Uma das mais emocionantes cenas de Diários de Motocicleta mostra o jovem estudante de medicina Ernesto Guevara atravessando, a nado, o rio Amazonas, deixando para trás sua própria festa de aniversário para juntar-se aos portadores de lepra, que vivem isolados em uma colônia, no Peru.
A travessia é o momento culminante do novo filme de Walter Salles, baseado nos relatos da viagem que Guevara e seu amigo Alberto Granado realizaram, entre a Argentina e a Venezuela, durante nove meses, nos anos de 1951 e 1952.
Iniciada como uma aventura de dois jovens argentinos de classe média, a viagem transforma-se num rito de passagem, como definiu Salles.
Neste sentido, a travessia do rio serve como metáfora para as mudanças que fizeram com que o jovem Ernesto, então com 23 anos, se transformasse no Comandante Che: é no meio do rio que o rapaz asmático supera suas próprias forças para atingir seu objetivo, que o jovem de classe-média deixa para trás o individualismo para juntar-se aos marginalizados e que o estudante assume que as feridas abertas da América Latina precisam muito mais do que a Medicina pode oferecer.
Pelos caminhos da América Latina
Na introdução do livro De moto pela América Latina: diário de viagem, Guevara resumiu de forma emblemática a sua viagem: A pessoa que tomou estas notas morreu no dia em que pisou novamente em solo argentino (…). Esse vagar sem rumo pelos caminhos de nossa Maiúscula América me transformou mais do que me dei conta.
E é exatamente o resgate dessa latinidade que, talvez, seja o ponto mais forte do filme. Algo que contagiou inclusive os atores e o diretor do filme. Salles declarou que o começou como brasileiro e acabou como latino-americano, ciente dos muitos problemas comuns que atravessam o continente.
O mesmo foi dito pelo excelente intérprete de Che, o mexicano Gael Garcia Bernal, que acredita que fortalecer essa latinidade é importante porque o sistema financeiro internacional não deixa a América Latina crescer e a cultura é uma chance de nos unir e afirmar.
Para corações e mentes
O filme que resultou desta experiência (e irá concorrer no principal festival de cinema do mundo, o de Cannes) é digno e simpático. Realizado com uma câmera Super 16 mm, o que lhe dá um tom de documentário e rodado em quatro meses, período durante o qual a equipe percorreu 20 mil quilômetros, passando por Argentina, Peru, Colômbia, Chile e Venezuela , Diários emociona ao acompanhar a saga na motocicleta La Poderosa, a pé ou de barco (depois que a velha moto pifa).
Uma saga que não só demonstra como os corações e mentes de Ernesto e do divertido Alberto foram abalados este, coincidentemente, interpretado por Rodrigo de La Serna, primo em segundo grau do Che , como, certamente, irá tocar muita gente, principalmente através nas passagens marcadas por encontros com gente do povo (quase sempre interpretados por moradores locais): um casal de comunistas expulsos de suas terras; um garoto que trabalha como guia Cuzco e explica a diferença entre as muralhas feitas pelos incas e pelos espanhóis (os inca-pazes); a contraposição entre a sociedade erguida, no passado, em Machu Pichu e a que existe em Lima, e, evidentemente, o encontro com os moradores do leprosário.
Embalado por citações a Garcia Lorca, Pablo Neruda e uma trilha sonora excelente, Diários não é perfeito. Um tanto conservador na forma, o filme passa ao largo dos tumultos sociais que abalaram o período, o que, na verdade, reflete os diários deixados pelo jovem Ernesto, que, apesar de aprofundarem cada mais no tema da exploração (o que se vê no filme), apenas aponta para a necessidade de resistência e organização.
Post author Wilson H. Silva, da redação
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