"Marcha do Triunfo" desfila para Mussolini, em Roma, 1935
Jerônimo Castro, do Rio de Janeiro (RJ)

É muito difícil discutir o fascismo, e qualquer outro regime político, sem discutir o Estado. Em primeiro lugar, porque o fascismo é uma forma, um regime, assumida dentro do Estado burguês, assim como também é a democracia, as ditaduras militares e os regimes bonapartistas clássicos ou sui generis.

O Estado não existe desde sempre, ele se origina desde quando o trabalho humano se tornou capaz de produzir excedentes e passou haver a disputa por esse excedente, de forma velada ou não. Quando a humanidade se tornou capaz de produzir excedentes a sua necessidade foi também quando surgiu a exploração.

Os povos que viviam como coletores e caçadores eram capazes de produzir mais ou menos o necessário para sua própria sobrevivência, não havia como explorar o trabalho de outrem na medida em que este trabalho não produzia excedente. Toda exploração se baseia no fato de que, em um determinado momento, o trabalho passou a produzir mais que o estritamente necessário para a sobrevivência dos trabalhadores.

O hábito de alguns povos primitivos de comer seus prisioneiros, a antropofagia ritualística, vem justamente do fato de que não valia a pena pô-lo para trabalhar.

O Estado surge, portanto, da necessidade desarmar o conjunto da sociedade, de criar um aparato armado independente da comunidade, que proteja os interesses da classe que domina. A classe que se apropriará dos excedentes produzidos.

Para dar um exemplo, no escravista, havia uma sociedade baseado na exploração do trabalho na forma de escravidão, ou seja, quando o trabalhador não vendia apenas seu trabalho, mas era comprado inteiramente e de uma só vez. Era uma ferramenta como outra qualquer, propriedade de seu dono.

Houve muitas formas de Estado escravista, houve a democracia grega, houve a tirania, a república romana, o império, na república tivemos a ditadura. Todas essas formas de dominação – república, democracia, tirania, ditadura – eram bastante distintas, mas tinham um mesmo conteúdo de Estado, era um Estado escravista, que defendia o senhor de escravos contra os escravos e, às vezes, contra a plebe.

Escravos e plebeus se rebelaram mais de uma vez contra essa dominação dos senhores de escravos, basta nos lembrar dos Irmãos Graco, em Roma, que eram representantes dos plebeus, e da rebelião de Spartacus, o gladiador que havia se rebelado e conseguiu derrotar várias vezes o exército romano.

Na atualidade, é a mesma coisa. O Estado se apresenta de diversas formas, mas tem sempre um mesmo conteúdo, o da dominação burguesa. Ou seja, a garantia de que a burguesia possa seguir explorando a classe trabalhadora, extraindo dela os excedentes que ela própria produz.

1 A Burguesia: de classe revolucionária a reacionária

A democracia burguesa veio à luz, no mundo, sob o fogo e o ferro das revoluções burguesas. Houve um processo de transformação no qual, em sua juventude, a burguesia apresentava-se como uma classe social progressiva e, em seu momento de auge e heroísmo, alternou-se entre períodos de democracias e ditadura revolucionária.

A assembleia nacional, constituinte e legislativa, a convenção, os clubes, em que os jacobinos se tornaram o mais famoso, são alguns momentos que retratam o nascimento tormentoso desta forma de governar. Igualmente, o terror que matou milhares em Paris, inclusive ao rei Luís XVI, a Danton e Robespierre, bem como as guerras defensivas do período revolucionário, e também o império napoleônico, são todos, entre idas e vindas, parte deste processo ao mesmo tempo glorioso, sangrento e terrível.

Não foi somente na França que a burguesia travou uma sangrenta luta para assumir o poder, houve revoluções burguesas de diversos tipos e em várias partes do mundo, com características distintas, mas que buscavam a construção de um novo Estado.

Desta maneira, foram as guerras de independência nos Estados Unidos, no Haiti e na América Espanhola, por exemplo. Assim foi, também, com a Revolução Inglesa, no século XVII, cem anos antes da Revolução Francesa. A burguesia ascendente liderou, com maior ou menor fervor, as classes excluídas do antigo regime em direção a um novo mundo, onde quem governaria seria ela. Ao fazê-lo, colocou à margem as antigas forças políticas, a nobreza e o clero, e construiu um estado que a defendesse e garantisse sua existência.

Naquele momento, são aliados da burguesia o terceiro Estado, os pequeno burgueses, os artesões, os semiproletários e proletários existentes, o baixo clero empobrecido, a nobreza esclarecida (até certo ponto), os intelectuais e profissionais liberais. A burguesia reuniu, ao seu redor, os descontentes e desvalidos para mudar o mundo segundo os seus próprios interesses.

Terminada a onda revolucionária, e as guerras napoleônicas, veio então a restauração monárquica. A França, Alemanha e a Itália seguiam sem conseguir se unificar. As tarefas burguesas seguiam pendentes e eram necessárias novas revoluções para resolvê-las.

Em 1848, uma nova revolução explode na França e se espalha pela Europa, era a Primavera dos Povos. Mas as classes sociais haviam se desenvolvido, o terceiro estado, aquela junção entre burguesia, pequena burguesia, proletariado, baixo clero, mendigos etc., havia se redefinido. Estas classes ganharam contornos mais nítidos, a burguesia e o proletariado já tinham seus interesses antagônicos bem definidos. A revolução começa, aparentemente, com este terceiro estado unido. No entanto, na medida em que se avança e que as massas abaixo da burguesia exigem mais direitos e concessões e que a palavra de ordem por uma república social vai ganhando contorno, a burguesia se separa violentamente do proletariado. Ela o enfrenta e o derrota, muitas vezes à custa de massacres. A burguesia, então, se une com os restos do regime feudal e adota novamente o Bonapartismo como regime político baseado na burocracia e no exército permanente, no medo e paralisia da própria burguesia e na sua necessidade de um árbitro aparentemente neutro para resolver os conflitos sociais, sempre defendendo sua propriedade e seus lucros.

Vale dizer que já o regime do primeiro Bonaparte, Napoleão, é bonapartista, só que progressivo, pois buscava à sua maneira preservar e consolidar as conquistas da revolução francesa.

Na Alemanha, as tarefas burguesas não serão resolvidas à moda revolucionárias, de 1789, mas por uma série de acordos e por um tipo especial de bonapartismo, o Bismarkismo.

2 Democracia e ditaduras

Dizer que um governo é democrático não significa que ele não seja violento. A essência de todo Estado, já dizia Engels, é a violência organizada a serviço de uma determinada classe social. Portanto, as democracias são violentas, e praticam a repressão duramente. Basta vermos o quanto mata a polícia brasileira, quantos mil presos temos nos presídios, a quantidade de massacres perpetrados nos últimos 30 anos, para vermos que não é a ausência de violência organizada pelo estado que distingue um regime do outro.

A democracia se distingue de todas os demais regimes de dominação burguesa por ela garantir a todos determinadas liberdades formais. O direito de reunião, de expressão, de livre manifestação, de livre associação. A garantia de um juízo justo, do direito a ampla defesa, de não ser preso sem um julgamento, nem de ser acusado sem uma lei previamente existente.

Dizemos que é uma garantia formal porque, para exercer esses direitos, parte-se de condições muito desiguais e, muitas vezes, é impossível consegui-lo. Por exemplo, para um operário exercer seu direito de livre associação, ele corre o risco de perder seu emprego, pois, ao final de contas o patrão dele é livre para contratar ou não seu serviço. Não temos nem o que dizer em respeito ao direito a ampla defesa, ao julgamento justo etc.

A outra característica da democracia burguesa é a tripartição dos poderes, divididos em executiva, legislativo e judiciário. É uma fórmula que permite que os diversos setores burgueses se vigiem mutuamente no exercício do controle do Estado.

Um terceiro aspecto importante da democracia burguesa é a elegibilidade dos representantes e governantes. Há lugares em que, inclusive, se elegem juízes e delegados, noutros apenas os deputados. No entanto, não apenas as democracias fazem eleições e o fato de que estas existam não são sinônimos de democracia. Ditaduras, como foi o caso da brasileira, realizam eleições. Nestes casos, os organismos eleitos nas eleições não são normalmente os que governam. Voltaremos a isso mais a frente.

A própria democracia burguesa não ocorre de maneira sempre igual. Em primeiro lugar, ela é fruto das diversas formas em que foi instituída. Temos as repúblicas presidencialistas, onde a figura central é do poder executivo, do presidente, os regimes parlamentaristas, em que é o parlamento que governa e as monarquias constitucionais que, ao lado do parlamento e do executivo, segue existindo de forma mais ou menos decorativa as famílias monárquicas.

Além disso, é bom que se diga, a democracia varia ao longo tempo e do espaço. A democracia nos países imperialista, são, normalmente, muito mais democráticas que nos países coloniais e semi coloniais. Há muito mais liberdade real na Europa, e nos EUA, do que no Brasil, Argentina e México, por exemplo.

Outro aspecto, é que o grau de liberdades democráticas também varia no tempo. Uma situação mais ou menos acirrada influencia no grau de repressão que se aplica contra as massas, sem que necessariamente se rompa os marcos da democracia burguesa. Uma democracia pode ter mais ou menos elementos de Bonapartismo, sem que se cruze a fronteira de um regime para o outro.

A democracia apresenta uma série de vantagens, quando ela pode ser aplicada, com a permissão não apenas para resolução dos problemas entre os distintos setores burgueses de forma mais pacífica, mas, também, por proporcionar as melhores condições para cooptar para dentro do regime burguês a parcelas da classe operária, e mesmo da pequena burguesia que, em determinadas condições, poderiam se enfrentar violentamente contra o Estado e o regime.

Além disso, a democracia se monta em um Estado que funciona a custa de funcionários permanentes, uma burocracia que de fato controla muita mais coisa do que o que se imagina. Milhões de funcionários permanecem na administração dos negócios de Estado. Muda-se o governo e, inclusive, muda-se o regime e muitos destes permanecessem nesta tarefa. Isto diminui a influência das eleições sobre o conjunto dos negócios burgueses e garante a burguesia que, mesmo que porventura as eleições saiam do controle, e se eleja um parlamento ou um governo menos dócil, o aparelho do próprio estado seja ainda controlado pela burguesia por conta de sua própria natureza.

No entanto, os regimes de dominação das classes não são como um menu onde a classe dominante escolhe, a seu bel prazer, como ela vai dominar as demais classes da sociedade. Entram aí outros fatores que vão muito além da vontade das classes. Uma série de elementos que poderiam ser resumidos na seguinte expressão: “correlação de força na luta de classes”. Neste pomposo nome, encontra-se a situação econômica em geral. Quando se tem uma correlação de forças favorável para a classe dominante, tende-se a permitir uma dominação com menos problemas e, quando ela é desfavorável, é comum, inclusive, que surjam divisões na própria classe dominante, na situação política, na relação entre os estados, no grau de descontentamento das classes dominadas e no seu grau de mobilização etc.

Dadas as contradições dentro da própria burguesia, uma fração dela pode lançar a carta do Bonapartismo. Este regime se difere da democracia, não pelos temas meramente formais, mas pelo conteúdo de sua dominação.

Um regime bonapartista pode ter eleições e plebiscitos, e inclusive órgão eleitos. Assim como um parlamento e um presidente da república eleito. No entanto, isso é a forma e não conteúdo.

Em primeiro lugar, não são nestes órgãos eleitos, no parlamento ou no presidente da república que o poder reside. O Bonaparte se apoia no corpo de funcionários do próprio estado para governar, ou seja, no empoderamento da burocracia estatal, por outro lado, e principalmente, ele se apoia também no exército permanente. É um governo do aparelho do estado que, aparentemente, se torna independente da sociedade. À sua cabeça está o iluminado, o César, o Napoleão, o homem forte.

Além disso, podendo manter a tripartição do poder, ainda que formalmente, a verdade é que o Bonaparte submete a justiça e o legislativo ao seu poder exercido por meio do executivo. Por fim, as chamadas “liberdades democráticas” são reduzidas. Inclusive a liberdade para setores burgueses. Um regime bonapartista fecha jornais, prende opositores, persegue os dissidentes, impede ou dificulta o exercício da liberdade de expressão, de organização e manifestação. Mas faz isso nos limites que seu próprio aparato militar – policial – burocrático permite. Este é um elemento importante, pois, veremos adiante, que no fascismo isso é diferente.

Há uma importante variação do bonapartismo, o chamado bonapartismo sui generis, que são regimes que se apoiam nos setores operários para enfrentar setores de sua própria burguesia e, também, ao imperialismo e assim conseguir melhores condições para o país no cenário mundial.

São regimes que surgem nos países semi-colonias, em condições muito específicas da luta de classes.

É um regime burguês, bonapartista, ou seja, com características autoritárias, ditatoriais, que também golpeiam aos setores operários independentes, mas que faz importantes concessões a outros setores.

Há uma série de exemplos deste tipo de regime que podemos citar, a America Latina passou por vários deles. O governo de Cárdenas (México), Nasser (Egito), Peron (Argentina), Velasco (Peru), Chávez (Venezuela) são todos regimes bonapartistas sui generis. Velasco deu sedes imensas aos sindicatos, Nasser nacionalizou mais de 80% da economia e manteve relações muito próximas com a União Soviética. Cárdenas nacionalizou a indústria petroleira e criou um conselho de administração que incorporava os sindicatos; Peron, na Argentina, criou uma legislação protetiva e ia frequentemente aos sindicatos tomar mate com os trabalhadores e dirigentes sindicais. Do ponto de vista social, pode ser circunstancialmente mais progressivos, pois dão aos trabalhadores melhores condições para a venda de sua força de trabalho. Do ponto de vista político, são uma tragédia, pois borram a consciência dos trabalhadores sobre a necessidade de uma organização política independente. O Peronismo, o Nasserismo, o Velasquismo, o Chavismo e por aí vai, são correntes burguesas que se apoiam nesta experiência e no saudosismo que ela causa diante da piora permanente do nível de vida das massas.

Há uma longa discussão sobre se bonapartismo se limita a estes elementos ou se as demais ditaduras e governos autoritários também podem ser considerados bonapartismo. Para além desta polêmica vale a pena destacar alguns pontos.

Na América Latina foram comuns as ditaduras militares, uma variante do bonapartismo clássico, onde é a instituição, ou as instituições militares (nomeadamente a marinha, exército e a aeronáutica), que governam. Este é um tipo de regime baseado nas Forças Armadas, e que normalmente põe um general para governar. Vale lembrar que Velasco, Chávez, Perón e Nasser eram militares.

O Exército, pelo seu peso social e capilaridade, confere ao regime uma base política que, dependendo das circunstâncias, pode lhe dar longevidade. A ditadura militar brasileira, por exemplo, durou 21 anos. Como todo bonapartismo, a ditadura militar elimina as liberdades democráticas na medida em que seu aparato policial militar o permite, reprimindo, inclusive, setores burgueses dissidentes.

Poderíamos falar, ainda, de regimes menos comuns como a teocracia no Irã, baseado nos Aiatolás, ou no governo absolutista da Arábia Saudita, onde ainda se apedreja mulheres, corta-se a mão de ladrões e uma série de castigos medievais são aplicados legalmente.

3 O fascismo: O que é?

Sendo um regime burguês, o fascismo é muito diferente de todos os que apresentamos até agora. Não porque não existam pontos em comum entre estes regimes, sim há. Por exemplo, o fascismo também se apoia na figura de um grande chefe e salvador (inclusive com mais ênfase) de modo parecido ao que ocorre no bonapartismo. Uma vez no poder, o fascismo instaura uma ditadura de caráter policial profunda, tal qual fazem as ditaduras policias militares.

Assim como em outras formas de ditadura, o fascismo se apoia em uma ideologia que reforça as opressões preexistentes na sociedade (opressão nacional, racial, de gênero e sexual) e ataca as liberdades democráticas. Não por acaso, os descuidados em geral, os ultraesquerdistas e os oportunistas, cada um por seus motivos, confundem, propositalmente, ou por falta de capacidade, o fascismo com um ou outro regime, algumas vezes inclusive com coisas que não tem nada a ver com o fascismo. A este ponto voltaremos mais tarde.

Possuindo pontos de contatos com outros regimes de dominação burguesa, o fascismo se difere dos demais em vários aspectos. Enumerarei algumas de suas características fundamentais:

1) Em primeiro lugar, o surgimento do fascismo é fruto de uma crise geral que se instala na sociedade, uma crise que, sendo de origem econômica, é também política e social e que coloca sucessivas vezes o real perigo da derrocada do regime de dominação burguesa. É necessário que setores majoritários da burguesia realmente creiam que estão sob um perigo iminente de sua total destruição para que ela lance mão desta cartada tão decisiva.

2) Em segundo lugar, o fascismo é fruto da incapacidade do proletariado de dirigir e apresentar uma saída para esta crise. Normalmente, o fascismo surge como uma resposta da pequena burguesia por sua perda de fé na capacidade da classe trabalhadora de tomar o poder e resolver a crise nacional a que o país esta submergido.

3) Em terceiro lugar, e muito importante, o fascismo é um movimento de massas, que abarca milhões de pessoas, em sua maioria pequeno-burgueses arruinados pela crise ou temerosos de se arruinar e lúmpens que se enquadram em seus bandos uniformizados cuja principal tarefa é atacar fisicamente, mesmo antes da tomada do poder, ao proletariado.

Este poderoso movimento de massas é organizado e enquadrado militarmente. Apenas para termos uma ideia, os camisas pardas (milícia paramilitar nazista), na Alemanha, organizavam mais de 4,5 milhões de pessoas. É um movimento radical plebeu, em certo sentido descontrolado, que a burguesia usa como um aríete para enfrentar e derrotar ao movimento de massas.

Neste sentido, pese ter participação nas eleições e representantes parlamentares, o fascismo é antes de mais nada um movimento extraparlamentar, que usa métodos ilegais, desde antes da tomada do poder, para se enfrentar ao movimento de massas e à classe operaria

Esse movimento, que possui algumas características altamente contraditórias, com uma base popular e plebeia, é, uma vez que a burguesia ou alguns setores destas se decidam, armado, uniformizado e alimentado pela alta burguesia e seus setores mais decididos a dar uma lição duradoura à classe operária.

4) Seguimos então para a quarta característica do fascismo. Em seu processo de desenvolvimento em ascensão para a tomada do poder, mas também após conseguir este objetivo, o fascismo tem como objetivo travar uma guerra civil, sem tréguas, até que se destruam todas as organizações, de todos os tipos, que a classe operária possa ter. A intenção é destruir partidos, sindicatos, clubes, times de futebol, escolas, centros recreativos etc. Isto é diferente dos outros regimes, que buscam incorporar as organizações operárias, ou coibi-las, ainda que sem poder acabar com elas. Ou seja, o objetivo do fascismo é a total atomização da classe enquanto ente organizado, em qualquer aspecto da vida social.

Para atingir este fim, não há aparelho policial que de conta, nenhum Estado pode incorporar em si esta quantidade de agentes, se faz necessário envolver setores sociais inteiros, por isso, a importância da pequena burguesia e do lumpesinato, eles são os agentes políticos da burguesia nesta luta mortal contra a classe trabalhadora.

Uma vez no poder, o fascismo tem que se adaptar ao Estado burguês e, ao mesmo tempo, exigir que aspectos deste Estado se adaptem a ele. Na Alemanha e Itália, foram necessárias purgas importantes para impor a ordem nas hordas fascistas após a tomada do poder. Famosa é a Noite das Facas Longas, quando, sob o comando de Hitler, as SA (abreviação de Sturmabteilung) passaram por uma pesada purga, em que seus principais dirigentes foram mortos, suas milícias depuradas e, finalmente, foram incorporadas às tropas de proteção nazistas SS (Schutzstaffel) e também ao exército.

Ainda assim, mantiveram-se importantes discrepâncias entre estes grupos armados. Citamos, como exemplo, as diferenças entre as SS, milícias cada vez mais militarizadas, e o próprio exército alemão. Basta lembrarmos que, já no meio da guerra, o general Erwin Rommel narrou em seus diários que ele não havia permitido ao seu filho servir nas SS que, naquele momento, já era um corpo militar de elite, exigindo que ele se engajasse no exército regular alemão.

Estas duas características do fascismo se devem ao mesmo motivo, o fato de ele ser um movimento de massas, que, por um lado, precisa ser controlado uma vez que chegue ao poder e, por outro, a tarefa de criar novos líderes, muitos de origem plebeia, popular. As outras instituições, como as milícias, exigem uma reacomodação ao chegar ao poder.

Esta característica, tão importante do fascismo, de ser um movimento de massas é o que ao mesmo tempo: a) faz com que a burguesia o tema e só lance mão dele como último recurso; b) faz dele um inimigo tão perigoso e poderoso, o único que de fato pode levar a cabo sua missão de exterminar politicamente ao proletariado.

Outro elemento de confusão, importante, é que o fascismo não apenas ataca aos partidos e as organizações operárias, sejam elas de qualquer orientação política. O fascismo ataca também os liberais e, inclusive, os conservadores burgueses. Isso é assim pois o fascismo vê os liberais, e também os conservadores mais ou menos “democráticos”, como cúmplices das organizações operárias, uma vez que “permitiam” sua existência. Estes setores que, muitas vezes apoiam o fascismo em sua ascensão crendo poder controlá-lo e negociar um acordo com ele, veem-se ao final frustrados e, não raro, acabam encostados ao mesmo paredão que os membros da classe trabalhadora.

Disso não se deduz que o fascismo se coloque acima do capital e do trabalho, como uma expressão própria de Estado por cima das classes. Nada mais equivocado, pois, ao atacar as representações políticas tradicionais da burguesia, o fascismo expropria politicamente esta. Porém, ao mesmo tempo, mantêm e aprofunda sua dominação econômica. Ao destruir toda forma de organização operária, abrem-se as comportas para um aumento inimaginável da exploração da classe trabalhadora, permitindo congelar e reduzir salários e benefícios que os trabalhadores por ventura gozem. Além disso, o desenvolvimento de uma política armamentista leva a que o Estado se torne um grande comprador o que acaba por beneficiar o conjunto da burguesia.

3.2 O combate ao fascismo

Como expressamos mais acima, não foi fácil para as diversas correntes políticas que enfrentaram ou, para ser mais exato, que foram enfrentadas pelo fascismo, a chegarem a uma justa interpretação do que de fato o fascismo representava. E, a partir desta dificuldade, a de ter uma caracterização correta do fenômeno, muitas delas cometeram erros que lhes custaram caro.

Os liberais e os conservadores, verão nos nazistas e fascistas uma plebe arruaceira que podem controlar a seu dispor e usar como tropa de choque contra o conjunto do movimento operário.

A social democracia dirá que representam a reação feudal, mas, ao mesmo tempo, creem que seja capaz de negociar e conviver com eles, da mesma forma que convivem com outras forças burguesas. E tentará, desde um início, se juntar às forças burguesas, e clamar ao Estado que reprimam as forças fascistas quando estas saem do controle. Ela cometerá um triplo crime no combate ao fascismo, deixa-os atuar contra os comunistas em proveito próprio, tenta unir-se à burguesia contra os comunistas e os fascistas e acredita que o Estado burguês combateria de alguma forma o fascismo, e a defenderia.

Quando surgiu na Itália, houve uma tendência de enxergar o fascismo como mais uma forma de reação política burguesa, ou seja, uma variação desta. Inclusive, logo após a chegada ao poder, Mussolini atuou lentamente, esta dificuldade se mantêm.

A terceira internacional dará uma série de caracterizações parcialmente corretas, seja a da Clara Zetkin, seja a de Trogliatti, seja a de Gramsci e, inclusive, a de Thalheimer. Escritas no período que vai de 1923 a 1934, buscaram entender o fenômeno novo a que depararam. No entanto, desta totalidade parcialmente correta, muitas vezes contraditória, não surgira uma síntese proveitosa, mas, já marcada e influenciada pela estalinização, a terceira internacional produzirá as mais terríveis e bizarras interpretações do fascismo.

Durante o período que vai de 1928 a 1933, o Comintern, que neste momento era caracterizado por Trotsky como centrismo burocrático, dirá que tudo é fascismo, inclusive a social democracia, e dirá também que para derrotar o fascismo é necessário primeiro derrotar a social democracia.

A teoria do social fascismo custará caríssimo ao proletariado alemão, e a revolução socialista europeia.

Em 1933, com a vitória de Hitler na Alemanha, o Comintern dará um giro de 180 graus, e passará a defender uma política diametralmente oposta, e igualmente equivocada. As frentes populares para combater o fascismo.

A frente popular, que foi concebida por George Dimitrov, era a teorização ou a “legalização” de uma política eleitoral discutida por décadas dentro do movimento operário. A tese de que se era lícito ou não compor frentes com forças burguesas no processo eleitoral para governar o Estado burguês. Uma composição feita, inclusive, em bases programáticas. Esta proposta definia as tarefas por uma etapa dentro do governo. O estalinismo, no “combate” ao fascismo, concluiu que sim era possível este caminho. Seria correto se juntar às forças reformistas e “democráticas” para derrotar o fascismo. Na verdade, poderia fazer tal composição com quase qualquer uma que não fosse fascista ou que aceitasse aliar-se com os comunistas.

(Ao mesmo tempo, o fascismo foi por assim dizer, uma ótima desculpa para legitimar tal politica que no plano internacional seria a aliança com os imperialismo democráticos contra os imperialismos fascistas.)

Implicitamente, nesta politica, se concluía que era possível derrotar o fascismo pela via eleitoral. Que mesmo em uma situação de crise aguda a burguesia e o Estado burguês podiam combater consequentemente o fascismo e que seria pela via das institucionalidades burguesas que se combateria o fascismo, e não pelas ações das massas.

3.3 – Trotsky e a luta contra o fascismo

Virá de Trotsky a mais brilhante interpretação do que é o fascismo, como ele surge, se organiza, se desenvolve e, principalmente, como combatê-lo.

Em uma série de textos, Trotsky sintetizará o aprendizado do movimento dos trabalhadores, em especial de sua vanguarda, os comunistas. Isto ele faz já em sua diáspora forçada pelo estalinismo.

Nas obras em que ele discute a situação Alemã (e que depois será editado com o título, Revolução e contra revolução na Alemanha), a situação na França (que será editado com o título Aonde vai a França), na Espanha (em Escritos sobre a Espanha) Trotsky vai demonstrar, com maestria, não apenas o que é o fascismo e quais perigos ele encerra. Vai, também, demolir os erros do estalinismo na Alemanha, onde este se nega a formar uma frente única com a social democracia para derrotar o fascismo. Na França e, posteriormente, na Espanha, o erro oposto de formar uma frente popular e se iludir de que era possível derrotar o fascismo se unindo a um suposto bloco democrático. Neste último, as consequências foram muito piores.

Ninguém que não tenha estudado estes três materiais têm qualquer condição de dar uma opinião realmente válida sobre o assunto.

3.3.1 – O que propõe Trotsky

Trotsky dirá que é necessário defender os elementos de democracia operária existente dentro da democracia burguesa. Defender as liberdades democráticas, que mais acima dizemos que são formais, pois para sua real execução é necessário condições materiais, que só podem ser exercidas pela classe operária coletivamente.

Assim, defender os jornais operários, os edifícios e locais de reuniões (sedes de partidos e sindicatos operários), as manifestações e a próprias reuniões, torna-se uma política central de combate ao fascismo.

Esta defesa não pode ser feita clamando à polícia e ao Estado burguês que desarmem ou detenha o fascismo. Em muitos casos, as poucas armas que a polícia toma desses bandos com a mão direita, lhe devolve em dobro com a mão esquerda. Não é desconhecido por ninguém que oficiais da polícia, e do exército, sempre facilitaram o armamento dos bandos de direita, de extrema direita e do fascismo. Em algumas ocasiões, eles são inclusive parte destes bandos.

Para defender as conquistas democráticas do proletariado, no seio da democracia burguesa, é necessário construir milícias operárias. Estes são grupos que, partindo de experiências comuns, como um piquete de greve, um grupo de defesa de uma manifestação, estejam dispostos a se organizar para proteger ao conjunto do movimento operário.

Esta medida é uma das fundamentais na construção de uma frente única operária contra o fascismo.

Muito já se falou da frente única operária, porém não nos custa nada repetir algumas coisas. É impossível formar uma frente única operária com o reformismo com o objetivo de tomar o poder. A essência do reformismo é, justamente, sua luta contra a revolução no seio da classe operária. No entanto, na medida em que o fascismo ameaça a existência material e física dos dirigentes do reformismo, na medida em que suas sedes são atacadas, seus comícios desbaratados por arruaceiros, na medida em que seus militantes, quadros e dirigentes são ameaçados, intimidados, espancados e mortos por bando para militares, surge, em especial na base, mas também em setores dirigentes do reformismo a consciência do real perigo do fascismo.

É claro que sempre haverá oscilações, que sempre haverá o desejo de confiar mais no Estado burguês, na justiça, nos liberais, republicanos e democratas burgueses. Mas uma política justa de chamado à direção, por um lado, e de ação junto às bases que demonstre a viabilidade de uma frente única para se defender do fascismo demoverá ou, pelo menos, dividirá a direção e as bases do reformismo.

Por outro lado, é preciso prestar atenção à pequena burguesia. Em que pese esta classe não poder ter um projeto próprio para a sociedade, ela é fundamental para a dominação burguesa e igualmente muito importante para a vitória do proletariado.

Sendo uma classe muito desigual, em que seus estratos superiores imperam uma determinada mentalidade e um modo de vida próximo à burguesia, mas em seus extratos mais pobres há muitas condições materiais e psicológicas do proletariado.

Uma política justa para a pequena burguesia passa, em primeiro lugar, por incutir nela segurança de que o proletariado está disposto a lutar e que pode vencer. Passar tal segurança a pequena burguesia só é possível se o próprio proletariado acredita em suas possibilidades de vitória.

O proletariado, pela sua própria natureza, pelo fato social de que uma de suas grandes vantagens está em seu número, sente invariavelmente a necessidade de unidade para lutar e passa a acreditar na possibilidade de vitória. Eis que voltamos novamente à questão. Uma política de frente única contra o fascismo se faz fundamental para derrotá-lo, incutir nas massas a certeza da vitória e arrastrar atrás de si à pequena burguesia.

As medidas econômicas voltadas a este setor, à pequena burguesia, e à garantia de que a vitória do proletariado lhe trará mais vantagens que desvantagens, a busca incessante de diálogo com os estratos empobrecidos desta classe são parte central da política revolucionária contra o fascismo.

Por fim, a burguesia não é, em nenhum momento, um aliado confiável na luta contra o fascismo. Acreditar que uma hipotética burguesia democrática se colocará ao lado do proletariado e permitirá que este vença ao fascismo em uma luta física, permitindo neste ínterim que o fascismo se una e se arme, e crer na ilusão de as classes sociais se suicidam. A burguesia ama mais suas propriedades e seus privilégios do que a democracia.

Dito isso, não está descartado em situações pontuais fazer um acordo bastante restrito para em comum, inclusive com alguma força burguesa defender, na ação, alguma liberdade democrática. Como a libertação de algum preso politico ou a revogação de alguma lei draconiana.

No entanto, sempre vale lembrar que nenhuma cédula eleitoral é suficientemente forte para derrotar o fascismo, as muitas maquinações e combinações eleitorais antifascistas foram, no geral, a antessala da vitória do fascismo. Além de desviar a luta de rua para a luta legal e eleitoral, este mecanismo cometeu sempre o crime de apagar a fronteira de classe no combate, e fez com que uma parcela da classe trabalhadora acreditasse que existe uma burguesia “boazinha” e democrática e outra “má” e fascista.

Por fim, nunca enquanto houver capitalismo, se poderá dizer que o fascismo está derrotado para sempre. Enquanto houver capitalismo esta é uma hipótese vigente.

Conclusões

Por mais que nós odiemos a direita, os regimes democráticos burgueses cada vez mais com traços bonapartistas, os regimes militares com seu rol de tortura, mortes, exílios e perseguições, os esdrúxulos regimes da Arábia Saudita, com seus apedrejamentos de mulheres, perseguições e sofrimento sem fim às pessoas LGBTs, o regime “teocrático” dos Aiatolás, no Irã, que derrotou e desviou a revolução iraniana e tantos outros que vemos todos os dias atuais nós não podemos, ao nosso bel prazer, e por conta de nossa justa indignação, utilizar gratuitamente para defini-los o epíteto de fascismo.

O fascismo é, como nós tentamos definir aqui, uma forma muito específica de dominação, que se forma em condições também muito específicas da luta de classes. Defini-lo significa demarcar qual é a correlação de força, uma política e também um perigo real que ameaça a classe trabalhadora e suas organizações.

É óbvio, que na vida cotidiana, e de forma corriqueira, muitas vezes o grito de “fascista!” nos vem à boca como uma maneira de manifestar nosso ódio e desprezo por uma atitude que condenamos. Isso é uma coisa. Outra é quando organizações gastam litros e litros de tintas para demonstrar que uma coisa, definitivamente não é, aquilo que se está dizendo.

É preciso investigar os motivos que levam a esta opção política. Definir qualquer inimigo, que esteja mais à direita, como pertencente ao fenômeno do fascismo pode ser mera ignorância, o que já não é uma coisa boa, mas também pode servir de justificativa para uma série de políticas, tão equivocadas como a própria definição de um fascismo que não existe.

Apoiando-se nesta definição de que há o fascismo, ou de que o fascismo bate à nossa porta, não são poucos os “esquerdistas” que imediatamente sacam da manga a carta da frente popular, ou da frente ampla, ou da unidade democrática, e por aí vai. De conteúdo, propõe-se diante do “perigo fascista” (real ou imaginário, mas na maioria das vezes imaginário) juntar todos os defensores da democracia, em um grande bloco eleitoral, e pedir sacrifícios a todos (mas só exigi-los dos trabalhadores) para derrotar o perigo eminente.

Portanto, uma definição correta do perigo que nos ameaça, nos permite não apenas combatê-lo corretamente, mas permite, além disto, combater corretamente àqueles que nos propõe uma saída tão danosa quanto à ameaça existente.

Mas há outro tema, mais importante ainda, que é quando de fato existe o perigo fascismo, ou seu risco iminente. Neste caso, a política de unidade com a burguesia, como já dissemos é ainda mais grave, mais perigoso e, com certeza, levará a derrotas ainda mais desastrosas. Só há uma força social capaz de deter uma verdadeira ameaça fascista, o proletariado, e conseguir convencê-lo disso a tempo, conseguir demonstrar o risco que se corre e as medidas necessárias para impedi-las, se torna ainda mais fundamental.

* Colaboração: Júlio Anselmo

Publicado originalmente no blog Teoria e Revolução

LEIA MAIS

O que é fascismo e como combatê-lo

Ultradireita, antifascismo e socialismo

Bibliografia:

August Thalheimer. Sobre o fascismo

Clara Zetkin. Como nasce e morre o fascismo

Mandel. O Fascismo

______, Teoria Marxista do Estado

Nicos Poulantzas . Fascismo y dictadura, La tercera internacional frente al fascismo

Trotsky. Revolução e contra revolução na Alemanha

______, Aonde vai a frança.

______, Escritos sobre a Espanha