Rodrigo Barrenechea, do PSTU-RS
Rodrigo Barrenechea, do PSTU-RS
Palestina, século I. Brian, nascido na Galileia, apaixonado por uma ativista pela libertação da Judeia, começa a frequentar reuniões de um grupo radical, a Frente do Povo Judeu. Em sua primeira missão, é mandado pichar o muro de um prédio público romano. Escreve incorretamente “Romanes eunt domus”, no que é imediatamente corrigido por um centurião. “’Domus’? Nominativo? ‘Vão pra casa’, isso é ação adiante, não é, rapaz?”. A piada, que gira em torno à dificuldade das declinações latinas, na verdade é uma alegoria sobre como se sentem os povos dominados por uma nação imperialista. E disso, sabemos, os ingleses entendem bem.
A cena, uma das mais célebres de “A vida de Brian”, é criação do comediante, ator e diretor inglês Terry Jones, “a mãe” de Brian no filme. Jones foi um dos fundadores do Monty Python, um dos mais criativos grupos de humor da TV e do cinema mundiais, e que revolucionou o humor na tela ao introduzir o surrealismo e o non sense em suas criações. Formado a fins dos anos 1960, começou como uma série de programas para a BBC inglesa, sem muita regularidade – diferente da TV americana, que estabeleceu desde bem cedo um padrão de exibição de séries, em geral 26 episódios por temporada, a TV inglesa não usa um padrão fixo. Um caso é a série “Doctor Who”, que era exibida em arcos e não tinha exatamente nem temporadas nem padrão de número de episódios em sua fase clássica, nos anos 1960 a 1980.
O “Monty Python Flying Circus” (“Circo Voador do Monty Python” – sim, a referência é óbvia) reunia esquetes variados, sem personagens fixas. Um dos mais conhecidos é a “corrida de cem metros para pessoas com problemas de orientação”; dada a largada, cada um correu para uma direção diferente. O programa foi ao ar por 5 anos, de 1969 e 1974, e deu origem a um filme, “E agora algo completamente diferente”, com os esquetes da TV sendo refeitos para o cinema. Jones frequentemente escrevia os quadros, além de interpretar papeis femininos – como a mãe de Brian. Após o fim do programa, o grupo planejou voos mais altos: o cinema.
Uma vez Jones, referindo-se ao espírito democrático do Monty Python, disse: “Se nós seis ríssemos de algo, então achávamos, ‘OK, isso é algo que dá para levar adiante’”. Isso é visto na primeira produção cinematográfica própria do grupo, “Monty Python e o cálice sagrado”, escrito e co-dirigido por Jones. No filme, Arthur, reis dos bretões, e os cavaleiros da Távola Redonda, após desistirem de ir para o Castelo de Camelot (“Tá, lá é um lugar chato mesmo”), são comandados por Deus a encontrarem o Santo Graal. Deus, no caso, é bem-humorado e detesta ter o saco puxado. O primeiro aspecto do filme – e que vai ser motivo de piadas pelo resto da produção – é que os cavaleiros não usavam cavalos. Para fazer o ruído de cascos, os escudeiros usavam cocos, que não existem em climas frios como o inglês. Como os cocos foram parar ali, quem viu o filme sabe…
O próximo passo era pensar numa produção mais grandiosa, já que o “Cálice Sagrado” havia saído bem barato. E para ele, Jones preparou um verdadeiro insulto. “A vida de Brian” fala de algo que é muito delicado para cristãos e judeus: o período da dominação romana na Palestina. Roma havia conquistado o Reino de Judá no século I a.C. e transformado a região na província da Judeia. Foi o governador romano Pôncio Pilatos quem crucificou Jesus, supostamente em 33 d.C., assim como provocou a segunda diáspora judaica, ao destruir Jerusalém em 70 d.C. Mas nada disso impediu o grupo de fazer piada com judeus, cristãos e romanos imperialistas – e, consequentemente, consigo mesmos e com o passado de colonialismo inglês.
Brian nasceu na Galileia, bem ao lado da manjedoura onde Jesus nasceu, e recebeu a visita dos Reis Magos, que o saudaram como o Messias. Mas, rapidamente, notaram o engano, e tomaram de volta os presentes que haviam dado à mãe de Brian, para revolta dela. Brian, então, cresceu vendendo lanches na arena, assistindo gladiadores e judeus sendo devorados por leões. E entrando em contato com grupos radicais que buscavam a libertação da Judeia, mas que passavam o tempo todo brigando entre si – uma piada com as diversas seitas judias que viviam na região, como zelotes e essênios, mas também com as inúmeras organizações de esquerda que militavam na classe operária inglesa sob o guarda-chuva do Partido Trabalhista.
Não vamos contar mais aqui do filme; quem não viu, assista. Mas a cena final vale a pena ser lembrada. Brian é crucificado. Vê a mãe, que fez pouco dele. Os amigos da Frente do Povo Judeu, que leram uma nota de repúdio ao domínio romano (lembra algo?). Assiste o suicídio coletivo dos radicais da Frente Judaica do Povo, que não deu em nada (mais uma referência irônica, no caso aos grupos radicais islâmicos). Aí o colega ao lado, um ladrão, diz a ele que não deveria se preocupar com isso, que tudo ia melhorar. O filme termina com todos cantando “Olhe sempre para o lado bom da vida” (“Always look on the bright side of life”), à moda das comédias românticas hollywoodianas que sempre acabavam numa canção feliz. Óbvio que o filme causou comoção, gerou ferozes críticas e foi um grande sucesso.
O Monty Python ainda fez mais um filme, com menos impacto, “O sentido da vida”, e se separou. Mas os amigos permaneceram amigos, tendo feito parcerias em diversas produções. Jones ainda dirigiu diversos filmes, sendo o mais conhecido por aqui “Erik, o Viking”, estrelado por Tim Robbins, além de séries para a TV, em geral com temática medieval, uma paixão dele. Um dos mais interessantes é “Blazing Dragons”, um desenho animado exibido entre 1996 a 1998 que mostrava a cavalaria medieval do ponto de vista dos dragões. Outra paixão era os livros infantis, que Jones escreveu em quantidade, muitos deles para seus próprios filhos. Com a guerra do Iraque, no início dos anos 2000, Jones torna-se um ativo opositor do conflito, escrevendo diversos artigos para jornais, que resultaram num livro, “War on the War on Terror” (“Guerra à Guerra ao Terror”). Seu último trabalho como diretor foi em 2015, em “Absolutely Anything” (“Absolutamente tudo”), junto a alguns colegas do Monty Python, mas teve recepção fria da crítica e do público.
Diagnosticado com uma forma de demência em 2015, afastou-se das artes. Foi homenageado no Bafta Cymru – versão galesa do prêmio mais importante do cinema e TV inglês – e deu uma última entrevista em 2016, junto ao parceiro de anos do Python, Michael Palin. Mas manteve a mesma atitude bem-humorada que manteve nos anos de atividade. Casado por duas vezes, teve dois filhos da primeira união e um da segunda. Faleceu na noite do dia 21 de janeiro de 2020, aos 77 anos.
Uma de suas cenas mais memoráveis foi, ainda, em “A vida de Brian”. Em frente a casa de Brian, uma multidão gritava, chamando pelo seu salvador. Aí a mãe dele sai e responde: “Ele não é o Messias, é apenas um garoto sem-vergonha!”. Um verdadeiro demolidor de mitos, esse foi Terry Jones.