As massas em movimento podem derrubar ditaduras de décadas e também podem fazer avançar a passos largos a consciência, a organização e a participação política das mulheres.
Os acontecimentos da cidade conhecida como a capital do algodão prenunciam as mudanças no ânimo das massas e na situação política do país. Homens e mulheres trabalham em fábricas têxteis em Mahalla, dos 30 mil operários da região, 6 mil são mulheres e foram elas que cumpriram um papel decisivo na luta que se tornou um símbolo da resistência. A greve começou e elas ocuparam as fábricas. “Acho que não tivemos escolha. Nossos salários haviam caído tanto e o preço da comida era tão alto que já ninguém nem comia nem vivia”, descreve Widdad Dimirdash, uma das operárias que esteve no comando de uma das greves. A luta acabou vitoriosa, em três dias Mubarak concedeu o aumento. Até a queda do ditador, em fevereiro de 2011, foram milhares de greves, incluindo a famosa batalha do dia 6 de abril, na qual as operárias e os operários de Mahalla foram novamente protagonistas de uma luta que virou referência.
Mulheres na linha de frente
Nas revoluções do Norte da África e do Oriente Médio as mulheres ocuparam um lugar no cotidiano das lutas. Na Tunísia foi um grupo de mulheres que começou os protestos contra o regime de Ben Ali, marchando pela principal avenida da capital. No Iêmen as ruas de Sanaa e Tais foram tomadas por mulheres de véu. Na Síria as mulheres bloquearam estradas próximas à cidade de Bayda e aos gritos de “não seremos humilhadas” demonstraram força e coragem na luta contra o regime sangrento de Assad.
Na Líbia, as mulheres foram para o front da guerra civil, assumindo distintos papéis: espionando as fortalezas de Kadafi, contrabandeando armas e informações e cuidando dos feridos da guerra. Em Benghazi e Toruk as mulheres foram às ruas depois de um episódio de estupro praticado pelas forças leais à Kadafi.
Na praça Tahrir
Circulam pela internet dezenas de artigos, notícias e entrevistas emocionantes descrevendo os fatos que transcorreram nas mobilizações que derrubaram o ditador egípcio Mubarak. Em todos eles há uma marca comum: o reconhecimento de que as mulheres tiveram um novo lugar na Praça Tahrir.
Gigi Ibrahim, jovem ativista egípcia descreve: “As mulheres faziam parte de toda a organização do dia a dia em Tahrir. Nós marchamos e combatemos a polícia, enfrentamos bombas de gás lacrimogêneo e balas. (…) Outras mulheres assumiram um papel direto na luta contra os capangas do regime. Elas arrancaram pedras da calçada, partindo em pedaços menores para atirá-las nos inimigos com coquetéis molotov e metralhadoras.” Engana-se quem pensa que o papel das mulheres foi somente o de tímidas expectadoras da revolução. As mulheres cantavam, formavam suas próprias colunas, falavam nos palcos da praça.
Os comportamentos também mudaram. Quem luta para mudar o mundo também muda a si próprio. “Discriminação contra as mulheres e o assédio sexual estão entranhados na cultura egípcia. (…) Mas desde o início da revolução, e ao longo dos 18 dias que passei na praça Tahrir, eu não enfrentei o assédio sexual nenhuma vez. Havia milhares de nós dormindo em tendas, ao lado de estranhos. No entanto, era como se fôssemos todos amigos e familiares. Eu me senti totalmente segura. Nós compartilhamos de alimentos e água, nós respeitamos uns aos outros. Senti-me totalmente diferente de antes. E, olhávamos ao redor da praça Tahrir, havia pessoas de todos os tipos: pobres, classe média, homens, mulheres, cobertas e descobertas, muçulmanos e cristãos.”
Isso toma uma dimensão ainda mais extraordinária quando analisamos o contexto em que vivem as mulheres árabes. Dados do Centro Egípcio para os Direitos das Mulheres apontam que 83% das mulheres são assediadas sexualmente. Além disso, estima-se que muitas mulheres sofrem mutilação genital no Egito.
A violência contra as mulheres ultrapassa muito o âmbito doméstico. É uma política levada a cabo pelos governos, inclusive a Junta Militar, para humilhar, desmoralizar e dividir os trabalhadores. Há relatos de práticas bárbaras como testes de virgindade, choques elétricos e humilhação psicológica obrigando as manifestantes a ficarem nuas na frente de policiais.
No final de dezembro uma cena chocou o mundo inteiro: uma mulher teve sua roupa arrancada e foi espancada por policiais num ato contra a Junta Militar. O mesmo Estado que se utiliza das tradições e da religião, muitas vezes deturpando a cultura islâmica para oprimir as mulheres, não tem o pudor de quebrá-las completamente quando se trata de reprimir a revolução.
As mulheres não se calaram diante do horror e a repressão foi seguida por um ato considerado pelos historiadores como uma das maiores mobilizações de mulheres do mundo árabe. A maior do Egito desde 1919, quando elas foram para a luta contra o colonialismo inglês. A força do movimento fez com que os militares tivessem que fazer uma declaração defensiva: “O Conselho Supremo das Forças Armadas expressa a sua tristeza para as grandes mulheres do Egito, com as violações que ocorreram durante os recentes acontecimentos”.
As eleições para o parlamento Egípcio também revelam limites e contradições. Dos 498 membros do novo parlamento eleitos em novembro apenas nove são mulheres. Muitas ativistas temem que a presença expressiva no parlamento de grupos islamitas radicais, como os salafistas, signifiquem retrocessos como o uso obrigatório do véu.
Revolução x contrarrevolução
O destino dos direitos das mulheres, porém, será definido na arena da luta de classes, na encruzilhada entre revolução e contrarrevolução que segue colocada. Se a consolidação do novo regime no Egito é uma disputa em curso, o avanço dos direitos das mulheres depende não só da continuidade da revolução como da organização e da luta permanente das mulheres trabalhadoras. Isso não é uma tarefa fácil. As mulheres são educadas a serem coadjuvantes na vida política. Essa não é uma particularidade do mundo oriental; é uma condição da mulher trabalhadora sob o capitalismo. Sobre as trabalhadoras recai um fardo ainda maior, elas não estão fora da vida política somente porque são mulheres, mas também porque são trabalhadoras. Mas apesar de toda a opressão e exploração, elas estão fazendo sua revolução. A luta das mulheres árabes é um grande exemplo para as mulheres do mundo todo.