Os professores precisam escolher se estão do lado da polícia ou dos estudantesEstudantes insatisfeitos ocupam universidade exigindo contratação de mais professores, construção de mais salas de aula e reformas na gestão universitária. A reitoria chama a polícia que desaloja violentamente os manifestantes.

Onde poderia se passar essa narrativa? Na USP destes dias?

Neste caso, tratava-se da Sorbonne, em Paris, ocupada pelos estudantes em 3 de maio de 1968. Depois que foram expulsos manu militari pelo ministro Alain Peyrefitte no dia seguinte já se sabe o resultado: uma explosão de fúria juvenil e estudantil, uma onda de barricadas e o despertar de uma inteira geração para o sonho de transformar a realidade com a indignação justa dos jovens que resolveram combater a injustiça do mundo.

Será este, de novo, o roteiro paulista e brasileiro de 2007? Começou uma “nova onda” na história do movimento estudantil brasileiro? Qual será o seu caráter, a sua amplitude e a sua profundidade?

O conteúdo das reivindicações, aparentemente apenas “acadêmicas”, pode parecer tão semelhante e difuso como era o dos estudantes franceses no seu início: melhoria de condições de ensino, democratização da universidade, resistência a atitudes repressivas. A intervenção policial apenas radicalizou e ampliou a contestação, que passou a questionar diretamente o próprio governo. Independentemente do desfecho imediato do conflito que está fazendo da USP a referência para todo o movimento estudantil brasileiro, este outono paulista se assemelha a outras primaveras.

O espírito de rebelião estudantil, quase sempre, não é pontualmente acadêmico, nem estritamente apenas político, mas torna-se uma contestação global dos valores pelos quais se afirma uma ordem estabelecida.

Poderíamos esquematizar em três as vocações do movimento estudantil: uma corporativa e acadêmica (defesa de melhores condições de ensino e de vida para os estudantes, tais como moradia, alimentação, transporte, prédios, instalações); uma segunda, de ordem política (defesa de liberdades públicas, contra ditaduras, contra decretos governamentais); e ainda uma terceira que seria a cultural ou de costumes (liberdades individuais, como as de opção sexual ou de estilos de vida juvenis).

Defender com invasões de cinema o direito à meia-entrada seria da primeira vocação, assim como fazer greve pela contratação de mais professores ou bloqueios de rua pelo passe escolar no transporte, ou seja, a defesa das condições materiais e econômicas da vida dos estudantes. Exigir eleições diretas para presidente, a autonomia universitária ou a demissão de um secretário de estado já se tornam reivindicações diretamente políticas direcionadas a alterar uma política governamental ou mesmo a derrubar um governo. Direitos de escolher o cabelo ou o vestuário, a música, a prática sexual ou o uso de psicoativos se inscreveriam na terceira modalidade.

A forma como essas três dimensões se combinam na história dos movimentos estudantis é múltipla e sempre interligada. Em 1977, em São Paulo, a luta pelas condições de ensino logo se tornou defesa de presos políticos e desafio à ditadura. Em Sorocaba, em 1981, uma manifestação pelo direito ao beijo reúne milhares de estudantes que produzem um conflito político anti-ditatorial. Em 1968, na França, a questão dos dormitórios segregados sexualmente em Nanterre combinou-se com uma ocupação da Sorbonne por reivindicações materiais (contratação de professores e mais salas) e acadêmicas (alteração no sistema de avaliação) cujo desalojamento violento pela polícia desencadeou uma luta social de imensa profundidade. Em Seattle, em 1999, uma reunião de estudantes, grupos juvenis e o amplo espectro da esquerda desencadeou uma onda de “movimentos anti-globalização” que cercaram as reuniões dos órgãos oficiais da gestão dos negócios capitalistas com milhares de manifestantes em diversas cidades do mundo. Na Alemanha, em 1968, a morte de um estudante numa manifestação contra o Xá da Pérsia detonou a fúria estudantil. Em São Paulo, em 1986, pelo direito de exibir o filme de Godard Je vous salue Marie, proibido pelo governo Sarney, milhares de estudantes da PUC enfrentaram agentes federais que fugiram disparando tiros para o ar.

Atualmente, nesta luta, em 2007, dos estudantes das universidades paulistas, destacam-se, ao lado de reivindicações materiais a defesa política da causa da autonomia universitária. Mas a autonomia é vista, não como algo que diz respeito apenas aos estudantes, cientistas, professores e funcionários, mas como algo que imbui na essência da universidade um espírito público e um programa voltado para as maiorias socialmente desfavorecidas e, por isso, se choca com o projeto dos decretos de Serra de uma pesquisa “operacionalmente dirigida” e de uma universidade dominada por fundações que atendem interesses privados.

Se os estudantes fossem apenas os profissionais que se preparam para a competição nas funções técnicas e intelectuais especializadas da variedade das profissões, por que de quando em quando, acometeria aos jovens estudantes de todos os países uma vontade de transformar a vida e o mundo e de desencadear movimentos políticos estudantis que, de fato, mudam a história?

Isso ocorre porque os movimentos estudantis são como a consciência de uma geração que desperta e não aceita o mundo que lhe é legado, buscando com sua ação passar a ser sujeito do seu destino coletivo e não mais indivíduos passivos e concorrentes no lugar ao sol do êxito profissional. Ainda mais quando esse êxito é cada vez mais distante e inalcançável para a maioria dos diplomados devido ao desemprego estrutural de uma época de crise social e econômica.

Neste século XXI, num mundo em crise civilizacional, com o anúncio de uma catástrofe ecológica de aquecimento global para as próximas décadas, em meio a uma crise estrutural da economia planetária financeirizada, onde o desemprego é a perspectiva mais provável mesmo para os diplomados das melhores universidades e, especialmente num país em que as esperanças de mudança da geração anterior foram tão frustradas pela cooptação do PT e de Lula para o campo do “pensamento único” neoliberal e submisso aos ditames da hegemonia imperialista estadunidense, não é de se estranhar que esteja ocorrendo um movimento estudantil massivo e radicalizado.

Num espaço universitário com o brasileiro, em que nem sequer se exerce alguma forma de consulta democrática ampla e efetiva para a escolha dos reitores, e num país em que os processos eleitorais vem sendo corroídos por uma corrupção de reiterados escândalos de financiamentos ilícitos de campanhas, de manipulação midiática, de compra de votos e de mandatos por mensalões e troca-trocas partidários, é evidente que o conteúdo da democracia é formal e tão inautêntico como o era o liberalismo oitocentista dos fazendeiros escravistas. A juventude não está apenas apática, despolitizada e com asco pela política, mas está buscando outras formas mais diretas e mais autênticas de se aprender a fazer uma política democrática.

No início do século XX, a classe dominante formava seus filhos para gerirem os negócios familiares e do Estado. O bacharel de Direito era o emblema dessa sociedade. Novas profissões liberais como médicos e engenheiros ampliaram esse espectro, mas a grande mudança ocorre após os anos sessenta/setenta, quando uma enorme massa incorpora-se à universidade ampliando o tempo médio de escolaridade da população e respondendo à demanda de novas segmentações técnicas que a complexidade das novas tecnologias e mercados exigia.

A educação e, especialmente, a universidade tornam-se os grandes mecanismos de ascensão social das classes médias e mesmo de talentos individuais nas camadas desfavorecidas. Mas os estudantes não são apenas isso: a gênese de futuros profissionais graduados e pós-graduados nas diversas esferas técnicas e científicas hiper-especializadas indispensáveis para a divisão social do trabalho nos diversos setores da economia.

É o anúncio de uma nova geração que estamos assistindo e ouvindo. Como escreveu Walter Benjamin, em 1913, em A vida dos estudantes: “o estudantado seria visto assim em sua função criativa, como o grande transformador com a missão de converter em questões científicas, através de posicionamentos filosóficos, as idéias que costumam despertar antes na arte e na vida social do que na ciência. (…) Onde cargo e profissão constituem, na vida dos estudantes, a idéia dominante, esta não pode ser a ciência”.

No entanto, notava o jovem Benjamin aos 22 anos, “a falsificação do espírito criador em espírito profissional, que vemos em ação por toda parte, apossou-se por inteiro da universidade e a isolou da vida intelectual criativa…”.

A real busca de um saber crítico reside na vocação estudantil para extravasar os limites acadêmicos de seus currículos e buscar na prática da vida, da cultura e da política os caminhos para um aprendizado existencial que sempre incluiu, como elemento central, o espírito generoso da revolta contra o que é considerado injusto e incorreto.

Quando o famoso Instituto de Pesquisa Social, em Frankfurt, na Alemanha, foi ocupado por estudantes rebelados, em 31 de janeiro de 1969, o seu diretor e fundador, Theodor Adorno, chamou a polícia.

Em uma série de cartas, o seu amigo e colega Herbert Marcuse repreendeu-o e criticou-o severamente, dizendo de maneira clara que: “em determinadas situações, a ocupação de prédios e a interrupção de aulas são atos legítimos de protesto político (…) na medida em que a democracia burguesa (em virtude de suas antinomias imanentes) se fecha à transformação qualitativa, e isso através do próprio processo democrático-parlamentar, a oposição extraparlamentar torna-se a única forma de contestação: desobediência civil, ação direta”.

Em outras destas cartas Marcuse expunha de forma clara, para o contexto alemão da época, a mesma disjuntiva que se coloca hoje para todo professor da USP, Unicamp e Unesp diante da atual crise das universidades paulistas: “Dito brutalmente: se a alternativa for polícia ou estudantes de esquerda, estou com os estudantes – com uma exceção crucial, a saber, se a minha vida for ameaçada ou se for usada violência contra mim e os meus amigos e a ameaça for séria. Ocupações de salas (exceto a minha casa) sem esse tipo de ameaça violenta não é razão suficiente para se chamar a polícia (…) De fato, não se deve ‘caluniar abstratamente’ a polícia. É evidente que em certas situações eu também chamaria a polícia. Em relação à universidade (e só em relação a ela) assim o formulei recentemente: se houver uma ameaça real de agressão física a pessoas e de destruição de materiais e equipamentos que servem à função educacional da universidade”.

Se houver um crime, um estupro ou um assalto, seja nas nossas casas, como na universidade é lícito e, muitas vezes, indispensável, chamar a polícia. Mas, diante de um conflito político ou social, chamar a polícia sempre é uma forma violenta de defender o poder vigente. Especialmente a despreparada polícia de choque do governo Serra que recentemente demonstrou em plena praça da Sé lotada a sua disposição em dispersar multidões a tiros de balas de borracha, bombas e cassetadas.

No caso da USP, o movimento se caracteriza por ser absolutamente pacífico, nunca ter destruído qualquer material ou equipamento educacional, administrativo ou científico, nem ter ameaçado ninguém de violência física, ao contrário, a única ameaça de violência física provém da entrada de uma tropa de choque.

As posições opostas de Herbert Marcuse e de Theodor Adorno são os pólos éticos e políticos que novamente se confrontam entre o professorado no atual conflito desencadeado a partir da ocupação da reitoria da USP e de outras dependências da Unesp e Unicamp e as alternativas são excludentes: estar com os estudantes ou estar com a polícia.

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