias, laboratórios, bancos, supermercados, postos de gasolina e serviços de assistência médica. Neste período, também, somente poderão circular pelas ruas os profissionais de saúde e serviços de emergência, além das forças policiais e militares.

Como parte do decreto, de forma um tanto inusitada, Ramaphosa, além de “banir” a prática de exercícios e passeio com cães nas ruas, também proibiu o consumo ou venda de álcool (inclusive nos supermercados). E um detalhe, que tem a ver com o que será exposto abaixo, é que não foram poucos os analistas e gente do povo que ficaram intrigados pelo fato dele ter escolhido fazer o anúncio vestindo um uniforme camuflado do Exército.

Uma das constatações iniciais da imprensa sul-africana é que, além de tardio, o confinamento pegou a população de surpresa e, infelizmente, esbarra em profundos problemas, muitos dos quais conhecemos por aqui, que simplesmente impedem que as pessoas fiquem em casa. A começar pelo fato de que, como veremos, assim como no resto do mundo, Ramaphosa quer que a “economia continue andando” e deixou nas mãos do setor privado como lidar com as fábricas etc.

Mas, de imediato, a maior preocupação veio do fato de que a população não estava preparada para o confinamento geral o que fez com que, nos dois primeiros dias, tivessem que sair às pressas para se abastecer. Consequentemente, as ruas e espaços públicos das principais cidades do país ainda estavam lotados. Algo que se repetiu, com menor intensidade no dia 28 de março.

E a resposta do governo foi lamentável, mas completamente sintonizada com o simbólico uniforme de Ramaphosa. De acordo com uma reportagem do The Guardian (28/03/2020),“a polícia e soldados usaram balas de borracha contra centenas de compradores que estavam do lado de fora de um supermercado em Joanesburgo”.

No artigo, o depoimento de Emily Ndemande, uma empregada doméstica, é exemplar do quão absurdo foi o ataque: “Nós estamos ficando em casa, agora. Mas, antes, a gente precisava fazer compras, mas os soldados estão espancando as pessoas”.

E, infelizmente, a repressão desmedida (depois de uma inércia criminosa) tem sido uma marca dos países africanos que começaram a adotar políticas de confinamento nos últimos dias, como veremos, também, no próximo e último artigo. Na mesma reportagem é relatado um exemplo no Quênia, onde “a polícia disparou gás lacrimogêneo contra uma multidão de passageiros de balsas, na cidade portuária de Mombasa e os policiais foram capturados em imagens de telefones celulares atingindo pessoas com cassetetes.”

As dúvidas em torno dos subsídios pra “ficar em casa”

Uma pergunta que não quer calar é como os quase 30% da população que estão desempregados sobreviverão durante a quarentena. Também existem muitas dúvidas em relação aos que estão empregados ou exercem trabalho. Cabendo destacar que, de acordo com um instituto de pesquisa (o Statistics South Africa’s) cujos vínculos com o governo levantam várias questões, no final de 2019, existiam pelo menos 3 milhões de trabalhadores no setor informal, o que correspondia 18% do total da força de trabalho empregada.

Mas, também, há mais dúvidas que respostas em relação aos trabalhadores em geral. Contudo, considerando-se o perfil neoliberal do governo sul-africano e o que temos visto por aqui e no resto do mundo, não se pode esperar muita coisa. E, com certeza, é preciso que, mesmo em confinamento, a população se organize para lutar por seus direitos.

O que se sabe é que, ainda no dia 26 março, pouco antes do pronunciamento do presidente (provavelmente com a intenção de “acalmar o mercado”, como eles dizem), o Ministro do Emprego e Trabalho, T.W Nxesi, soltou uma nota, determinando que o Fundo de Seguro Desemprego (conhecido como UIF) será utilizado para “abrandar o impacto do confinamento nacional de 21 dias entre os trabalhadores, as empresas e a economia, o UIF” e que o governo criou um programa denominado “Esquema de Assistência Temporária entre Empregadores e Empregados – Covid-19” (COVID-19 TERS).

Segundo o ministro, estes mecanismos deverão subsidiar tantos os trabalhadores regularmente empregados quanto os que atuam na informalidade. Como isto irá funcionar, já é outra questão. Mas, como sempre, o governo sinalizou que deixará boa parte da implementação disto nas mãos (sempre gananciosas) do “mercado”, ou seja, dos patrões.

Algo que transparece em uma passagem um tanto curiosa do comunicado, típica dos governos de conciliação de classes: “empregadores atenciosos e responsáveis que não consigam pagar o salário total dos trabalhadores que tenham sido enviados para casa devido ao confinamento, para protegerem sua saúde e segurança, são incentivados a solicitar o benefício”.

ESPECIA CORONAVÍRUS E ÁFRICA
Introdução
Artigo 1 | Covid-19 na África: uma bomba-relógio um terreno minado
Artigo 2 | Uma bomba prestes a explodir, do Norte ao Sul da África
Artigo 3 | Governos africanos e prevenção da Covid-19: hipocrisia e irresponsabilidade
Artigo 4 | África: um continente debilitado e uma rede hospitalar doente