Muito se tem dito sobre a vinda da família real portuguesa ao Brasil, em 1808. Sem dúvida o episódio foi muito importante para nossa história. O que não se diz, porém, é que a chegada do príncipe D. João ao Brasil inaugurou o processo de modernização conservadora, isto é, uma modernidade que avançou sem rupturas e solavancos sociais. E, sobretudo, a partir do esmagamento de qualquer projeto popular alternativo.

Assim, mesmo após a partida de D, João, as classes dominantes conseguiram pela “via pacifica” manter o regime monárquico, os latifúndios e, sobretudo, a escravidão.

No artigo abaixo pretendemos dar uma panorama geral da vinda a família real.

Nos primeiros anos do século XIX um nome domina o cenário europeu: Napoleão Bonaparte. Ditador e depois Imperador da França, Napoleão encerra a revolução burguesa (1789-1799) e coloca a França na disputa com a Inglaterra pela hegemonia mundial. O choque entre as duas grandes potências capitalistas da época vai transformar toda a Europa em um imenso campo de batalha. As tropas francesas então invencíveis em terra derrotam as velhas monarquias aliadas da Inglaterra no continente europeu, sendo barradas apenas nos mares pelo poder naval inglês.

Em 1806, dando início a um novo tipo de guerra – a guerra econômica – Napoleão decreta o famoso “Bloqueio Continental” contra o comércio inglês, proibindo que os países europeus comercializassem com a rival. Para todas as nações do velho continente era impossível a neutralidade, era preciso escolher entre a França de Napoleão ou a Inglaterra. A Dinamarca, favorável à França, é atacada pelos navios ingleses, que durante quatro dias bombardeiam a cidade de Copenhagen, atacando ferozmente a população civil. Por outro lado, a Holanda seria posteriormente invadida pelas tropas francesas por se recusar a aderir ao “Bloqueio Continental”.

A Coroa portuguesa também enfrentou o mesmo dilema: ou aderia aos franceses e colocava em risco seu império colonial ou se mantinha aliada aos ingleses e deixava Portugal a mercê de uma invasão. O peso do império foi decisivo, a Coroa portuguesa se manteve ao lado dos ingleses e Portugal foi invadido pelas tropas francesas no final de 1807. Não se pensou em resistir, a Coroa e grande parte da nobreza partem para o Brasil, sob proteção da armada inglesa.

Fuga ou retirada estratégica? Evidentemente um pouco dos dois, mas uma decisão que permitiu ao então príncipe regente de Portugal, o futuro rei D. João VI, manter-se em liberdade e re-organizar seu império a partir do Brasil, escapando assim do melancólico destino dos reis espanhóis, que acabaram por renunciar o direito ao trono em favor de Napoleão, que ainda em 1808 proclamaria seu irmão como rei da Espanha.

As contradições do Antigo Sistema Colonial
No processo de colonização da América na Época Moderna as potências européias criaram suas colônias em um território até então inexplorado economicamente, assim para explorar suas colônias era, ao mesmo tempo, necessário desenvolvê-las, ou seja, criar plantações, cidades, portos, estradas etc. Porém tal desenvolvimento criava interesses internos que posteriormente entrariam em choque com tal exploração, particularmente hostil ao sistema tributário, iniciando dessa forma um processo de ruptura.

Após 300 anos de colonização, o Brasil vivia desde a parte final do século XVIII um novo momento de desenvolvimento, aproveitando-se da melhoria dos preços e da alta demanda pelos produtos coloniais criados pelas guerras na Europa e na América. A Coroa portuguesa procurava direcionar este desenvolvimento econômico para as atividades agrícolas, proibindo o surgimento de indústrias – essas eram impulsionadas apenas em Portugal – e o comércio com outros povos, bem como impedindo o surgimento de universidades e da imprensa, afim de manter o Brasil numa relação de dependência com Portugal. A vinda da família real portuguesa para o Brasil interrompeu tal processo.

D. João VI no Brasil
No dia 21 de janeiro de 1808, o príncipe regente de Portugal, o futuro Rei D. João VI, chegava à Bahia. Pouco tempo depois, 7 de março, aportava no Rio de Janeiro, local escolhido para sua residência no Brasil e de onde sairia apenas em 1821 para voltar a Portugal. Iniciava-se assim um dos períodos mais agitados de nossa história, que culminaria com a proclamação da independência em 1822 e que só se concluiria com a abdicação de D. Pedro I em 1831.

Pela primeira vez na história um monarca europeu desembarcava em uma colônia americana, contudo, mais importante, era o fato de que pela primeira vez a capital de um império era transferida para uma de suas colônias. Neste sentido, não causa estranheza que a primeira medida importante adotada por D. João, ainda em janeiro de 1808, tenha sido a chamada abertura dos portos, ou seja, o fim do monopólio português sobre o comércio brasileiro.

Discute-se se a abertura dos portos foi ou não imposta pela Inglaterra, a principal beneficiária, mas o fato é que, com Portugal ocupado pelos franceses, a manutenção dos portos fechados provocaria apenas uma enorme crise econômica no Brasil e ainda privaria a Coroa dos impostos alfandegários, uma das principais fontes de receita na época.

Dessa forma, se quebrava, ironicamente por vontade da própria Coroa, o principal mecanismo do Antigo Sistema Colonial. Afinal era este monopólio que garantia grande parte da exploração da colônia pela metrópole. Subvertia-se assim a ordem colonial, a ponto de muitos historiadores preferirem datar o fim do período colonial não pela independência em 1822, mas sim pelo fim do exclusivo comercial em 1808.

A transferência da Corte para o Brasil deu início a um período de grande desenvolvimento, em especial para o Rio de Janeiro, com a instalação de órgãos públicos, criação de cursos superiores, vinda de missões científicas e artísticas, criação do Banco do Brasil, fim da restrição às indústrias manufatureiras, exploração do território e o surgimento da imprensa. Dessa forma, D. João VI alterava as relações entre Portugal e o Brasil e procurava criar uma nova estrutura política, o Império Luso-Brasileiro, que começaria a ganhar forma institucional com a criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves em 1815, equiparando formalmente o Brasil com Portugal.

Paralelamente ia se construindo em torno de D. João VI um novo grupo dirigente no centro-sul do Brasil, formado tanto por nobres emigrados com o monarca, como por grandes comerciantes e senhores de terras já estabelecidos, que se beneficiariam também das novas relações estabelecidas entre a Corte no Rio de Janeiro com as demais áreas brasileiras, que em parte recriavam internamente as velhas relações entre Lisboa e as capitanias brasileiras.

O Retorno
A experiência em curso do novo Império Luso-Brasileiro rapidamente encontraria oposições, tanto no Brasil, com a derrotada Revolução de 1817 em Pernambuco, como em Portugal, com a inicialmente vitoriosa Revolução do Porto de 1820. Está de cunho liberal, defendia o fim da monarquia absoluta em Portugal, com a adoção de uma constituição, a volta de D. João VI para Lisboa e ainda questionava as novas relações com o Brasil.

Forçado pelos acontecimentos a retornar para Europa, D. João VI que deseja permanecer no Brasil, esperou em vão até o último momento um fato novo que justificasse sua permanência no Rio de Janeiro. O retorno do monarca abriu a etapa de nossa independência, em um processo extremamente conversador, se comparado com o resto do continente, e sui generis, por ser capitaneado por D. Pedro, filho do monarca e herdeiro do trono português, mas essa é outra história.

200 anos depois, qual balanço podemos fazer?
Do ponto de vista pessoal do monarca, a opção pela transferência para o Rio de Janeiro acabou sendo positiva, pois mesmo não podendo impedir a separação do Brasil de Portugal, acabou por garantir o domínio da nova nação aos seus descendentes. Na conjuntura revolucionária do início do século XIX, pode-se dizer que foi um dos monarcas mais bem sucedidos.

Para as classes dominantes, o período foi crucial para a construção de uma via pacífica para a independência, uma via que dispensou um maior engajamento popular, permitindo assim a manutenção do regime monárquico e da escravidão, permitindo a continuidade das estruturas coloniais, dos latifúndios e da monocultura exportadora, agora vinculadas diretamente à Inglaterra, e ainda permitindo a derrotada de todos os projetos nacionais alternativos, mesmo que burgueses, de construção da nação em outras bases, com o fim do trabalho escravo e a adoção da república como forma de governo.