No dia 10 de setembro, o Estatuto da Igualdade Racial foi aprovado na Câmara dos Deputados, após dez anos de tramitação. A aprovação se deu após um acordo com a bancada ruralista, que excluiu o item que garantia a preservação e a posse das terras quilombolas. Outra bandeira histórica do movimento, as cotas, sequer foi discutida, já que o projeto sobre o tema foi desmembrado do texto original.

Além disso, foram retirados itens que implicariam a adoção de algum tipo de cota que garantisse uma maior presença de negros nos meios de comunicação. A medida que obrigaria os partidos a terem 30% de candidatos negros, como no caso das mulheres, o índice foi reduzido para 10%.

Se isso não bastasse, outro item do Estatuto, a obrigatoriedade do ensino de História da África e do Negro, na rede pública, já está em vigor e continuará contando apenas com a “boa-vontade” dos professores, já que Lula vetou o artigo que garantia o uso de dinheiro público para a formação dos educadores.

Na mesma linha, é mais do que ingenuidade comemorar a aprovação de um item que promete tratamento especial para doenças características da população negra (como a anemia falciforme) num país tomado pela gripe suína e com um sistema de saúde destroçado.

Os acordos e cortes foram feitos total cumplicidade do PT, do PCdoB e demais partidos aliados. E recebeu festivo apoio da maioria do movimento negro, há muito cooptado pelo governo. Cabe lembrar que o texto ainda seguirá para o Senado.

Nós do PSTU, exatamente por acreditarmos que são necessárias políticas de Estado e medidas efetivas para combater o racismo, nunca demos apoio à proposta formulada pelo governo por termos claro que a apresentação deste Estatuto está sendo utilizada como uma “cortina de fumaça”. Trata-se de uma disfarçada “medida progressiva” para tentar encobrir o fato de que Lula, ao governar de acordo com os interesses da patronal, da oligarquia reacionária deste país e do imperialismo, não só é conivente com o racismo, como também o aprofunda, sempre que ataca as condições de vida dos trabalhadores em geral e daqueles historicamente marginalizados em particular.

Essa lógica patronal do governo ficou evidente, inclusive, num dos pontos mais comemorados do Estatuto: a aprovação de incentivos fiscais (ou seja, desconto de impostos) para empresas que tiverem míseros 20% de negros entre seus empregados.

O apoio envergonhado movimento
Um dos representantes mais conhecidos do movimento negro, o Frei David dos Santos, da Educafro, por exemplo, justificou seu apoio dizendo que “É melhor um estatuto não tão perfeito, mas aprovado, do que um perfeito engavetado”.

Nós discordamos. O que precisamos é de igualdade não só de “direito” (muito menos pela metade), mas também de fato, no dia-a-dia, no local de trabalho, na escola e, inclusive, nas ruas, para não continuarmos vendo negros e negras sendo espancados ou assassinados devido ao racismo.

O “estatuto” que necessitamos é um que sirva como arma (inclusive legal) para combater uma realidade que pode ser constatada na análise de qualquer dado referente à situação sócio-econômica do país.

Apenas como exemplo, basta citar o resultado da pesquisa Relação Anual de Informação Social, publicada pelo Ministério do Trabalho, em agosto passado. Segundo o levantamento, enquanto a média salarial das mulheres negras é R$ 790 mensais, a dos homens brancos chega a R$ 1.671,00.

A razão desta enorme diferença é “simples”: mulheres negras tem menos escolaridade, são obrigadas a assumir os piores postos de trabalho e geralmente submetidas à precarização e à informalidade (principalmente nos chamados serviços domésticos, onde se calcula que dos 8 milhões de trabalhadoras, apenas 2 milhões tenham carteira assinada).

Cabe lembrar que, segundo uma outra pesquisa, esta realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2008, demonstrou que, no passo em que estamos, seriam precisos 32 anos para que os salários de brancos e negros fossem igualados. Até lá, e se este dia chegar, espera-se que negros continuem sendo 80% dos mais empobrecidos e os brancos encontrem-se entre os 80% mais ricos, como a mesma pesquisa demonstrou.

Números como estes demonstram a necessidade imediata de políticas efetivas de combate ao racismo. Algo, contudo, que só poderemos conseguir com muita luta. O que só é possível de forma completamente independente dos patrões, dos oligarcas, dos reacionários e racistas. E, também, do governo que, hoje, os representa. Exatamente o caminho oposto que a maioria do movimento negro brasileiro vem tomando nos últimos anos.

A escandalosa oposição da “intelectualidade”
Se o apoio do movimento foi envergonhado e vergonhoso, a oposição expressada por um setor da “intelectualidade” nacional foi escandalosa. Mal e porcamente esconde todo o racismo e elitismo que contaminam nossa sociedade.

A lista dos que se alinham neste “front” é enorme, mas até mesmo pelo trabalho “militante” que têm feito, dois nomes merecem destaque: o sociólogo e geógrafo Demétrio Magnoli e a antropóloga Yvone Maggie, que assinam juntos um artigo publicado em 17 de setembro, no jornal Estado de S. Paulo, que é exemplar das posturas e métodos dos que querem negar (ou preferem conviver com) a existência do racismo no Brasil.

Ambos têm se utilizado do amplo acesso que têm à mídia e ao mercado editorial (coisa que negros e negras também não têm), para combater qualquer iniciativa anti-racista insistindo na tese de que o Estatuto, cotas ou qualquer coisa parecida irão criar uma monstruosidade: um Estado oficialmente dividido em raças. Algo que, segundo os autores, colocará o Brasil ao lado de experiências ultrajantes como o nazismo e o apartheid.

Ainda segundo a lógica distorcida dos autores, o principal problema destas políticas está no fato de que elas se baseiam em diferenças de “raça”, conceito que, segundo eles e seus parceiros, não pode ser aplicado a um ser humano, pois é biologicamente equivocado.

Bem, que não existem diferenças entre os humanos que nos oponham da mesma forma que um “poodle” e um “pitbull” é um fato biologicamente inquestionável e não seria preciso um “doutorado” para saber disso.

Já é público e notório que foi exatamente a elite branca que, no século 19, criou o conceito de “raças humanas” para justificar suas práticas racistas e imperialistas. Contudo não é preciso mais do que um pouco de honestidade intelectual para reconhecer que, mesmo não sendo correto do ponto de vista biológico, o conceito de “raça” existe como um fato da realidade social, política e econômica do mundo em que vivemos. Particularmente no país em que estamos. E negar isto, é tentar negar, na verdade, a própria existência do racismo e de suas conseqüências.

Uma posição, diga-se de passagem, que tem precedentes dentre os próprios intelectuais. É famosa a declaração da escritora Raquel de Queirós, que, no final da década de 1960, diante de uma proposta de cotas reagiu: “é preferível que continue a haver discriminação encoberta e ilegal, mesmo em larga escala, do que vê-la reconhecida oficialmente pelo governo”.

O “estatuto” que precisamos
Um dos aspectos mais irritantes do artigo assinado por Magnoli e Maggie é o fato de que os professores pretendem tirar dos negros e negras qualquer papel de protagonistas da História. Na versão escandalosa e intencionalmente falsa dos dois, não só “o Estatuto Racial nasceu há uma década da pena de José Sarney” , como foi o presidente “Richard Nixon em 1969, que inaugurou os programas de preferências raciais no mercado de trabalho nos EUA”.

Como se não bastasse querer desqualificar a luta racial associando-a a estas figuras asquerosas e execráveis, os professores o fazem “esquecendo-se” que, no caso dos EUA, as leis aprovadas no final da década de 1960 foram escritas com o sangue de Malcolm X, Martin Luther King, dezenas de Panteras Negras e milhares de outros negros, e também brancos, que lutaram pelos direitos civis nos EUA.

E no caso brasileiro, nossa oposição ao Estatuto não se deve ao fato de que ela tenha saído da pena de Sarney. Pelo contrário. Não o apoiamos exatamente porque Sarney, Lula e seus comparsas no Congresso e, hoje, infelizmente, também no movimento negro, meteram a pena e distorceram o verdadeiro “Estatuto” que precisamos: aquele que foi formulado nas lutas anti-racistas no decorrer das últimas décadas.

Se Sarney tem alguma coisa a ver com esta história é o simples fato de que era ele que estava encastelado no poder em 1988. O ano em que, para lembrar o quanto ainda nos faltava para conquistar a liberdade prometida pela então centenária Lei Áurea, negros e negras se mobilizaram em todo o país, dando início a um intenso processo de reorganização de suas entidades.

E, a bem da verdade, a versão que chegou ao Congresso há cerca de 10 anos está diretamente relacionado a outro processo de mobilização, talvez o maior já realizado pelo movimento negro brasileiro, a “Marcha Zumbi dos Palmares”, em novembro de 1995. Na ocasião, cerca de 30 mil negros e negras, com uma orgulhosa coluna do PSTU que recém- completara um ano, tomaram Brasília para apresentar as reivindicações.

Naquele momento já dizíamos que a única forma de transformar nossas bandeiras em realidade seria através da luta, sem tréguas, contra todos aqueles que se beneficiavam do racismo: a patronal, os representantes da burguesia no Congresso e suas velhas oligarquias.

Passados quinze anos, o Estatuto que acaba de ser aprovado é uma confirmação do quanto estávamos certos. A retirada de vários de seus itens, bem como a completa falta de garantias de que qualquer um dos que tenham sido aprovados será implementado, são resultados diretos dos rumos que o movimento negro e a situação política “evoluíram” nas últimas décadas.

Algo que, juntamente com a posição retrógrada e reacionária de gente como Magnoli e Maggie, só fazem reforçar a necessidade de não depositarmos nenhuma confiança no governo e seu Estatuto. Assim como a crença de que a situação racial no Brasil mudará sem que aconteça uma mudança radical na sociedade.

Uma mudança que, para nós do PSTU, e para aqueles que estão construindo o “Movimento Quilombo Raça e Classe” (impulsionado pelo Grupo de Trabalho de Negros e Negras da Conlutas), só poderá acorrer no marco da luta de classes, em estreita aliança com os demais setores oprimidos e explorados e no decorrer da construção de uma sociedade socialista.