Músicos consagrados têm suas carreiras embaladas pelas “leis de incentivo“, que aprisionam a cultura e a arte às correntes do neoliberalismoFoi com o título acima que O Estado de S. Paulo publicou, no dia 30 de janeiro, um curioso artigo sobre os descaminhos da lei de incentivo cultural, conhecida como Lei Rouanet.

Como já noticiamos em artigos anteriores, as chamadas “leis de incentivo” não passam de mecanismos utilizados para privilegiar – e, pior, financiar com dinheiro do Estado – “produtos culturais” que tenham retorno financeiro garantido e, de quebra, ainda, ajudem o grande Capital a lavar dinheiro ou, no mínimo, conseguir polpudos lucros através da isenção de impostos e da vinculação de suas marcas aos espetáculos.

Em poucas palavras, seguindo a cartilha neoliberal, o Estado – nas suas versões governadas por Collor, FHC ou Lula – simplesmente se “desobrigou” a financiar a arte e a cultura e aprisionou os produtores e artistas às regras do mercado, obrigando-os a buscar patrocínio na iniciativa privada. Resultado evidente desta história é o fato de que quanto mais “vendável e rentável” seja a proposta, maior são as chances do artista sair do escritório de uma multinacional com o pires cheio de grana.

Assim, no cinema, o único caminho certeiro para produzir alguma coisa é ter um “global” no elenco; um formato parecido com o das telenovelas, para garantir uma boa bilheteria e, de preferência, não tocar em nenhum tema que desagrade os seus patrocinadores. Exemplos estão à disposição em qualquer sala de cinema do país. Já as exceções ficam restritas a algumas poucas salas de cinema, num número ainda menor de capitais brasileiras.

O mesmo vale para o teatro. Produções independentes, criativas e críticas ficam a mercê dos esforços dos artistas envolvidos nestas montagens. Já bobagens que fazem melancólicas (e caríssimas…) adaptações de sucessos da Broadway ou servem como veículo de manutenção em cena de globais (alguns deles, bons, é preciso admitir) que estão fora das telinhas, percorrem o país em suntuosas caravanas pagas com o dinheiro público.

E, como revelou o artigo do Estadão, é a mesma ladainha que anda ecoando nos palcos brasileiros.

Cachê neoliberal
Antes de qualquer coisa, é bom que se entenda que o que está em discussão não é a qualidade artística daqueles que recebem o “cachê neoliberal”, mas, sim, a própria lei de incentivo.

Primeiro, para nós, ela sequer deveria existir. Na sociedade que queremos construir, o socialismo, deveria ser o Estado, diretamente, o patrocinador da cultura, de forma democrática, sem censura de qualquer espécie ou qualquer submissão a interesses que sejam alheios ao desenvolvimento artístico e cultural da maioria da população.

Segundo, porque não denunciar o que ocorre com as “leis de incentivo” é, no mínimo, ser conivente com o sistema que, hoje, serve como o principal obstáculo para que a cultura e a arte tenham qualquer desenvolvimento significativo.

Embalados pelo Capital
Não faltam exemplos de como a Lei Rouanet tem sido utilizada para beneficiar quase que exclusivamente artistas já consagrados. Há pouco tempo a cantora Ana Carolina, que foi campeã absoluta de vendas em 2005, requisitou R$ 843 mil para realizar dois shows, um no Rio e outro em São Paulo. Levou R$ 700 mil. Um detalhe nada desimportante: os ingressos custavam, em média, R$ 120.

Ou seja, se fosse verdade o que o governo e os empresários dizem – que a Lei Rouanet foi feita para “estimular”, “democratizar” e “popularizar” a cultura, o mínimo que deveria se esperar é que os espetáculos que recebessem o patrocínio tivessem “preços populares”.

A lista dos cantores que fazem parceria com Ana Carolina é um verdadeiro “hit parade”. Daniela Mercury se beneficiou com R$ 814 mil, dos R$ 818 mil que solicitou para realizar shows em 12 cidades do país. Já Beth Carvalho captou R$ 1,3 milhão para comemorar seus 60 anos de vida (que, certamente, deveriam ser mais do que celebrados), com uma festa no Teatro Castro Alves, onde foram gravados um CD e um DVD comemorativos.

Outra beneficiada foi Maria Bethânia, cujos “serviços prestados” à música e à cultura brasileira e talento são inquestionáveis. E, por isso mesmo, deveria ter sua arte sendo patrocinada (pelo Estado) para que o povo, e não as elites, pudessem aprecia-la. Não é para isso que a Lei Rouanet está sendo usada.

A cantora baiana pretende arrecadar R$ 1 milhão para produzir seu novo espetáculo, “Brasileirinho 2”, em 27 cidades. Já conseguiu R$ 300 mil. Em São Paulo, onde o show já foi realizado, os ingressos custavam entre R$ 70 e R$ 140. Preços nada “estimuladores”, num país onde o salário mínimo é de R$ 380.

Já a empresa Nataha Enterprises, que pertence a Paula Lavigne, ex-mulher de Caetano Veloso e amiga pessoal do ministro da Cultura Gilberto Gil, já se utilizou da lei para rodar um documentário que, segundo o texto do próprio projeto, “vai retratar todo o trajeto e as dificuldades do cantor Caetano Veloso para a divulgação e reconhecimento da música brasileira”.

Tudo bem, não dá pra negar que Caetano já teve dificuldades. Afinal, ele saiu do interior da Bahia, viveu em repúblicas apertadas e até foi preso pela ditadura, em 1968. Mas, daí, até imaginar que o Caetano-mega-star de hoje em dia tenha alguma dificuldade para divulgar a música brasileira, é um tanto absurdo.

Principalmente quando se sabe que a “trilhordária” Paula Lavigne ganhou R$ 100 mil para realizar seu projeto. E, conseqüentemente, alguma empresa deixou de pagar a mesma quantia em impostos, enquanto um monte de gente talentosa, cheia de idéia na cabeça e, raramente, com condições de sequer pegar uma câmera na mão, anda por aí, sem condições de produzir e divulgar sua arte.

Além dos milhares de exemplos que podem ser encontrados nas esquinas, casas nortunas, ruas e folguedos de norte ao sul do país, o artigo do Estadão, assinado por Jotabê Medeiros, cita o caso da tocadora de pífano paraibana Zabé da Loca.

Hoje com 82 anos, Zabé viveu 25 deles numa gruta, onde encantava quem por ela passasse com sua música. Agora, ela quer gravar um CD. Se depender de patrocinadores, a música da paraibana só poderá ecoar na memória de quem a ouviu. Fato que o Ministério da Cultura reconhece, mas “justifica” com a simples constatação de que os artistas pouco conhecidos têm mais dificuldades de conseguir patrocínio do que os famosos.

Prova de que mais do que hora, também para os artistas populares e todos aqueles realmente preocupados com o desenvolvimento da arte e da cultura, pararem de ficar a ver a banda passar e entrarem em sintonia com os movimentos sociais que, hoje, lutam contra o governo Lula e sua lógica neoliberal.

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