Clinelta de Souza Abreu é uma jovem mulher de apenas 30 anos. Cuida sozinha dos quatro filhos: três meninas, de 14, dez e seis anos, e um menino de nove. Recentemente, foi demitida. Como muitas outras pessoas, Clinelta era moradora do Pinheirinho e foi despedida quando houve a reintegração.

Ela conta, chorando, a violência que sofreu. “Empurraram, bateram em mulher grávida, bateram em todo mundo. É polícia masculina, porque não tinha polícia feminina lá ainda. Saíram esculachando mesmo, tiraram a gente da cama, ninguém escovou os dentes. Trataram que nem cachorro”. Seu choro é de ódio.

O medo de que a separassem dos filhos era enorme. No dia 22, suas crianças ficaram dentro da casa com os PMs. “Eles não deixaram eu entrar pra pegar meus filhos, a vizinha que tirou meus filhos pra fora”, conta. O medo continuou depois: “A informação que a gente tem é que a gente fica num lugar, as crianças da gente ficam no outro. E onde eu tiver que estar, os meus filhos tem que estar comigo”. Por isso, Clinelta optou por não ir para os abrigos da prefeitura e ficar com o movimento.
A história de Clinelta se repete em cada mulher que conversamos. Sem dúvidas, foram elas que mais sofreram com o massacre. Também são elas que expressam, além da preocupação com o futuro incerto, a maior força de reação. No período que antecedeu a invasão policial, em geral, eram as mulheres que mais vivenciavam as ameaças. Muitas donas de casa ficavam à frente da resistência enquanto seus maridos iam para o trabalho.

Nos abrigos, humilhação e sofrimento. Não esqueceremos o dia em que uma pessoa chegou à porta da igreja, onde estava o alojamento do movimento, e gritou para a multidão: “Chegou o absorvente! Quem quiser vem aqui!”. Pode não parecer nada, mas quem é mulher sabe do que estamos falando. Elas perderam tudo e tiveram sua privacidade e sua intimidade violadas.

Uma senhora com câncer estava jogada num colchão. Outra com sequelas de um derrame usava o banco de trás de um carro como leito. Houve uma noite em que sua filha teve de trocar sua fralda e suas roupas em público. Mulheres mostravam as marcas dos tiros que levaram. Crianças pedem para as mães para irem para casa. Esse é o tratamento que o PSDB deu às mulheres guerreiras do Pinheirinho.

Por que as mulheres sofrem mais?
Pode ser que alguém pergunte: por que diferenciar as mulheres, se foram tão despejadas quanto os homens? Antes de tudo, precisamos reafirmar que a sociedade capitalista é, e sempre vai ser, machista. Como sempre dizemos, só o fim da exploração de um ser humano pelo outro é capaz de começar a dar fim às opressões sofridas por mulheres, negros, homossexuais e grupos étnicos.

As mulheres recebem os piores salários e estão nos piores cargos. A maioria dos postos de trabalho informal é ocupada por mulheres. Assim, elas são as que menos têm como pagar aluguel e impostos e ainda manter alimentação, educação e condições de saúde adequadas para seus filhos. Por esse motivo, muitas foram morar no Pinheirinho, onde eram maioria – muitas, chefes de família. “Eu não tenho condições de pagar aluguel, ‘é’ eu sozinha”, frisa Clinelta.

A questão da moradia ganha uma importância muito maior para as mulheres quando se trata de despejos. O machismo faz com que ainda sejam as mulheres as responsáveis pelo trabalho doméstico e o cuidado dos filhos. Como se isso já não fosse suficientemente nefasto, o Estado e as autoridades, ao invés de garantir, tratam de dificultar ainda mais esse trabalho não remunerado, tirando toda a estrutura necessária.

No Pinheirinho, nos anos em que existiu enquanto bairro, houve inúmeras tentativas de dificultar a vida dos moradores. O direito à água e à luz teve de ser conquistado na luta e no Judiciário, pois a política da prefeitura era cortar esses bens essenciais. Da mesma forma, ambulâncias eram proibidas de entrar no terreno, e as escolas discriminavam as crianças da ocupação.

A Relatoria da ONU para o Direito à Moradia Adequada reconhece que a violação desse direito tem consequências específicas para as mulheres, ressaltando que “reconhecer a ligação social e cultural das mulheres não pode significar um reforço da ideia de que ‘lugar de mulher é na cozinha’, e de que o espaço público do mercado de trabalho, da política e das demais dimensões da vida é exclusivo dos homens”.

Também são as mulheres que ficam mais expostas nas ações de despejo violento. Segundo a Relatoria, esses processos têm um impacto mais violento nas mulheres, “trazendo estresse psicológico e desestabilização do ambiente familiar”, exatamente o que vimos no Pinheirinho, com as crianças tristes que andavam em volta dos pais aguardando alguma coisa acontecer.

Ainda de acordo com a Relatoria, “durante o despejo, além da destruição da casa e dos bens, podem ocorrer abusos verbais e espancamentos, estupros e até assassinatos”. Infelizmente, no caso do Pinheirinho, isso também se concretizou. A história das duas moças que foram estupradas por policiais é cruel e nojenta. (pág. 5)

Sem permissão para existir
A reintegração de posse do Pinheirinho ao bandido Naji Nahas não tirou apenas uma casa dessas mulheres. Elas tinham um lar, um lugar para viverem e criarem seus filhos. Tinham amigas e amigos. Suas crianças corriam e brincavam livremente pelas ruas.

Um dos exemplos que essa comunidade nos dá é a intolerância com a violência às mulheres. Os homens que agrediam suas mulheres eram simplesmente expulsos, acabando com a violência antes que ela progredisse. Lá elas aprenderam a se organizar coletivamente e a lutar. Talvez seja por isso que o Estado não podia permitir que o Pinheirinho continuasse a existir.