Kornilov

Ao mesmo tempo em que lutavam contra Kornilov, os bolcheviques não tiveram nem um auge de confiança em Kerensky. Não se tratava de defender o governo, mas sim a revoluçãoApós a repressão nas Jornadas de Julho, a contra-revolução ergue a cabeça: “a correlação de forças havia se modificado em desvantagem para o povo, mas ninguém sabia dizer até que ponto. Em todo o caso, o apetite da burguesia havia aumentado muito mais que suas possibilidades. (…) Os conciliadores estiveram completamente dispostos a permitir o aniquilamento definitivo dos bolcheviques, apesar de ser evidente que depois de haver acabado com os bolcheviques, os oficiais, cossacos, ‘cavaleiros de São Jorge’ e as brigadas de assalto, acabariam com os mesmos conciliadores…os cadetes [1] queriam ir até as últimas conseqüências para varrer não apenas os bolcheviques, mas também os sovietes… Com isso, os bolcheviques ficavam de fato fora da lei. Kerensky suspendeu toda a imprensa bolchevique… Nas províncias, os comitês agrários eram fechados…” [2]

Mas não devemos esquecer que seguia existindo o duplo poder entre os sovietes e o governo provisório. Que os bolcheviques tinham maioria no soviete de Petrogrado e grande peso no resto do país.

Sobre Lênin, Kamenev e Zinoviev, pesava uma ordem de captura. Trotsky e muitos outros bolcheviques estavam presos. O ataque era comandado pelo partido cadete em estreita conexão com os industriais e diplomatas imperialistas e com os militares. Os cadetes exerciam pressão sobre os conciliadores (socialistas revolucionários e mencheviques) por meio do Alto Comando. A guerra seguia produzindo enormes baixas. A situação das tropas na frente era desastrosa. Em 8 de julho, Kornilov, general chefe da frente sul-ocidental, deu ordem de disparar com metralhadoras e artilharia contra os soldados que bateram em retirada. Kornilov havia exigido pouco antes disso a implantação da pena de morte na frente de combate, ameaçando, em caso contrário, com a renúncia ao comando.

Em poucas semanas o general Kornilov foi nomeado chefe do Estado Maior. Como resposta à elevada designação, ele mandou um novo ultimato ao governo. Aceitava a nomeação apenas sob as seguintes condições: “responsabilidade ante sua própria consciência e ante o povo, exclusivamente; nenhuma intervenção na nomeação do alto comando; restabelecimento da pena de morte no interior.” (…)

“A publicidade ao redor da figura do novo generalíssimo passava a ocupar o centro da política burguesa. A biografia do ‘primeiro generalíssimo popular’ foi difundida numa quantidade imensa de exemplares, com a cooperação ativa do quartel general…” [3] Kerensky queria destituir Kornilov, mas não encontrou apoio nenhum no governo provisório.

O complô de Kerensky
Kerensky sabia que o retrocesso das massas não significava uma derrota definitiva, tampouco dos bolcheviques. Especulava usar a força armada para sustentar seu débil governo. Por isso, inventou que os bolcheviques preparavam um golpe, financiados pelos alemães, e reclamou ao general Kornilov que pusesse o corpo da cavalaria a disposição do governo em Petrogrado. Kerensky estava disposto a montar uma provocação baseada na suposta “insurreição bolchevique” e, para isso, organizou um complô com Kornilov.

“Em 26 de agosto, o governo, fazendo caso omisso dos protestos do comitê executivo (dos sovietes) contra sua política contra-revolucionária, deu um passo ousado a favor dos latifundiários, duplicando o preço do trigo. O caráter odioso desta medida publicamente formulada a fazia aparecer como algo muito próximo a uma provocação consciente das massas famintas. Era evidente que Kerensky tentava conquistar a extrema-direita… mediante um bom presente… Está absolutamente fora de dúvidas que a Kerensky lhe davam medo o quartel general e a simpatia com que a burguesia rodeava os conspiradores militares. Mas Kerensky considerava necessário lutar contra o quartel-general, não com a ajuda de um corpo da cavalaria, mas com a realização por conta própria do programa de Kornilov” [4].

O golpe militar
Com antecedência, Kornilov já havia mobilizado para o ataque contra Petrogrado as quatro divisões da cavalaria, que eram consideradas como as mais eficazes para a luta contra os bolcheviques. Não para colocá-las à disposição do governo, mas para se livrar do mesmo e controlar ele próprio a situação, exigindo “a entrega imediata do poder pelo governo provisório ao generalíssimo chefe”. A diplomacia imperialista e seus agregados militares tomavam parte ativa na mobilização das forças contra-revolucionárias.

“Naqueles dias, Petrogrado vivia uma dupla intranqüilidade… A queda de Riga fazia com que a frente se aproximasse. A questão da evacuação da capital… adquiria agora um caráter mais agudo. A gente acomodada abandonava a cidade. O êxodo da burguesia obedecia muito mais ao medo de uma nova insurreição que à invasão do inimigo. Em 26 de agosto, o comitê central do partido bolchevique repetiu: ‘Gente suspeita… realiza uma agitação provocativa em nome de nosso partido’” [5].

A ruptura entre o governo e Kornilov era um fato consumado e evidente diante de todo o país. O comitê da associação dos oficiais enviou um telegrama a todos os estados maiores do exército e da frota, sentenciando que o governo provisório não poderia continuar à frente da Rússia. O chefe da missão militar britânica na Rússia exclamava: “não sinto interesse algum pelo governo Kerensky, é muito frágil; o que faz falta é uma ditadura militar, existe necessidade dos cossacos, esse povo precisa de chicote”. O êxito de Kornilov parecia inevitável.

As massas desbaratam o golpe militar
Mas as massas populares, dentro e fora das tropas, sentiam ódio e hostilidade quanto a Kornilov. Ninguém, nem entre os soldados nem nas aldeias, dava crédito aos manifestos do general, pensando: “quer o poder, mas não diz nem uma palavra sobre a terra nem em terminar a guerra”.

Por esta razão, “os soldados de Kornilov não tentaram de jeito nenhum fazer uso das armas para abrir caminho sobre Petrogrado. Os chefes não se atreveram a ordenar tal coisa. As tropas do governo não tiveram que recorrer à força em nenhuma parte para conter o ataque dos destacamentos de Kornilov”.

“O complô havia sido tramado por aqueles círculos que nem sabiam nem estavam acostumados a fazer nada sem a gente de baixo, sem a força operária, sem a bucha de canhão… Todos esses pequenos parafusos humanos, inumeráveis, invisíveis, necessários, estavam de parte dos sovietes e contra Kornilov. A revolução, onipresente, não havia lugar em que não penetrasse, rodeava o complô, e seus olhos, seus ouvidos, sua mão, estavam alerta por todas as partes”.

“A entrada das barricadas de Petrogrado no campo de batalha modificou imediatamente a direção da luta. Uma vez mais, ficou clara a inesgotável vitalidade da organização soviética, que, paralisada no alto pela direção dos conciliadores, no momento crítico ressuscitava à mercê da pressão das massas”.

“Para os bolcheviques, que eram a alma dos bairros operários, o golpe de Kornilov não teve nada de inesperado. Haviam-no previsto, haviam-se colocado em guarda contra ela e foram os primeiros a ocupar seus postos. O partido bolchevique já havia tomado todas as medidas que estavam a seu alcance para informar o povo do perigo e preparar a defesa; os bolcheviques se declaravam dispostos a realizar seu trabalho, no terreno da organização do combate, de acordo com os órgãos do comitê executivo… Os ferroviários levantaram os trilhos e puseram obstáculos nas vias para conter o avanço das tropas de Kornilov… Na reunião com delegados de numerosos regimentos, aprovaram exigir a detenção de todos os conspiradores, armar os operários, enviar a eles soldados na qualidade de instrutores, assegurar a defesa da capital desde baixo e preparar-se ao mesmo tempo para a criação de um regime revolucionário de operários e soldados” [6].

O golpe fracassou por completo. Kornilov se rendeu sem resistência, oito horas depois de ter declarado ao povo: “prefiro a morte a me separar do cargo de generalíssimo”. Os marinheiros da esquadra do Báltico faziam os oficiais assinarem uma declaração de fidelidade à revolução, e quando quatro oficiais do cruzeiro Petropavlovsk se negaram a assinar e se declararam kornilovianos, foram imediatamente fuzilados por comum acordo entre a tripulação.

A posição de Lênin e Trotsky
“Nas horas em que estavam livres de serviço, os marinheiros iam à prisão ver seus companheiros detidos, Trotsky, Raskolnikov e outros. ‘Não chegou o momento de deter o governo?’, perguntavam os visitantes. ‘Não, não chegou ainda’, era a resposta, ‘apóiem o fuzil sobre o ombro de Kerensky e disparem contra Kornilov. Depois ajustaremos as contas com Kerensky’.”

Clandestino, Lênin escreve ao comitê central: “chegar a formar um bloco com os socialistas revolucionários, sustentar o governo provisório, supõe o erro mais crasso ao mesmo tempo em que dá prova de uma falta absoluta de princípios. Não nos converteremos em defensores ‘até depois’ da tomada do poder pelo proletariado. (…) Sequer agora devemos apoiar o governo de Kerensky. Seria faltar com os princípios. Alguém fará uma objeção: não será preciso combater Kornilov? Claro que sim; mas entre combater Kornilov e apoiar Kerensky existe um limite, e este limite o ultrapassam alguns bolcheviques caindo no ‘conciliacionismo’, deixando-se arrastar pela torrente dos acontecimentos” [7]. Por isso, nada tem de surpreendente que as massas dirigidas pelos bolcheviques, ao mesmo tempo em que lutavam contra Kornilov, não tiveram nem um auge de confiança em Kerensky. Para elas se tratava não de defender o governo, mas sim a revolução.

NOTAS:
1.
Partido burguês liberal (em russo, KDT)
2. Trotsky. História da Revolução Russa
3. Idem
4. Idem
5. Idem
6. Idem
7. Trotsky. Lições de Outubro