Alejandro Iturbe, de São Paulo (SP)

Inúmeras correntes da esquerda estadunidense, especialmente a chamada esquerda democrática encabeçada por Bernie Sanders, e outras convocam ao voto em Joe Biden, apresentando a eleição como uma luta em defesa da democracia contra a ameaça ultrarreacionária ou fascista que Trump representaria.

Não concordamos com essa posição nem com seus fundamentos. Acreditamos que ela leva os trabalhadores a cair novamente na armadilha burguesa representada pelo Partido Democrata. Apoiar o candidato neoliberal do Partido Democrata (PD) não impedirá a ascensão da extrema direita.

O “sonho americano” está morto

O “sonho americano” era a ideologia de que os Estados Unidos eram a “terra das mil oportunidades”. Qualquer que fosse a origem social de uma pessoa ou de uma família, com muito trabalho e certa habilidade, poderia ter sucesso e ascender socialmente. Mas esse sonho está morto hoje e, para milhões de estadunidenses, tornou-se um pesadelo. Isso se evidencia na combinação de quatro crises que atingiram os trabalhadores.

A primeira é a crise de saúde com a pandemia. Apesar de ser o país mais rico do mundo, os EUA são o líder mundial de infecções e mortes. Isso foi agravado pela política criminosa de Trump, que expôs a fragilidade do sistema público de saúde. Os trabalhadores e os setores oprimidos foram os mais afetados pela pandemia. Agora, o governo impõe o “novo normal” para retomar os níveis usuais de exploração. Biden não oferece nenhuma saída para essa crise, pois é contra o plano de saúde universal (Medicare para todos).

A segunda crise é econômica e social, que deixou dezenas de milhões de desempregados, um aumento brutal da pobreza, miséria e fome, com muitas famílias fazendo fila nas cozinhas comunitárias para ter um prato de comida. O plano de Biden tem apenas vagas promessas de grandes investimentos públicos para renovar a infraestrutura decadente do país e avançar em direção a uma economia verde. Não garante o direito ao emprego ou a uma renda fixa nem propõe a proibição de demissões e despejos.

A terceira é a crise ecológica, com registro de grandes incêndios, furacões e tornados. Em 2020, só na Califórnia, estima-se que 800 mil hectares de florestas foram destruídos. Embora Biden reivindique a ciência, ele defendeu abertamente o fraturamento hidráulico (fracking) para obtenção de petróleo e gás e a continuação de uma política energética extrativista. A sua única solução para a crise ambiental é uma lenta transição para as energias renováveis a cargo das grandes empresas, e não uma mudança total do modelo de produção como exigem os especialistas.

A quarta é a crise provocada pela violência do Estado e seu caráter repressivo, principalmente a violência policial racista contra a população negra, que faz vítimas permanentes. É um reflexo extremo do racismo institucionalizado na sociedade e no Estado. Os dois partidos coincidem em ignorar as demandas básicas da onda histórica de mobilizações que convulsionou o país. Enquanto as ruas exigem menos recursos públicos para a polícia e mais para educação e serviços sociais, Biden diz que vão aumentar salários e contratar mais policiais. Os dois candidatos aspiram a ser candidatos da “lei e da ordem”.

Uma crise do regime político

Todo esse quadro gerou uma resposta crescente do movimento de massa, como as rebeliões antirracistas Mobilizações que se espalharam pelo país e nas quais houve fortes confrontos com as forças repressivas. O impacto foi tão grande que consideramos que geraram uma crise no regime político e abriram uma nova situação no país. Não são os únicos processos de luta: desde o início da pandemia, há conflitos e greves, como nos setores de educação, serviços e comércio.

Nesse contexto, as eleições representam uma tentativa da burguesia estadunidense de encerrar as lutas e fortalecer o regime. Para realizar essa tarefa, existem duas propostas diferentes.

Trump propõe fazê-lo por meio da “lei e da ordem”, da repressão institucional e da defesa de policiais. Seu governo é ultrarreacionário ataca os trabalhadores de forma dura, mas não é fascista nem tem plano de ser.

Isso implicaria uma mudança qualitativa no regime democrático-burguês dos EUA. Mas nem os setores centrais da burguesia nem a cúpula das Forças Armadas são a favor de uma mudança dessa magnitude. A prova objetiva e indiscutível de que Trump não tem condições ou apoio suficiente para mudar o regime é a ruptura pública encenada pelo Departamento de Defesa em junho, um dia depois de Trump declarar a possibilidade de mobilizar o exército para reprimir os protestos. Os altos comandantes militares obrigaram o secretário de Defesa, Mark Esper, a sair publicamente no dia seguinte para garantir o contrário e não participaram de nenhuma operação de repressão.

Em todo caso, se Trump fosse realmente fascista ele só poderia ser derrotado nas ruas, com a organização e a luta dos trabalhadores e sua legítima defesa. O fascismo nunca foi derrotado por eleições burguesas.

Ameaças ao direito de voto

Isso não significa que se deva subestimar a ação e as atividades de milícias e grupos fascistas brancos que atacam abertamente protestos e militantes de esquerda. É uma realidade preocupante. Esses grupos não devem apenas ser denunciados: devem ser combatidos essencialmente com a autodefesa das lutas, mobilizações e greves.

Também não subestimamos a ameaça desses grupos de ir aos locais de votação para “verificar se há fraude”. Em outras palavras, para intimidar os eleitores. Defendemos as mobilizações para garantir o direito de voto em unidade de ação com os democratas e a esquerda reformista.

Além disso, dado o grande número de eleitores por correspondência nessas eleições, a contagem final dos votos e a definição da composição do colégio eleitoral levarão dias. Nesse período de “terra de ninguém” é bem possível que haja mobilizações em apoio a Trump e também daqueles que querem removê-lo. É preciso participar dessas mobilizações, em unidade de ação, caso Trump e seus partidários tentem ignorar uma vitória eleitoral de Biden.