O Carnaval de 2019 ficou na história. Por todos os lados protestos contra Bolsonaro e o clamor de resistência de todos os oprimidos e explorados, índios, negros, mulheres e LGBTs, ecoaram Brasil afora. Já a Mangueira desconstruiu em 60 minutos uma história contada por mais de 500 anos! E deu o recado: “é na luta que a gente se encontra”.

As ruas são a Ágora do povo brasileiro”, já dizia José Celso Martinez Corrêa, uma das figuras mais importantes do teatro brasileiro, em uma alusão às famosas assembleias realizadas pelos cidadãos da Grécia Antiga. Mas nessas assembleias, lembra Zé Celso, só homens livres podiam participar. Mulheres e escravos não tinham poder algum.

No Brasil, ao contrário, o Carnaval é celebração da vida e seus prazeres. Transforma as ruas no espaço onde o povo questiona e debocha dos valores as práticas da classe dominante. Em tempos de Bolsonaro, isso ganhou uma proporção colossal.  A luta contra o racismo, o machismo e a homofobia desfilou com todo esplendor em ruas e avenidas.

A politização tomou os blocos de Carnaval, e o maior derrotado foi Bolsonaro e sua trupe de milicianos, corruptos e conservadores fundamentalistas. Vídeos nas redes sociais exibem, de norte a sul do país, um mar de gente nas ruas entoando todo tipo de refrão contra o presidente.

Teve muito folião que saiu para desfilar vestido de laranja, uma referência às tramoias de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro. Marcaram presença também fantasias como Jesus na Goiabeira e meninas vestiram azul e meninos, rosa, em sátiras a Damares Alves. Em Olinda (PE), o boneco gigante de Bolsonaro foi recebido com vaias, latas de cerveja, pedras de gelo e gritos escatológicos.

O bloco Unidos da Repressão, formado pelas Polícias Militares de vários estados, também marcou presença na avenida com seu usual enredo de violência. Bombas de gás e de efeito moral foram usados contra diversos blocos, como o Fervo da Lud, comandado pela cantora Ludmilla. O resultado foram 217 foliões que precisaram de atendimento médico.  Em Belo Horizonte, um patético capitão da PM afirmou à imprensa que “trios e blocos não podem incitar manifestações políticas” no Carnaval. Não foi ouvido. Tomou vaia e escutou gritos impublicáveis.

O rebaixado
Bolsonaro ficou incomodado com o Carnaval. Por isso, postou nas redes sociais um vídeo obsceno para desqualificar a maior festa popular do país. Mais uma vez, virou motivo de piada, sendo ridicularizado no mundo todo. O que incomodou Bolsonaro, entretanto, foram os milhões que saíram às ruas contra sua ideologia de extrema-direita, preconceituosa, ignorante e moralista.

Mas além de passar vexame, Bolsonaro teve ainda que engolir na quarta-feira de cinzas a consagração da Mangueira e seu poderoso enredo de resistência (leia abaixo). Essa ressaca não vai passar tão cedo. O carnaval escancarou o sentimento profundo que corre por baixo da sociedade brasileira e mostra que a luta só está começando.

Mangueira: A campeã do povo
A história que a história não conta

A Estação Primeira de Mangueira lavou a alma do povo brasileiro ao conquistar seu 20º título. O samba enredo apoteótico da escola fez o Brasil vibrar muito antes da escola desfilar na Sapucaí. Foi tomado como um hino de resistência de todos aqueles que lutam. O enredo História para Ninar Gente Grande, assinado pelo carnavalesco Leandro Vieira, escancarou a história de todos os oprimidos, explorados e humilhados, invisibilizados pela história oficial escrita pelas elites.

O enredo cita vários personagens, inclusive recentes, como a vereadora Marielle Franco, assassinada há um ano. Mônica Benício, viúva de Marielle, desfilou pela escola. A vereadora também foi homenageada pela Vila Isabel, no Rio, e pela Vai-Vai, em São Paulo.

No “Brasil que não está no retrato”, os “heróis emoldurados”, como reis e rainhas, princesas, generais e marechais, são apresentados como anões em contraste com os índios e negros, os verdadeiros heróis do povo.

Cacá Nascimento, a garota que fez sucesso a ser a primeira intérprete do samba enredo, foi levantada por esses heróis do povo enquanto exibia um cartaz escrito “Presente”.

Pedro Álvares Cabral, a Princesa Isabel e Duques de Caxias foram exibidos em carros alegóricos dançando sobre corpos negros e indígenas. O famoso Monumento às Bandeiras, obra que fica em São Paulo e homenageia os bandeirantes, foi levado para avenida banhado pelo sangue indígena escravizado por esses facínoras.

Nelson Sargento e Alcione emocionaram ao interpretar Zumbi dos Palmares e Dandara, enquanto o timbau ecoava no repique da bateria “negro pensante” quando se cantava: “Brasil, chegou a vez/ De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês/ Mangueiraaaaa!”.

A Mangueira reinventou a bandeira do Brasil. Com as cores rosa e verde, a escola reescreveu o lema “Ordem e progresso” –da filosofia positivista, defendida pelas elites brasileiras – para exibir a inscrição “índios, negros e pobres”.

Após a escola conquistar o título de campeã do Grupo Especial, o carnavalesco Leandro Vieira desabafou: “Este é um recado político para o presidente Bolsonaro. Isso daqui é a festa do povo, Carnaval é a festa do povo, não o que ele acha que é. O Carnaval da Mangueira é o Carnaval do povo, da arte, da cultura popular!”. E ainda frisou: “Aqui todo mundo tá vivo porque resiste, porque se fosse por outros motivos ninguém aqui tava em casa.