Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Assisti, agora, um vídeo indignado e comovente de Soraya Misleh, militante do PSTU que, há muito, é nossa porta-voz mais aguerrida da causa palestina. Causa e partido que ela abraça com paixão revolucionária não só porque tem sua própria história marcada pela contínua Nakba (a “catástrofe”, iniciada com a formação do Estado racista de Israel, em 1948, através de uma limpeza étnica planejada), mas também por entender que a única saída para seu povo é completa libertação da Palestina, do rio ao mar, numa perspectiva socialista.

Contudo, o que mais chamou minha atenção nesta fala, em particular, é algo que também tem me incomodado há dias: a forma completamente escrota com que a “grande mídia” tem noticiado o conflito iniciado no fim de semana. De forma sistemática, com uma repetição massacrante e calculada, telejornais e a imprensa escrita, sem exceções, têm criado dois “campos”: o dos “terroristas”, impiedosos e assassinos, “versus” o de “seres humanos”, agredidos e mortos injustamente.

Não que isto seja algo novo ou que surpreenda. Há muito, os teóricos da Comunicação minimamente sintonizados com a da realidade afirmam que a grande  mídia é “habitada pelo poder”. Ou seja, que na democracia burguesa (leia-se, na ditadura de uma minoria endinheirada), a imprensa, financiada e patrocinada por banqueiros, empresários e o agronegócio, nada mais é do que porta-voz do capital e seus interesses. Mas, assim como está ecoando nas ruas de Gaza, também diante da imprensa, é preciso dizer: “Já basta!”.

A mídia também tem as mãos sujas com o sangue palestino

“Racistas. É isso que esta mídia é: RACISTA. Para esta mídia, os palestinos não são iguais a eles. Tanto é que a gente vê a cobertura nojenta que está acontecendo, que nem sequer coloca (assim como não coloca os negros, os indígenas…) como humanos iguais a eles. São os outros. Essa cobertura dá licença, agora, para Israel fazer o que sempre fez: matar mais e mais palestinos”, diz Soraya Misleh no vídeo, lembrando que, em nenhum momento e durante décadas, os crimes contra a humanidade cometidos pelo Estado racista de Israel foram qualificados como terrorista, apesar de não faltarem motivos para tal.

Como a própria Soraya escreveu no artigo “Palestina resiste em meio a pogroms e morticínio na Nakba contínua”, no final de junho, em apenas 24 horas, Israel promoveu 300 ataques a Gaza, numa nova onda de “pogroms” (perseguições e atos massivos violentos contra determinada comunidade ou grupo étnico) que elevou o número de palestinos mortos, somente no primeiro semestre de 2023, para cerca de 250 (cinco vezes mais do que no ano anterior).

Números que, contudo, para a grande mídia, simplesmente não contam. Não significam nada. Assim como nada dizem sobre os 5.200 presos políticos palestinos (dentre os quais 33 mulheres e 170 crianças) que são, diariamente, barbara e cruelmente torturados pelo Estado de Israel ou sobre as sanções e cerco militar dos territórios palestinos que fazem de Gaza, por exemplo, um verdadeiro campo de concentração, onde 2 milhões de pessoas (80% delas dependendo de ajuda humanitária, sempre barrada nas fronteiras) vivam espremidas, famintas e sob constantes ataques em um território de dimensões ridículas: 41 Km de comprimento e apenas de 6 a 12 Km de largura.

Mas, se o silêncio sobre tudo isso já é sinal de uma cumplicidade asquerosa com o Estado racista de Israel; agora, quando os palestinos e palestinas se levantam em uma heroica demonstração de rebeldia e luta, o apagamento das vozes palestinas é literalmente criminoso. É como se, diante dos gritos de “Basta é basta!” que ecoam nas ruas bombardeadas de Gaza e entre os gritos de dor e sofrimento, os porta-vozes da burguesia respondessem com um cruel “Vocês merecem morrer! Que o massacre continue!”.

E, ao fazerem isto, estão simplesmente repetindo, embrulhado em um hipócrita discurso humanista, vozes como a do ultradireitista ministro da Defesa israelense Yoav Gallant; este, sim, capaz de dizer o que realmente pensa e está fazendo: “Estamos impondo um cerco total à Gaza. Sem eletricidade, sem comida, sem água, sem gás, tudo bloqueado. Estamos lutando contra animais e agimos em conformidade”, declarou o sionista, em vídeo, neste 9 de outubro.

Cuidado com a imprensa! Ela pode te fazer adorar o opressor

Em um de seus últimos discursos, em 13 de dezembro de 1964, o líder negro norte-americano Malcolm X, deixou uma lição ultra importante. “A imprensa é tão poderosa no seu papel de construção de imagem, que pode fazer um criminoso se passar por vítima e a vítima se passar por criminoso. Esta é a imprensa, uma imprensa irresponsável. Se você não for cuidadoso, os jornais vão acabar te fazendo odiar as pessoas que estão sendo oprimidas e adorar as pessoas que estão levando a cabo a opressão”.

Nada mais certo e atual, principalmente num mundo dominado pelas tecnologias de informação. Por isso mesmo, no vídeo, Soraya também acertou em cheio ao lembrar que o tratamento da mídia ao povo palestino lembra aquele que é dado a negros, indígenas e todos aqueles e aquelas (como os imigrantes, por exemplo) que são considerados como “outros” em relação aos que se alinham com os ideais e, também, os padrões da classe dominante.

Afinal, este é um mundo em que um acidente bizarro com um submarino carregando turistas bilionários ganha mais projeção na mídia do que as dezenas de milhares de mortes terríveis causadas por naufrágios em embarcações improvisadas lotadas de gente fugindo de guerras, da pobreza e da fome. Esse é um sistema em que os assassinatos brutais de crianças e jovens, periféricos, pobres e pretos, mortos em ações policiais, são naturalizados e transformados em estatísticas, enquanto um eventual crime cometido contra alguém do “andar de cima”, ganham intermináveis manchetes.

Um mundo onde vidas indígenas, latinas, não-brancas, africanas, periféricas, pobres, palestinas, quilombolas etc. simplesmente não importam. Servem, sim, para produzir toda a riqueza do mundo, mas não são dignas de sequer virarem notícia. E mais: sequer merecem ser ouvidas.

Perguntem a si próprios: Quantos vozes palestinas vocês ouviram na cobertura dos últimos dias? Quantos rostos não-israelenses, distorcidos pela dor e pela perda, foram mostrados na TV? Quantos brasileiros, parentes e amigos de palestinos mortos e feridos na Faixa de Gaza, foram procurados pelos repórteres?  Quantas reportagens contaram a história do Nakba, dos pogroms, dos bombardeios, dos presos políticos, das torturas e assassinatos cometidos por Israel? Quantas vezes foi mencionado que o Estado de Israel repete, na forma e conteúdo, o regime de “apartheid” (separação, na língua dos brancos sul-africanos), baseado em raça-etnia e religião?

Com certeza, praticamente nenhuma. E não é um acaso que tenha sido assim tanto na mídia quanto nas falas de governantes ao redor do mundo. Inclusive, lamentavelmente, o brasileiro que, no momento, ao ocupar o comando do Conselho de Segurança das Organizações das Nações Unidas, poderia cumprir um importante papel na defesa do povo palestino.

“Lula, não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor”

Por isso, não poderia concluir sem mencionar outro trecho da fala da Soraya, desta vez dirigindo-se ao governante petista, cujas declarações ao invés de se juntarem ao coro de “Basta é basta” dos palestinos têm ecoado as vozes opressoras dos sionistas.

“Lula, queria mandar um recado pra você. Você disse que condenava os ataques terroristas. Não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor. Isso foi Malcolm X que ensinou pra gente. Isto é resistência, não é terrorismo. É resistência legítima. Essa é uma luta anticolonial por libertação nacional. Eu fico chocada em ver que vocês não saibam diferenciar e estão aplaudindo um Estado que continua matar palestinos”, disse Soraya.

Algo que não tem nada a ver com uma suposta defesa do fim dos conflitos, muito menos com a “ignorância” de Lula sobre o que está em jogo no Oriente Médio. Mas, sim, com a continuidade de uma intensa relação capitalista e comercial, que fez com que, somente em 2023, as exportações brasileiras para o Estado racista somassem cerca de US$ 570 milhões (R$ 3 bilhões), enquanto o Brasil importou mais de U$ 1 bilhão (R$ 5,6 bilhões) de Israel.

Importações que, sabemos muito bem, não se limitam a produtos agrícolas e petróleo, já que, há muito, o Brasil, inclusive sob os mandatos anteriores do PT, importa a morte do Estado de Israel, como foi destacado na declaração da Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-QI) em apoio à heroica resistência do povo palestino.

Essa diplomacia hipócrita atende a governos em seus negócios com o apartheid sionista, inclusive importando tecnologias militares. Caso do Brasil, cujas armas são as mesmas usadas no genocídio pobre, indígena e negro nas periferias. São governos como o de Lula, que se dizem ‘amigos dos palestinos’, ao mesmo tempo que igualam, sem constrangimento, opressor e oprimido, e não tardaram em fazer coro à condenação mundial à resistência palestina agora”, lembra a declaração da LIT.

Diante de tudo isto, está nas nossas mãos, dos ativistas, movimentos, organizações sociais e políticas, sair em defesa do povo palestino e sua legítima luta pela liberação nacional, contra a opressão e exploração por parte de um Estado racista e assassino.

Uma tarefa que passa, obrigatoriamente, pelo rompimento do silêncio (ou pura e simples distorção dos fatos) cúmplice e criminoso por parte da imprensa. Algo que precisa ser feito não só através de todos os meios de comunicação que tenhamos à mão, mas também através de manifestações, como as que estão sendo chamadas país afora. É preciso fazer o grito de “Já basta!” ecoar mundo afora.