Marina Cintra, de São Paulo (SP)
Agosto é o mês da visibilidade lésbica e bissexual. É essencial darmos visibilidade para a luta contra a opressão lesbofóbica, pois o capitalismo impõe às mulheres lésbicas, particularmente as jovens, as periféricas e as trabalhadoras, situações de extrema vulnerabilidade, causadas pelo desemprego, a falta de lazer nas periferias, o descaso em relação à saúde e a violência (física, psíquica e emocional), resultantes da combinação de machismo e LGBTfobia.
No momento em que o Brasil está com uma média de mais de mil mortes por dia devido à pandemia, essa situação só piora. A marginalização e o acesso precário à saúde aumentam o risco de contaminação e morte das lésbicas e bissexuais mais pobres.
Neste artigo, queremos homenagear todas aquelas que, antes de nós, e quando a invisibilização e opressão eram ainda piores, tomaram as ruas e a frente das lutas para garantir os ainda insuficientes e sempre ameaçados direitos que temos nos dias de hoje; mas que, sem elas, sequer existiriam.
E como, apesar de invisibilizada, essa é uma história cheia de episódios também no Brasil, escolhemos um que, para nós, tem enorme importância e simbologia: a ocupação do Ferro´s Barra, em 19 de agosto de 1983, noticiada na época como a Revolta de Stonewall brasileira e cuja importância fez com que a data fosse transformada em Dia Nacional do Orgulho Lésbico.
Um episódio inegavelmente marcante que, contudo, passados 40 anos, também serve para nos lembrar que ainda temos muito pelo que lutar.
Mulheres lésbicas têm uma história de lutas
Esse importante marco para a história das LBs no Brasil tem suas origens no final da década de 1970, quando a luta contra a ditadura militar se intensificou e, na esteira das greves operárias e manifestações populares, houve um forte processo de reorganização dos movimentos contra as opressões.
Foi neste processo que foram criadas várias entidades de mulheres, negros e negras – como o Movimento Negro Unificado (MNU), fundado em 1978 –, e de LGBTs, com o surgimento de grupos como o SOMOS: Grupo de Afirmação Homossexual (no mesmo ano).
E vale lembrar que nós, do PSTU, temos o orgulho de ter nossas raízes fincadas nesta história, já que a Convergência Socialista, um das organizações políticas que fundaram nosso partido, empenhou na construção destas duas entidades, que atuavam contra a opressão em aliança com os trabalhadores e em defesa da independência de classe.
Em 1979, surgiu o Grupo Lésbico-Feminista (LF), responsável pela elaboração da primeira publicação lésbica do país, o ChanacomChana, e, em 1981, debates internos deram origem ao Grupo de Ação Lésbica-Feminista (GALF), que deu continuidade à publicação.
Todos estes grupos estiveram envolvidos na organização, em 13 de junho de 1980, de uma importante manifestação, com cerca de 1,5 mil pessoas, que, saindo do Teatro Municipal de São Paulo, percorreu as ruas do Centro contra a violência e a repressão capitaneada pelo asqueroso Delegado Richetti.
As mulheres lésbicas participaram desta que é conhecida como a primeira manifestação LGBT do país com faixas que diziam “Pelo prazer lésbico” e “Contra a violência policial”. A repressão policial, contudo, continuou e, no feriado de 15 de novembro, o mesmo Richetti lançou a chamada “Operação Sapatão”, prendendo todas as mulheres que freqüentavam o Ferro’s Bar, o Bixiguinha e o Cachação, bares conhecidos como “guetos lésbicos”.
O auge destes conflitos teve início em 25 de julho de 1983, quando integrantes do GALF que vendiam seu boletim no Ferro´s Bar, no Bixiga, foram brutalmente expulsas do local, o que serviu como estopim, para em 19 de agosto, com apoio de coletivos gays e grupos feministas, realizassem a ocupação do bar, num verdadeiro levante das lésbicas.
A luta contada por quem estava lá
As mulheres vitoriosas conseguiram voltar a vender regularmente o Chanacomchana no local. E exatamente porque estamos fazendo um resgate histórico, vale reproduzir um trecho de como o jornal noticiou o episódio, em sua quarta edição:
“O dia 19 de agosto é muito especial para o Grupo de Ação Lésbica-Feminista (Galf) e para as lésbicas que frequentam o Ferro’s — antigo e velho bar situado quase no Bexiga, bairro dos mais badaladas da noite de Sampa. O frio que baixa na cidade não impede que o “happening” político organizado pelo Galf seja um sucesso.
Por volta das nove da noite, as militantes do grupo e mais alguns companheiros do Outra Coisa Ação Homossexualista, formado por homens, continuam a distribuir na frente do famoso bar um panfleto denunciando as agressões que o Galf vinha sofrendo há meses, quando tentava vender seu boletim Chanacomchana dentro do Ferro’s. Um pouco mais tarde, começam a “invadir” o bar figuras um tanto estranhas para suas fieis frequentadoras: mulheres “diferentes”, rapazes de barba e lindos paletós de couro (dessas que a gente costuma ver nas manifestações tradicionais da esquerda), bichas finérrimas.
Dentro, a maior confusão. Como sempre acontece no Ferro’s (…). Mas não e só isso. O atarracado porteiro — sempre tão agressivo com as militantes do Galf — segura firme a porta fechada para garantir que nenhuma dessas “perigosas” mulheres invada o tão imaculado recinto. A medida que se aproxima o histórico momento, a força estranha que já havia invadido, o bar explode aos gritos de: “entra”, “entra”, “entra”.(…)
O inesperado — ou mais uma artimanha de um dos alegres rapazes da banda — precipita tudo. O boné do porteiro é arrancado e jogado longe. Enquanto ele busca tão importante signo de seu poder, duas mulheres puxam-no para o lado oposto. Aproveitando-se desse inusitado embate, as lésbicas do GALF entram. Uma delas, Rosely, sobe imediatamente sobre uma cadeira e começa a denunciaras atitudes autoritárias do bar.
(…) Todos os sábados, quando íamos vender o boletim ChanacomChana no Ferro’s éramos agredidas pelo porteiro — com ameaças ou com puxões de braço para que nos retirássemos. Até que no dia 23 de julho último, a barra pesou mais: um dos donos do bar, seu segurança e seu porteiro tentaram concretizar a expulsão através de agressões físicas. Enquanto nos puxavam para o lado de fora, parte das lésbicas — que compram o boletim e conversam com as moçoilas do GALF – nos segurava lá dentro. Belo corpo-a-corpo: dos que tem a força da ordem e da lei contra as que ganharam no dia-a-dia uma força física e interior para poder viver numa sociedade onde a regra é ser heterossexual. (…)
(…) Já estávamos cheias de sermos agredidas injustamente pensávamos que o incidente podia se repetir mais vezes, talvez com mais apoio da polícia. Não queríamos ficar na defensiva. (…). Nós do GALF queremos ajudar a romper com essa historia. Por isso, resolvemos reconquistar o Ferro’s com a ajuda de homens homossexuais, mulheres feministas, ativistas dos direitos civis e militantes ou políticos dos partidos de oposição mais identificados com as lutas das minorias. (…)
(…) Batalhamos na organização do “happening” do 19 de agosto durante quase um mês, enquanto distribuíamos no gueto um panfleto denunciando a atitude do Ferro’s, que não é isolada. Com a reconquista do Ferro’s, buscávamos também lutar pelo legitimo direito de circular livremente em todos os locais. (…)
Os discursos de Rosely se intercalam com gritos de parte das lésbicas e de nossas(os) companheiras(os) de luta para que o dono apareça.(…) As militantes do GALF conversam com o dono e conseguem que ele declare diante delas, da imprensa e de outras companheiras (os), que o grupo poderá divulgar seu boletim dentro do bar sustentado pelas lésbicas. Findo o episódio. (…)
Liberdade, de fato, só quando ocuparmos o poder
Em função desta história, o “19 de agosto” foi consagrado como Dia Nacional do Orgulho Lésbico. Anos depois, em 29 de agosto de 1996, quando aconteceu o 1º Seminário Nacional de Lésbicas (Senale), no Rio de Janeiro, a data foi escolhida para celebrar o Dia da Visibilidade Lésbica e Bissexual, entendo que publicizar nossas lutas e a história de nosso movimento é parte do combate à vulnerabilidade, à violência e à feitichização que as mulheres lésbicas estão submetidas.
Como afirmamos no início, resgatar um episódio como este, assim como a Revolta de Stonewall ou tantas outras lutas que travamos há, literalmente, séculos, é fundamental para nos fortalecer. Mas não só. Também servem para nos lembrar que, apesar dos esforços heróicos daquelas que nos antecederam, ainda estamos muito distantes da liberdade, da igualdade e dos direitos que precisamos.
Por isso, resgatar a Ocupação do Ferro´s Bar, transformado, naquele momento, em símbolo da repressão, da marginalização e da permanente tentativa de nos silenciar e invisibilizar, para nós do PSTU, também tem um sentido mais amplo.
É um episódio que nos faz lembrar que se esta luta localizada foi capaz de arrancar uma vitória momentânea, é preciso ampliá-la e direcioná-la para a fonte e raiz de toda exploração, marginalização e exclusão que tentam nos impor: o sistema capitalista.
Afinal, só quando aqueles e aquelas que realmente produzem as riquezas, que conhecem as dores e sofrimentos provocados pela exploração se organizarem e “ocuparem” o poder, nós, que estamos dentre as mais exploradas e oprimidas, realmente poderemos ser livres. E, pra isso, é preciso uma revolução.
Dia Nacional da Visibilidade Lésbica e Bissexual
Queremos explodir os armários! Precisamos de uma revolução
No decorrer nos artigos que publicamos para celebrar o Dia Nacional do Orgulho Lésbico (19 de agosto – vide artigo A ocupação do Ferro’s Bar e a luta pela vida e por direitos) e o Dia da Visibilidade Lésbica e Bissexual (29 de agosto), abordamos temas que vão de nossa opressão e exploração pela indústria pornográfica até o lesbocídio, passando por temas como Educação ou as especificidades das lésbicas e bissexuais negras e jovens.
Neste, queremos sintetizar o que nós, do PSTU, defendemos diante de tudo isto. E algo que sempre nos veem à mente quando falamos da luta pela visibilidade e de como combater a LGBTfobia são duas palavras-de-ordem particularmente queridas por nós, LGBTs da Rebeldia: Juventude da Revolução Socialista: “Eu não saí, eu explodi o armário! Sou LGBT, sou revolucionário” e “As gays, as bi, as trans, as travas e as sapatão, tão tudo organizadas, pra fazer Revolução”.
Coisas que gostamos de gritar a plenos pulmões quando saímos às ruas ou nos nossos congressos e eventos. Mas, não limitamos a isto, pois estamos convictas que esta é a única saída para por fim à situação relatada nos textos que estamos oferecendo às leitoras e leitores do nosso site exatamente pra convidá-los a vir construir esta revolução com a gente.
Contra o que lutamos?
Apesar de todas as lutas que já travamos, como discutido no artigo Um alerta pelo fim do lesbocídio, os dados comprovam que o capitalismo continua se utilizando do machismo, da LGBTfobia e do racismo para impor sobre a vida das mulheres lésbicas, (principalmente as mais jovens, as trabalhadoras e as negras) uma situação de extrema vulnerabilidade. Como também as opressões são, cada vez mais, importantes instrumentos na tentativa de dividir a classe trabalhadora e enfraquecer nossas lutas.
E, evidentemente, com o aprofundamento da crise econômica, acirrada ainda mais sob a pandemia, a violência e a tentativa de retirada de direitos dos setores mais oprimidos de nossa classe se intensificou ainda mais.
No Brasil, metade da população economicamente ativa está desempregada. E as LGBTs, de forma geral, e as mulheres lésbicas e trans, em especial, fazem parte dessa estatística, pois são excluídas do mercado de trabalho formal e, quando conseguem empregos, são sempre os mais precarizados, como no telemarketing ou nos setores terceirizados, onde, também, ficam mais expostas à contaminação pelo coronavírus.
Os direitos trabalhistas, que já eram restritos, são ainda mais atacados por Paulo Guedes e Bolsonaro e os cortes em áreas sociais, como educação (da onde o governo pretende confiscar 4,2 bilhões, em 2021, por exemplo) e da saúde também atingem diretamente as LGBTs.
Se isto não bastasse, com a reforma do ensino médio, juntamente com o projeto Escola Sem Partido, a discussão sobre gênero e sexualidade está sendo atacada e cerceada, o que, é óbvio, dificulta ainda mais com que se faça um combate ao machismo e a LGBTfobia dentro das escolas.
Além disso, neste momento de pandemia, as mulheres estão em uma situação de maior vulnerabilidade na área da saúde. Não só porque muitas de nós somos trabalhadoras neste setor, mas, também, devido a sobrecarga dos serviços públicos de saúde. Além disso, um tema muito importante para as mulheres LBTs é que muitas vezes somos tratadas com desprezo pelos médicos, além não existir nenhum tipo de informação e proteção sobre a prevenção de DSTs adequados para nossas realidades.
Como também vimos em outros artigos deste especial, o governo Bolsonaro, recheado por fundamentalistas, conservadores e autoritários como ele e sua ministra Damares, só aprofundam essa situação que já é catastrófica. Mas isto não é uma exclusividade de nosso país, pois, na crise capitalista, mundo afora, as LGBT’s trabalhadoras e da periferia são grandes afetadas pelos cortes, as reformas dos governos e o aumento da violência.
É assim porque, sendo mais ou menos autoritários ou conservadores, são todos governos, aliados dos patrões, dos latifundiários e dos banqueiros que retiram nossos direitos e são coniventes com as agressões, estupros e homicídios que sofremos.
O que o PSTU defende?
Primeiramente, precisamos de uma resposta emergencial à crise do COVID-19. É por isso que defendemos que toda população tenha direito à quarentena, com emprego e renda garantidos. Não é possível que num momento como esse o governo considere reabrir tudo, inclusive as escolas. E no caso das mulheres lésbicas e bi em situação de violência dentro de casa, exigimos o direito a fazer isolamento social em casas-abrigo, afastadas dos agressores.
Para nós, também, qualquer programa de luta contra a opressão tem que ser combinado com o combate à exploração. E, por isso mesmo, tem que começar pela denúncia dos ataques promovidos por Bolsonaro e Paulo Guedes, a serviço dos lucros dos banqueiros, latifundiários e patrões em geral e pela luta, ao lado do conjunto da classe trabalhadora, por condições dignas de moradia, saúde, educação, emprego e renda.
Tudo isto combinado com a defesa intransigente e permanente de políticas e programas de combate, no nosso caso, à lesbofobia. Por isso, exigimos a aplicação efetiva da criminalização da LGBTfobia; a ampliação e aplicação da Lei Maria da Penha, com criação de mais casas-abrigo; a instalação de delegacias que funcionem durante 24 horas e também nas periferias, com atendimento especializado e feito por mulheres, inclusive LBTs.
Ainda no sentido de combater a violência generalizada, lutamos por tratamento psicológico gratuito para as vítimas e mais investimento em programas de combate à violência contra mulheres. Como também, somos favoráveis a que as mulheres lésbicas e bi, como todo povo trabalhador, organizem sua autodefesa, principalmente nas regiões periféricas e comunidades que vivem sob a ameaça de agressões e, particularmente, da repressão pelas forças do Estado (seja a fardada ou a encapuzada).
Para combater a opressão no sistema educacional, queremos a formulação, pelo movimento, de um “kit anti-LGBTfobia” que seja distribuído em todas as escolas e a garantia da discussão sobre sexualidade, identidade de gênero e orientação sexual, em todos os níveis da Educação.
Na saúde, antes de tudo, exigimos mais investimentos no setor para garantir sua gratuidade e melhor qualidade, mas também queremos a inclusão das especificidades das mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais no Sistema Único de Saúde. E diante dos retrocessos pregados por este governo, nos opomos veemente a qualquer projeto de “cura gay”, já que temos certeza que ser LGBT não é uma doença. Doente é o capitalismo!
Por um mundo onde sejamos vistas como iguais
E exatamente porque sabemos o quanto este sistema é doente, também temos certeza que um programa como este não será garantido por instituições podres e decadentes como a que temos, a começar pelo parlamento. Pra começar a construí-lo e conquistá-lo, só há um caminho: a luta e a organização dos trabalhadores e trabalhadoras, combatendo também todo tipo de preconceito e opressão.
É preciso destruir essa sociedade capitalista para construir uma nova sociedade. Uma sociedade onde não só tenhamos visibilidade; mas, sim, sejamos vistas como iguais, em termos econômicos, políticos, culturais, sociais, sexuais, raciais e tudo mais o que diz respeito à humanidade. E, pra nós, isto só é possível numa sociedade socialista, sem opressão e sem exploração.
Como vimos nos textos anteriores, as mulheres lésbicas desde muito tempo vêm lutando, em episódios como a Marcha contra o Richetti e do Ferro’s Bar, nas ocupações das escolas, na luta contra a cura gay, contra as reformas do Temer, em defesa da educação pública, contra a intervenção militar no Rio de Janeiro, contra todos ataques do governo e para tirar Bolsonaro de uma vez.
Mas esta luta tem que avançar cada vez mais, se unificar e derrubar todo esse sistema: para conquistarmos a verdadeira liberdade, é preciso fazer uma revolução socialista no Brasil e no mundo!
Por isso, fazemos um chamado às LGBTs trabalhadoras que se organizem para lutar contra LGBTfobia e por uma nova sociedade, sem exploração e opressão. Não temos nada a perder!