Debora Leite

Débora Leite, da Secretaria LGBT de São Paulo (Oeste)

As mulheres lésbicas sofrem uma violência específica dentro da nossa sociedade, através de uma combinação de machismo e LGBTfobia, que se expressa de diversas formas e cotidianamente. Desde a dificuldade de conseguirmos um emprego ou à rejeição no âmbito familiar, passando por suas formas mais cruéis, como assassinatos motivados pelo ódio.

Em agosto, mês nacional da Visibilidade Lésbica, fazemos um alerta de urgência para o combate à violência lesbofóbica – violência, hoje, ainda mais estimulada pelas declarações de Bolsonaro e seu governo – e reforçamos que a nossa luta direta, com independência de classe, é a única forma de garantir a vida das oprimidas, cuja barbárie capitalista tem colocado cada vez mais em risco cotidiano.

O ódio em números

Em 2018, foi publicado o primeiro “Dossiê sobre lesbocídio no Brasil”, elaborado pelo Núcleo de Inclusão Social (NIS), ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e o grupo de pesquisas “Nós: dissidências feminista”, que além de tipificar e analisar as várias formas de violência que vitimam mulheres lésbicas, apresenta dados nacionais entre 2014 e 2017.

As pesquisadoras definem o termo “lesbocídio” como “morte de lésbicas por motivo de lesbofobia ou ódio, repulsa e discriminação contra a existência lésbica” e contabilizam dados tanto de assassinatos quanto de suicídios, uma vez que estes também são resultado da opressão e das diversas formas de violência (física, psicológica e emocional) que as mulheres lésbicas enfrentam diariamente.

Encontrar dados precisos no Brasil, ou mesmo internacionalmente, não é fácil. A invisibilização é sintoma da marginalização que o capitalismo nos impõe. Os governos e seus órgãos oficiais viram as costas para essa parte da população e ocultam o verdadeiro cenário de barbárie que se passa no país.

Algo também discutido pelas autoras do Dossiê, que alertam: “A ausência de informações sobre as mortes de lésbicas no mundo inteiro é assustadora, quando somada às ausências de informações sobre mortes de mulheres negras e indígenas, os dados se tornam ainda mais inconsistentes. O que podemos afirmar é que, acima de tudo, estas pesquisas são negligenciadas de forma sistemática e a invisibilidade das mortes é só mais uma das privações sofridas por todas as pessoas que de alguma forma são marginalizadas em nossa sociedade”.

A dimensão desta barbárie pode ser sintetizada em uma das principais conclusões da pesquisa: entre 2014 e 2017, houve um crescimento de 237% nos lesbocídios; sendo que o último ano pesquisado foi o com maior número de casos, tanto de assassinatos (54) quanto de suicídios (19).

E as principais vítimas são as mais jovens dentre nós. 53% das mortes daquele ano eram de lésbicas com menos de 24 anos. No caso dos suicídios isso é ainda mais gritante: nos três anos estudados, 69% deles eram de jovens. Além disso, o ódio transformado em violência também fica evidente nas formas de execução. A mais freqüente é uso da arma de fogo (47%), seguido por faca (23%), espancamento (13%), estrangulamento (9%), estupro seguido de morte (4%), atropelamento (2%) e estripamento (1%).

O dossiê também traz dados sobre as circunstâncias dos assassinatos. A enorme maioria (72%) acontece em espaços públicos e 28% dentro da residência da vítima. Quanto aos assassinos, 83% eram do sexo masculino, sendo que 30% eram conhecidos das vítimas; 34% eram familiares ou pessoas que tinham vínculos afetivos com elas e 36% eram desconhecidos. Ou seja, independente de onde e com quem estejam, mulheres lésbicas estão em constante risco.

As pesquisadoras também buscaram realizar um recorte étnico-racial entre os casos, encontrando em todos os anos uma maioria de notícias sobre vítimas brancas. Um dado, contudo, questionado pelas próprias autoras, considerando-se a realidade brasileira: “A população brasileira é composta majoritariamente por pessoas negras, de acordo com dados do IBGE (2014), 54% da população é negra. Segundo o BBC (2017), a cada vinte e três minutos uma pessoa jovem e negra é assassinada no Brasil. Só em 2014, 138 índios foram assassinados no Brasil (CIMI, 2014), isso sem considerar a execução sumária de mais de 4 milhões de povos originários em território nacional desde 1500. Com esse cenário, como é possível afirmar que lésbicas brancas morrem mais do que lésbicas negras? É muito provável que os números reais de mortes de lésbicas indígenas e negras seja superior ao número de mortes de lésbicas brancas, no entanto, de acordo com os registros feitos a partir de dados coletados da mídia brasileira, as notificações das mortes de lésbicas brancas são superiores ao das lésbicas das demais raças/etnias.”

Que lições podemos tirar?

O que podemos concluir, apesar das tentativas de invisibilizar as mortes e da evidente subnotificação de casos, já que muitos assassinatos sequer são registrados como sendo motivados pela lesbofobia, é que há um crescimento das mortes de mulheres lésbicas e que as mais jovens, que muitas vezes sofrem uma pressão gigantesca da família ou no ambiente escolar, estão em uma situação mais vulnerável. Como também, que há um desprezo ainda maior da mídia e institutos de pesquisa pelas mortes das lésbicas negras e indígenas, parte da desvalorização das vidas não brancas.

Também é evidente que nossa própria existência parece ser uma afronta contra a sociedade, já que ódio se manifesta mais fortemente nos espaços públicos; mas também somos ameaçadas na própria família e por ex-parceiros que não aceitam quando assumimos nossa orientação sexual e decidimos nos relacionar com outra mulher após a separação.

Enfim, há de se concordar com as pesquisadoras quando dizem que apenas a apresentação desses dados deveria ser impactante o suficiente para demonstrar a necessidade de avançarmos nos direitos da mulher lésbica no Brasil. Algo, contudo, que se enfrenta com enormes barreiras. Algumas relacionadas à situação atual em que vivemos. Outras, decorrentes da própria estrutura da sociedade capitalista.

Combate ao lesbocídio: desafios no governo Bolsonaro e na pandemia

Desde a publicação do Dossiê, tivemos uma grande vitória que foi a criminalização da LGBTfobia. Esse é um passo importante para o reconhecimento do crime de ódio contra as LGBTs no país. Mas é insuficiente e não garante, na prática, o nosso direito à vida, ainda mais se não é acompanhado de políticas efetivas para esse combate à violência opressora.

Enquanto os capitalistas continuarem se aproveitando da LGBTfobia para superexplorar as lésbicas e bissexuais, nos submetendo aos piores salários e postos de trabalho, a violência e opressão persistirão e aumentarão, pois é dessas desigualdades que se alimenta este sistema decadente.

Apesar de a LGBTfobia agora ser considerada crime, ela é naturalizada pelo próprio presidente, Jair Bolsonaro, assim como por Damares, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos. Desde suas declarações LGBTfóbicas ao longo das eleições, até ataques diretos como a intervenção do Ministério da Educação para suspender o vestibular com reserva de vaga para transsexuais na Unilab ou, ainda, a suspensão do edital da Agência Nacional do Cinema para as categorias “diversidade de gênero” e “sexualidade”.

O fato é que os discursos de ódio, somados a essas medidas, contribuem para dar carta branca para os assassinatos continuarem acontecendo e aumentam a sensação de medo e isolamento que levam aos suicídios. É sintomático, por exemplo, que a maior parte dos assassinatos demonstrados no Dossiê foram feitos a bala, pois é  justamente contra os setores mais explorados e oprimidos que Bolsonaro dirige seu asqueroso gesto que simula uma mão armada.

Existe um projeto de fundo para os governos como Bolsonaro-Mourão: aumentar a opressão, para que, com isso, possam aumentar a exploração; retirar direitos básicos de todos os trabalhadores e trabalhadoras, como a aposentadoria e, através da propagação de ideologias preconceituosas, dividir os trabalhadores para que estes não possam se mobilizar, incentivando o ódio aos negros e negras, às mulheres e às LGBTs. E, se necessário, aumentar o autoritarismo para conter o movimento. É um plano bastante lucrativo para os banqueiros e empresários imperialistas, e completamente destruidor para os explorados e oprimidos.

Junte-se a isso a situação causada pela pandemia, também agravada pela irresponsabilidade proposital do governo. O risco de contágio pelo coronavírus força muitas mulheres a passarem ainda mais tempo presas em casa com seus agressores, e isso já se reflete nos índices de violência doméstica. Sem dúvida, essa é a situação de muitas mulheres lésbicas que enfrentam um ambiente doméstico marcado pela opressão e por violência física e/ou psicológica.

Um chamado urgente

Soamos o alarme: as mulheres lésbicas no Brasil estão sendo agredidas, mortas e levadas ao suicídio, o que se agrava com a pandemia.

Fazemos um chamado para fortalecer o combate ao lesbocídio e à lesbofobia da única forma possível: nas lutas, combatendo, em unidade com a classe trabalhadora e seus setores oprimidos, para destruir o capitalismo que não nos garante sequer o direito a vida.

Mesmo quando Dilma governava o país, os casos de violência não diminuíram, o que comprova que não basta eleger uma mulher, ou um negro ou uma LBGT. Enquanto esse sistema de exploração e opressão existir, todas as conquistas das lésbicas serão parciais e incompletas. E podem retroceder a qualquer momento. A falta de políticas públicas para o combate à violência machista, racista e LGBTfóbica também nos coloca a necessidade de organizar a autodefesa da classe trabalhadora e seus setores oprimidos.

Somente nossa mobilização pode derrubar Bolsonaro, Mourão e Damares, e construir uma alternativa de sociedade onde a nossa vida não seja moeda de troca. Apenas uma revolução socialista, com a tomada do poder dos banqueiros, empresários e latifundiários pode garantir a liberdade, a igualdade e a justiça que nós, mulheres lésbicas, precisamos e merecemos.