Desde agosto do ano passado, a prefeitura deu início ao processo de revisão do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Salvador – PDDU* (Lei nº 7.400/2008), assim como da Lei de Ordenamento do Uso e Ocupação Urbana do Solo – LOUOS (Lei nº 3.377/84). Como nas demais médias e grandes cidades brasileiras, o planejamento urbano da capital baiana, apresentado pelo prefeito ACM Neto (DEM), é excludente, voltado para o mercado, atendendo unicamente os interesses do grande capital imobiliário.
A minuta do PDDU desconsidera a cidade como o espaço onde se desenrola e ganha sentido à vida cotidiana, como construção humana, produto histórico-social de uma série gerações. Toda a lógica do PDDU é baseada apenas no uso do espaço urbano e sua apropriação pelo setor imobiliário, isto é, condiciona o uso do espaço da cidade à sua condição de mercadoria. Não é à toa que logo no artigo 8º, §2º, a minuta afirma que função social da propriedade é um direito de usufruto reservado a proprietários. Nessa lógica, a cidade de Salvador se resume à restrita parcela de pessoas que têm propriedade imobiliária. Logo, a maior parte da população que vive em condições de informalidade, sem acesso à terra urbanizada, alijada de direitos sociais e humanos fundamentais e do direito à cidade, está excluída do PDDU.
A exclusão é tão absurda que diante a mais de 500 páginas da minuta, o tema racial está sintetizado em apenas três parágrafos. Salvador é a cidade mais negra do País, 51,7% da população, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE/Censo 2010). A maioria esmagadora da população negra reside nas periferias, morros e encostas. Em bairros onde há maior carência de infraestrutura técnica (redes de abastecimento, iluminação, esgotamento) e social (escolas, postos de saúde, áreas de lazer). A proposta de PDDU é manter o povo negro e pobre nesta situação, garantindo o avanço da população branca e rica nos espaços dotados de infraestrutura e belas paisagens naturais, como a orla do Atlântico.
A proposta de PDDU é tão absurdamente voltada ao grande capital imobiliário que retrocede em medidas adotadas no PDDU de 2007-2008. É o que ocorre com assentamentos de população remanescente de quilombos e comunidades tradicionais vinculadas à pesca e a mariscagem. Simplesmente, exclui a referência cultural negra dos quilombolas e das comunidades tradicionais.
Quanto aos imóveis subutilizados ou vagos, a minuta simplesmente ignora este tema. De acordo com os dados do Censo de 2010, a cidade de Salvador tem 101.297 domicílios vagos. Seria possível requalificar, restaurar e garantir moradia popular a quem precisa, utilizando parte significativa desses imóveis. Mas não poderemos esperar uma proposta dessa magnitude de ACM Neto. A temática é simplesmente ignorada, sendo que a Região Metropolitana de Salvador tem um déficit de 128,6 mil habitações, sendo que 75% desse total está concentrado na sede da região metropolitana. Salvador tem, portanto, um déficit habitacional de 93 mil habitações, o quarto maior do país, menor apenas que São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, como aponta os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
O favorecimento ao capital imobiliário é tão descarado que a proposta de PDDU permite o sombreamento de praias, a ausência de regras para a verticalização da cidade, a construção de prédios no entorno de parques urbanos e a supressão de 3,5 mil hectares de espaços de proteção ambiental. A coisa é tão feia que até as determinações do indecente Estatuto das Cidades e da Lei Orgânica de Salvador são desrespeitadas.
Lutar para barrar o PDDU
Sem dúvida nenhuma esta proposta de PDDU não serve ao povo pobre, negro e trabalhador de Salvador. ACM Neto e sua turma sabem disso, não por acaso todo o projeto vem sendo enfiado goela abaixo da sociedade com a ajuda de seus secretários e da bancada de vereadores governistas. Audiência públicas de mentira foram convocadas só para cumprir a agenda e dizer que ouviu a população, quando na verdade esta se quer foi convocada para debater.
A tarefa que cabe aos movimentos sociais e às organizações da esquerda socialista e combativa é lutar para impedir a aprovação deste projeto. O primeiro passo é organizar uma frente de luta que organize debates e mobilizações com os setores excluídos por este projeto, ou seja, com a maioria da população.
Nesse debate não podemos deixar de compreender a cidade enquanto realidade material, revelada através do conteúdo das relações sociais que lhe dão forma. Relações sociais essas que se revelam na ocupação diferenciada e desigual do espaço urbano. O capitalismo deu ao espaço urbano um caráter econômico, elemento de realização da produção do capital. Logo, os projetos urbanos apresentados pelos governantes estarão à serviço desta lógica da reprodução do capital, do espaço urbano como mercadoria.
Cabe a nós o dever de apresentar um programa que caminhe na lógica inversa, que apresente uma saída na lógica da classe trabalhadora. Devemos levantar a bandeira do fim da especulação imobiliária, expropriando os terrenos destinados a este fim para construir escolas, hospitais, casas populares e creches públicas; expropriação dos imóveis subutilizados e fechados, destinando-os à moradia popular; valorização e requalificação das áreas históricas, quilombolas e tradicionais; projeto de mobilidade urbana que parta pela municipalização do transporte público, com tarifa social e passe livre para os estudantes e desempregados; defesa dos espaços de proteção ambiental, proibindo a construção de obras em seu em torno.
Só assim poderemos apresentar uma outra concepção de cidade e de espaço urbano, partindo do pressuposto das necessidades sociais do povo pobre e trabalhador, rompendo com a lógica mercadológica do capital e seus governos de plantão.
*Alguns dados deste artigo foram retirados do site – www.participasalvador.com.br
*É geógrafo e militante do PSTU-BA