Debora Leite

Débora Leite, da Secretaria LGBT de São Paulo (Oeste)

A lesbofobia é uma combinação entre o machismo e a LGBTfobia que produz uma carga especialmente dura na vida das mulheres que se relacionam com outras mulheres. Essa opressão se expressa desde formas “sutis”, como as “piadinhas” que nos ridicularizam, até formas explicitamente violentas, como os assassinatos (Leia o artigo “Um alerta pelo fim do lesbocídio”).

Um dos aspectos da lesbofobia que queremos deixar visível neste “29 de agosto” é a objetificação sexual, uma ideologia que coloca as mulheres lésbicas e bissexuais como objetos, inferiores, a serviço do prazer masculino. No início de agosto, a Secretaria Nacional de Mulheres do PSTU publicou o artigo “Sobre o debate em relação à indústria da pornografia”, refletindo como essa ideologia tem uma relação profunda com a indústria pornográfica e tem efeitos concretos sobre a vida de todas as mulheres, como demonstram os inúmeros casos de assédio e estupro.

Aqui, queremos abordar o tema especificamente no que se refere às mulheres lésbicas, bissexuais, travestis e transgênero (LBTs).

A opressão e a indústria pornográfica

A indústria pornográfica tem crescido substancialmente com a expansão dos meios virtuais e sua influência na sociedade capitalista não deve ser subestimada. Segundo os dados divulgados pela produtora de vídeos pornográficos Pornhub, no portal da empresa, em 2019 o site teve 42 bilhões de acessos, o que equivale a 115 milhões de acessos diários.

Só no ano passado foram produzidos mais de 6.8 milhões de novos vídeos. Levando em consideração que esse é apenas um dos inúmeros sites de conteúdo pornográfico, é perceptível que essa é uma indústria com um alcance massivo.

E, dentro dela, a objetificação de mulheres lésbicas e bissexuais tem uma popularidade notória. Ainda segundo o balanço da produtora, entre as “categorias” de vídeo mais buscados e assistidos no site, lésbica foi a palavra mais procurada em seus primeiros dez anos de existência. E, em 2019, esta também foi a terceira categoria mais buscada mundialmente, mas a primeira no Brasil.

Isso significa uma audiência massiva para vídeos que demonstram de forma desumanizada a sexualidade lésbica, voltados para um público majoritariamente masculino e heterossexual, feita por mulheres vítimas de abusos brutais.

Outras “categorias” que estão entre as mais visitadas são a teen (adolescente) e as relacionadas a mulheres de raças e etnias não brancas, como negras (sob o termo ebony), asiáticas, indianas e latinas. Todas elas estão inclusas nas 25 categorias mais buscadas ano passado no Pornhub, onde, também, o termo “transgênero” esteve entre os mais populares nas buscas de 2018.

Nestes casos, fica evidente o interesse de um público por mulheres extremamente jovens e infantilizadas, assim como por representações racistas. Nos vídeos, homens e mulheres negras são retratados de forma visivelmente animalizada, reforçando a ideologia de que as mulheres negras são promíscuas. Algo similar ao que acontece, no exterior, acerca das mulheres brasileiras e latinas. Já as travestis e transexuais são diariamente tratadas como se seu único lugar na sociedade fosse aquele do fetiche, e estão, em grande parte, submetidas a esta única opção como forma de se sustentarem.

Hipocrisia e naturalização da violência a serviço do lucro

Há mais uma observação importante a partir desses dados. O Brasil, o país que mais mata LGBTs no mundo (em especial travestis e trans), tem lésbica como a “categoria” mais popular. E, segundo dados da Pornhub, divulgados em 2016, a busca pelo termo shemale (nome pejorativo utilizado para se referir a travestis) é 89% maior do que no resto do mundo. Já a Rússia, conhecida mundialmente por suas leis e repressão LGBTfóbicas, tem lésbica como oitava “categoria” mais popular e a busca pelo termo shemale é 38% maior que a média mundial.

Isso deve nos levar a refletir sobre a convivência e correlação do ódio com a sexualização extrema das mulheres LBTs. Tudo isto cercado de hipocrisia e colocado a serviço do lucro da indústria pornográfica. Afinal, longe de ser uma representação realista e inofensiva de prazer sexual, praticada consensualmente entre adultos, como afirmam os setores neoliberais e pós-modernos, a pornografia anda sempre lado a lado com a violência.

Basta dizer que ela é diretamente responsável por incontáveis abusos das mulheres que aparecem nos vídeos, forçadas a se submeter, repetidamente, a atos não consentidos, em verdadeiras sessões de tortura. É difícil falar em consentimento dentro da pornografia, quando parte das mulheres vistas nos vídeos foram vítimas de tráfico de pessoas, outras tiveram suas imagens divulgadas contra sua vontade como ato de vingança por parte de antigos parceiros sexuais, algumas sequer são adultas e muitas mais foram coagidas por se encontrarem em situação vulnerável.

Essas imagens de atos degradantes e violência brutal são, depois, vendidas para as massas, ensinando a confundir o sofrimento feminino com prazer e criando uma visão alienada sobre nossa própria sexualidade. A exposição contínua a esse conteúdo também gera uma normalização da agressão sexual e colabora para a cultura do estupro.

A indústria pornográfica, dessa forma, é, ao mesmo tempo, uma expressão do nível de barbárie machista e lesbofóbica, ao qual estamos chegando, como também um poderoso mecanismo de disseminação ideológica a serviço do reforço essa opressão.

E esse é um negócio extremamente lucrativo. Segundo uma reportagem da NBCNews, publicada em 25/06/2015, a exploração e degradação das mulheres, em especial lésbicas, trans e negras, rendeu US$ 97 bilhões aos burgueses da indústria pornográfica, mundo afora, somente em 2014; sendo que só nos EUA as cifras giraram entre US$ 10 a US$ 12 bilhões.

Incentivo ao assédio e ao estupro

A visão da sexualidade lésbica como um fetiche a serviço dos homens heterossexuais tem consequências extremamente concretas e violentas: o assédio sexual e os estupros. No caso das mulheres bissexuais, isso é reforçado pela ideia de que pessoas bi são promíscuas.

Os assédios tomam diversas formas. Vão desde os comentários sexuais invasivos, principalmente quando expressamos afetividade com nossas companheiras em público, à insistência em avanços sexuais depois que os rejeitamos, até o assédio físico e assassinato.

Os estupros são parte dessa dura realidade. Sabemos que esta é uma prática que significa uma situação de terror e barbárie para as mulheres em geral. Mas, ela assume um caráter particularmente cruel para as lésbicas: o de “estupro corretivo”. Isto é, estupros com o objetivo de “corrigir” a nossa não-heterossexualidade.

Segundo uma matéria publicada no portal “Gênero e Número”, em 22/08/2019, um levantamento feito pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) revelou que, em média, seis lésbicas foram estupradas por dia, em 2017, em um total de 2.379 casos registrados, a maioria delas (61%), dentro de suas próprias casas. E se isso já não fosse suficientemente revoltante, em 61% dos casos notificados, a vítima foi estuprada mais de uma vez.

Ainda segundo o estudo, assim como nos outros tipos de violência, as mulheres negras são a maioria das vítimas de estupro contra lésbicas. Em 2017, elas representavam 58% das vítimas, seguida de brancas (35%), indígenas e amarelas (1%).

De acordo com o Portal IG São Paulo, em matéria publicada em 05/08/2017, um lamentável exemplo deste tipo de crime foi praticado, em 2015, por um pastor da Igreja Batista Rio Doce, contra uma jovem de 18 anos, em Olida (PE). Segundo o relato da vítima, o pastor disse que a violentava para ela “aprender a gostar de homem“. O agressor chegou a ser preso, em julho de 2017, mas, graças a uma liminar judicial, foi solto dia 2 de agosto e, hoje, não sofre consequências por seu crime.

E sabemos que a impunidade não é exclusividade desse caso. Essa forma de violência contra mulheres lésbicas é tão invisibilizada que é difícil encontrar estatísticas ou dados precisos.

Hoje, depois de décadas de reivindicação do movimento, a LGBTfobia já é considerada crime no Brasil. Isso não significa, entretanto, que existam políticas efetivas para combatê-la. Seis meses após a decisão do STF, já surgiam relatos das dificuldades enfrentadas por vítimas para reportar casos de LGBTfobia, e o despreparo das delegacias para lidar com isso.

Levantar a luta contra a objetificação e os estupros

O capitalismo não tem nenhum interesse em mudar essa realidade das mulheres lésbicas. A incorporação de personagens lésbicas na mídia e nas campanhas publicitárias pode dar a impressão de que nossa vida está melhorando, mas uma olhada nas estatísticas de homicídios e estupros, ou nos sites pornográficos, demonstra que não é assim.

Além de tudo, as agressões que sofremos e as ideologias que nos desumanizam se perpetuam com total conivência de todos os governos burgueses, ainda mais sob Bolsonaro e sua ministra Damares, que são abertamente LGBTfóbicos.

Nesse Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, reforçamos nossa posição contra a indústria pornográfica e todos aqueles que lucram com as práticas de desumanização, machismo, racismo e LGBTfobia, e denunciamos mais uma vez a violência sexual contra mulheres lésbicas e bissexuais que, na nossa opinião, seguirá acontecendo, sem resposta e cercada de impunidade enquanto continuarmos vivendo sob um sistema cuja essência é a transformação de tudo e todos em mercadorias.

Por isso, fazemos um chamado a todos os trabalhadores e trabalhadoras para se unirem à luta contra a opressão e a exploração e pela construção de uma sociedade onde nenhum ser humano seja tratado como objeto e tenha plena liberdade de vivenciar sua sexualidade e identidade de gênero, em plenitude e com dignidade.

(*) Versão atualizada de artigo postado em 29/08/2017