Operários de São José dos Campos param atividades Foto: SindmetalSJC
Daniel Sugasti

Daniel Sugasti

Os efeitos da pandemia do novo coronavirus (COVID-19) está mostrando importantes verdades que podem se transformar em valiosas lições para a classe trabalhadora e os demais setores oprimidos. Lições que, a seu tempo e na medida em que as circunstâncias permitam, deverão se converter em respostas políticas materializadas em ações concretas.

“Estamos no mesmo barco”, repetem os governantes e os grandes meios de comunicação capitalistas. Considerando que isso é verdade – porque o vírus pode infectar qualquer um-, a imagem mais apropriada não é a de uma equipe de remo, em que todos somam esforços para gerar um impulso em um único sentido, mas sim o Titanic afundando, com botes salva vidas unicamente para os de “primeira classe”, para os ricos e poderosos. Porque em nenhum país há – nem haverá – leitos de terapia intensiva, nem respiradores para toda população com risco de morrer.

“Estamos verdadeiramente em guerra”, afirmou o presidente Trump no domingo dia 22. Contra a propagação e letalidade desse vírus, sem dúvida. Mas a direção dessa guerra (a burguesia) não enfrenta o inimigo como deveria nem o faz diretamente. Só o faz a partir da comodidade de suas mansões e com a certeza de que, se chegar a ficar doente vão ser atendidos da melhor maneira.

Apesar das recomendações de reforçar os hábitos de higiene, a única medida que aparentemente está surtindo algum efeito, o isolamento social ou quarentena, é impossível para a maior parte da classe trabalhadora se não vem acompanhada de outras medidas que criem condições para garanti-la efetivamente.

O “fica em sua casa” – que muitos governos ainda não decretaram ou o fizeram de maneira a evitar diminuir os lucros de suas burguesias – é uma consigna inaplicável para milhões de trabalhadores e trabalhadoras ao redor do mundo, que se deparam com o terrível dilema de ser obrigado a sair para trabalhar, expondo-se ao contágio do vírus, ou morrer de fome.

Como sempre aconteceu na sociedade de classes, nessa dupla crise, sanitária e econômica – onde uma retroalimenta a outra –, as classes proprietárias farão tudo o que está em seu alcance para que as perdas e os mortos recaiam ou venham da classe trabalhadora. Temos aqui uma primeira lição. Em que pese que seja importante tomar medidas individuas e se organizar para ajudar a interromper a propagação do vírus, não se deve perder de vista que existe uma outra guerra em curso, paralela à luta contra o Covid-19: O conflito contra o sistema capitalista, em todas suas manifestações, que sempre demonstrou que não dá a mínima para a vida da classe trabalhadora. Então, a luta é por um jogo duplo: contra o vírus e contra a burguesia. Ou eles, ou nós.

Muito se insiste sobre as diferenças na porcentagem de letalidade por faixas etárias. Mas se evita alertar sobre as diferenças de classe ou sua relação com a mortalidade, que aparentemente ainda não mostrou sua faceta mais letal. A pandemia afetará de maneira muito diferente dependendo das condições materiais de cada indivíduo, de cada família. Não é o mesmo ter mais de sessenta anos e necessitar de um respirador em uma unidade de terapia intensiva quando se é rico do que quando se é pobre. É verdade que o vírus pode contaminar qualquer ser humano, sem distinguir classes sociais. Mas os Estados capitalistas, com seus governos e regimes, fazem sim essa distinção na hora de implementar medidas que nos afetam diretamente.

Depois da China, o epicentro parece ter se deslocado para o continente europeu, onde existem poderosos países imperialistas com recursos incomparavelmente superiores a dos países semicoloniais. Contudo, estamos presenciando uma curva ascendente de contágios e uma expansão de mortos, especialmente na Itália e no Estado Espanhol. Quando escrevíamos essas linhas, os mortos nesses países passavam de 6.000 e 2.200, respectivamente.

Mas se consideramos a política sistemática de destruição dos serviços públicos de saúde de ambos os Estados, ditada pelo receituário neoliberal, não é difícil entender essa situação espantosa. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), os leitos para cuidados intensivos na Itália se reduziram pela metade nos últimos 25 anos: de 575 leitos por 100.000 habitantes a 275 atualmente.

Outro tanto é o que passou o Estado Espanhol. Sabe-se que o sistema público de saúde espanhol tem sofrido sucessivos cortes no orçamento, precarização trabalhista e é atormentado por uma crescente privatização, processo que deu um salto na crise de 2008-2009. Isso explica, entre outros elementos, que a letalidade do novo coronavírus, cuja média geral é de 3,8%, no Estado Espanhol chega a 6% e na Itália chega em 9,2%. O novo vírus infectou uma economia e um sistema de saúde que já estavam “imunodeprimidos”, pela ação deliberada dos governos capitalistas de plantão.

Se essa é a situação em uma parte da Europa, a situação nos Estados Unidos (EUA), a potência imperialista hegemônica, não é a mais animadora. Com mais de 30.000 infectados, se converteu no terceiro país em número de casos. Até agora morreram 400 pessoas e estão dadas todas as condições para que a crise sanitária se agrave. O principal problema é que nos EUA não existe um sistema público de saúde propriamente dito. Mais de 27 milhões de pessoas no país não têm cobertura de saúde, um número que cresceu durante o mandato de Donald Trump.

Uma consulta com um médico para alguém sem plano de saúde custa centenas de dólares. Outras dezenas de milhões se enquadram na categoria de “cobertura insuficiente”, que contam com um plano básico de saúde que só cobre uma fração do custo de qualquer consulta ou tratamento. De fato, a classe trabalhadora dos EUA, sobretudo imigrantes sem documentos e setores mais pobres, tem mais medo de ir ao médico, por suas consequências econômicas, do que contrair o coronavírus ou outra doença.

Mas se essa é a realidade nos países imperialistas, o que podemos esperar nos países semicoloniais, como os da África e da América Latina? Pois bem, especialistas são categóricos em afirmar que na África as consequências seriam apocalípticas. Na América Latina, a pandemia não chegou aos níveis da China ou da Europa, mas começa a causar estragos em um cenário estrutural muito pior que dos países europeus: miséria, desemprego puro e duro, empregos informais ou precarizados; miséria rural; superlotação e péssimas condições de moradia nas cidades, quando se conta com um teto, isso tudo são parte da realidade no subcontinente. Os próximos meses mostrarão toda a precariedade existente acumulada durante décadas.

A verdade é que o coronavírus encontra um terreno fértil na América Latina e no Caribe. De seus 629 milhões de habitantes, 30% são considerados pobres e 10,7% sobrevivem na extrema pobreza. Em 2014, se registraram 70 milhões de indigentes na região. Todos são dados da Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (CEPAL). Os países com as piores taxas de indigência são Honduras (45,6%), Nicarágua (29,5%) e Guatemala (29,1%). No Haiti, 60% de sua população são pobres e 24% são considerados extrema pobreza (1,24 dólares por dia).

Segundo a OIT, a informalidade dos empregos na América Latina alcançou 53%, afetando 140 milhões de trabalhadores em 2018. Por outro lado, apesar de contar com as maiores reservas de águe doce do mundo, pelo menos um terço da população latino-americana e caribenha carece de um serviço de água potável para beber. Em relação ao serviço de saneamento básico, se estima que 70% dos domicílios não tem acesso a um manejo adequado de dejetos [2]. Os países com o menor acesso a agua potável da América Latina são: Haiti, República Dominicana, Nicarágua, Equador, Peru e Bolívia. [3]

Atualmente, mais de 75% dos habitantes da América Latina e do Caribe residem em zonas urbanas. De fato, essa é a segunda região mais urbanizada do planeta. O problema são as degradantes condições de habitação. Segundo o BID, existe um déficit de habitação na região que se aproxima de 6%, sem contar que 94% das casas não são de boa qualidade. Só no Brasil, estamos falando de uma carência de 7,7 milhões de casas, segundo dados de 2017 [4].

Por outro lado, a pobreza extrema impede que milhões tenham acesso aos produtos de higiene elementares como sabão. No meio dessa crise, isso é criminoso: como prevenir o contágio do Covid-19 e outras doenças não apenas sem possibilidades reais de isolamento social, mas também tendo que morar em casas precárias e lotadas, sem acesso a água potável e sabão, sem saneamento básico? Isso não significa uma condenação à morte para milhões de pessoas?

Com uma recessão global quase certa – em que o Covid-19 atua como um dos explosivos -, os governos capitalistas não estão preocupados com salvar as vidas das pessoas, mas com pressa de salvar o lucro das grandes empresas e bancos. Essa é uma receita bem conhecida: quando se instalou a crise de 2008-2009, o governo dos EUA injetou 700 milhões de dólares de euros somente para salvar o sistema bancário, ao custo de condenar milhões de trabalhadores ao desemprego, ao frio, ao despejo, à morte. Agora, o FMI faz um prognóstico de uma recessão “tão perversa ou pior” que aquela de 2008.

A pergunta, agora, é a mesma: quem pagará a conta dessa nova recessão? Isso está por ver. Será definido no terreno da luta de classes, que poderá adquirir novas formas.

No momento, a OIT estima que, como mínimo, se perderão 25 milhões de empregos. Nos EUA, o ministro da Economia, Steven Mnuchin, informou ao Congresso que teme que o desemprego vai crescer 20%, praticamente mais que o dobro do que recebeu Trump quando assumiu o governo. Segundo a CEPAL, a América Latina sofrerá uma contração de 1,8% do PIB, que poderia gerar um aumento do desemprego em dez pontos percentuais. Apenas no Brasil, antes da circulação do Covid-19, existiam quase 13 milhões de desempregados.

Os governos latino-americanos estão na mesma linha de Trump e da União Europeia: salvar bancos e empresas. Além disso, aproveitam o clima caótico para aprofundar suas agendas ultraliberais e apressar contrarreformas que acabem com os direitos históricos da classe trabalhadora.

No Brasil, por exemplo, o governo de extremadireita de Jair Bolsonaro não apenas autorizou uma flexibilização maior das leis trabalhistas, autorizando a redução da jornada de trabalho e de salários pela metade [5], como chegou a propor a suspensão direta dos contratos de trabalhos, sem pagamentos, durante quatro meses [6]. Seu ministro da economia, o neoliberal Paulo Guedes, anunciou um primeiro pacote econômico equivalente a 2,2% do PIB “para a economia nacional”, ou seja, para resgatar grandes empresas, como o comércio, turismo, aviação comercial, etc.

Fala-se inclusive da possibilidade de uma ajuda de 1,2 trilhões de reais para o mercado financeiro vinda do Banco Central. Para se ter uma ideia, em 2008, o resgate dos bancos brasileiros consumiu 117 bilhões de reais. O problema é que 90% desses recursos serão repagados pelos próprios contribuintes, pois não passam de pequenos adiamentos do pagamento de alguns impostos, certa facilidade para obter créditos, adiantamento de benefícios adquiridos, etc. Apenas 0,2% dessa quantia será utilizado diretamente para socorrer os lares, ainda que sempre sob a forma de um assistencialismo imediatista: o programa Bolsa Família seria ampliado em 0,1% e o outro 0,1% reforçaria a saúde pública. Isso é coerente com a criminal minimização de Bolsonaro dessa crise sanitária, que qualifica como uma “histeria” sem razão, que pode gerar uma crise humanitária catastrófica no Brasil. Por outro lado, o ministro da Economia argentino, Martin Guzmán, anunciou uma série de ajudas que totaliza 2,2% do PIB. Desse valor, 1,6 % do PIB será destinado a créditos públicos, principalmente para empresas e outros setores; somente 0,6 servirá para reforçar a infraestrutura pública e aumentar o assistencialismo social [7].

Sebastian Piñera, que enfrenta a sangue e fogo uma revolução no Chile, anunciou um pacote econômico de 11,7 bilhões de dólares, ou seja, 4,7% do PIB, destinado em boa medida para salvar o empresariado. Vale lembrar que no Chile não existe um sistema de saúde público, pois tudo foi privatizado durante os últimos 40 anos de neoliberalismo [8].

Vivemos momentos de enorme incerteza em todos os terrenos. No dia 23 de março, a pandemia chegou a mais de 300 mil casos, com 100 mil novos nos quatro dias anteriores. É possível que, em algum momento durante os próximos meses, a curva de contágios do Covid-19 comece a achatar. Mas os efeitos da crise econômica e social serão mais profundos e duradouros. Em outras palavras, se não pararmos os governos, essa crise sanitária mundial se traduzirá em uma tragédia humanitária que deixará mais pobres que mortos pelo novo vírus.

Uma última reflexão. A crise desatada pela pandemia do Covid-19 demonstra a completa incapacidade do sistema capitalista para enfrentar os problemas da imensa maioria da população mundial. As imagens dos caminhões militares italianos transportando cadáveres de pessoas que possivelmente teriam podido sobreviver se tivesse mais respiradores e recursos públicos para atendê-los, é, entre muitas outras, uma prova macabra da falência desse modo de produção e organização social.

A incapacidade é tanta que não poucos pregadores da superioridade da “mão invisível” do “livre mercado” subitamente começaram a pedir socorro aos “cofres públicos”. O Estado, para os capitalistas, deve ser “mínimo” para atender as necessidades do proletariado e do povo pobre, e “máximo” quando se trata de minimizar o risco de reduzir seus lucros.

A conclusão é que apenas medidas anticapitalistas poderão fazer frente a essa pandemia e a possível recessão que se aproxima.

É necessária uma luta unificada de toda classe a trabalhadora para que o custo da crise seja pago por seus criadores, os capitalistas. Não pagaremos os pratos quebrados.

É o momento de exigir testes gratuitos e quarentena efetiva para proteger a vida de todas e todos. Isso implica em defender os empregos e as conquistas da nossa classe. Exigir medidas como a proibição das demissões e a redução dos salários; que o Estado garanta os salários atacando interesses dos empresários. Temos que lutar para garantir um salário digno para os trabalhadores informais e para os autônomos, para aqueles que sobrevivem dos altos e baixos todos os dias.

Temos que lutar para garantir produtos de higiene, álcool, máscaras, luvas e todo o necessário para a proteção da família, sobretudo das mais pobres. Garantir o indispensável para a proteção do pessoal de branco (da saúde), que está na linha de frente contra essa pandemia. Temos que suspender a cobrança de serviços públicos básicos (aluguel, eletricidade, água, gás, etc.) e impostos para as famílias trabalhadoras.

Temos que lutar, em resumo, por sistemas de saúde pública, gratuitos, universais e de qualidade. Temos que lutar para concentrar investimentos pesados em investigação científica.

Para alcançar esses objetivos, que definirão a vida ou a morte de milhões, não existe outra saída que não implique em atacar os interesses e o lucro dos grandes capitalistas.

Um programa socialista supõe confiscar e nacionalizar todos os hospitais e empresas farmacêuticas das mãos privadas; confiscar e nacionalizar todos os laboratórios e empresas que produzem testes, respiradores e equipamentos médicos em geral; confiscar e nacionalizar hotéis, espaços de lazer e qualquer infraestrutura que possa servir como locais de atenção aos doentes ou abrigo para os moradores de rua.

Dirão que não é possível, que não tem dinheiro. Os socialistas e a classe trabalhadora responderão que isso é mentira.

Expropriando da burguesia, socializando os meios de produção e reorganizando a economia mundial ao serviço da vida e da satisfação das necessidades da imensa maioria da humanidade, sob o controle democrático da classe trabalhadora, haverá recursos de sobra. Como poucas vezes na história, a encruzilhada entre socialismo ou barbárie está colocada de maneira dramática.

Nos países semicoloniais, como os da América Latina, deixar de pagar as dividas externas, é outra medida absolutamente indispensável para financiar um plano de emergência para salvar a vida da nossa classe, não a dos bancos.

O problema nunca foi os recursos materiais, apenas ao serviço de que classe estão.

Não é o momento de meias tintas. Ou eles, ou nós.

Notas:

[1] Consultar: <https://litci.org/es/menu/especial/coronavirus/para-los-trabajadores-hay-dos-guerras-contra-el-coronavirus-y-contra-la-burguesia/>.

[2] Consultar: <https://blogs.iadb.org/agua/es/coronavirus-dia-mundial-del-agua/>.

[3] Consultar: <https://elpais.com/internacional/2015/05/13/actualidad/1431542093_232345.html>.

[4] Consultar: <https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2019/01/07/deficit-habitacional-e-recorde-no-pais.htm>.

[5] Consultar: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/03/18/em-programa-antidesemprego-governo-propoe-reducao-proporcional-de-salarios-e-jornada.ghtml>.

[6] Consultar: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/03/governo-vai-editar-nova-mp-para-autorizar-corte-de-50-em-salario-e-jornada-de-trabalho.shtml>.

[7] Consultar: <https://www.celag.org/latinoamerica-y-el-covid-19-movilizar-recursos-o-gastar-en-la-gente/>.

[8] Consultar: <https://litci.org/es/menu/mundo/latinoamerica/chile/el-salvataje-a-las-empresas-del-plan-economico-de-pinera-es-una-burla-para-los-trabajadores/>.

Tradução: Marina Cintra