Américo Gomes, do Instituto José Luís e Rosa Sundermann
“A violência é a parteira de toda velha sociedade que traz uma nova em suas entranhas.” Karl Marx, O Capital, Capitulo 24Sem dúvida nenhuma, uma parte importante da Revolução Líbia se completou com a morte de Kadafi nas mãos do povo líbio em armas. A violência de sua morte traz o fim de uma era e o começo de outra. Quando o próprio Kadafi derrubou o regime do rei Idris, este saiu de cena por não cumprir mais algum papel histórico relevante frente ao processo pan-árabe nacionalista que dominava a região.
Agora a Primavera Árabe arrasta mais um ditador e abre a perspectiva do povo líbio desenvolver sua aspiração por um futuro livre de dominação. Esta ação também dará um novo impulso à revolução em toda região e abre a discussão da próxima bola da vez, se o Iêmen ou a Síria.
Crise na CNT
Após uma forte resistência, que incluiu fanfarronices, discursos inflamados e combates brutais, Kadafi foi morto. Agora o inimigo comum sai de cena e as enormes diferenças entre os que lutaram contra uma sangrenta ditadura vêem a tona com toda sua força.
A perspectiva é de uma aguda polarização entre os campos que estiveram unidos. De um lado o Conselho Nacional de Transição (CNT), formado por ex-ministros e altos funcionários do governo Kadafi, que saltaram do navio quando este começou a afundar, apoiado com firmeza pelo imperialismo, particularmente o francês e o inglês.
Do outro lado estão líderes políticos locais e militares que desempenharam um papel decisivo na libertação de várias cidades da Líbia, incluindo a capital. Com eles milhares de lutadores e ativistas que comandaram combates e agora fazem parte de conselhos locais militares e de administração.
Como o conselho Trípoli, fundado após a libertação da capital, e que elegeu Abdulkarim Bel Haj como seu dirigente. Ele, que há alguns anos tinha sido preso e deportado junto com outros dissidentes da Líbia pelo MI6 e a CIA, torturado e depois entregue ao ditador pró-imperialista Kadafi como um prêmio.
Abdul-Jalil Mustafa, chefe do CNT e ex-ministro da Justiça, na comemoração da tomada de Trípoli, anunciou que haviam “fundamentalistas extremistas dentro das fileiras dos rebeldes” e ameaçou se demitir caso eles não entregassem as armas.
Seguiram o mesmo caminho Ibrahim Chalgham, que preside a delegação Líbia na ONU e que serviu como ministro das Relações Exteriores sob Kadafi durante anos, e Othman Ben Sassi.
Em contraposição, Ismail Sallabi, chefe do conselho militar de Bengazi, comandante da Brigada de 17 de fevereiro, uma das acusadas de matar Abdulfattah Younes, chamou a demissão de todo CNT. Chamando-os de “resquícios da era Kadafi” e “bando de liberais.
Ele, como outros combatentes, afirmam que a captura rápida de Trípoli pegou o CNT e a OTAN de surpresa e pôs por terra seus planos para controlarem totalmente o país. Para eles a estratégia da OTAN era congelar o conflito no Ocidente, transformando Brega em uma linha divisória, e dividir o país entre o Oriente controlado por Kadafi e o Ocidente libertado.
Pode-se dizer que não há provas para tais alegações, no entanto, temos que constatar que a OTAN fracassou por meses em avançar para o Oeste. Soma-se a isso os eventuais erros dos imperialistas que bombardearam tropas rebeldes em muitas ocasiões nas regiões de Abjadia e Misrata.
Instaura-se agora um conflito sobre o futuro da Líbia. Uma disputa entre uma estratégia dirigida por uma agenda interna de um lado, e outra definida a partir do imperialismo, de trocar os jogadores mas manter as regras do jogo. Trabalhando para reciclar o regime, como vem tentando fazer na Tunísia e Egito.
Particularmente os franceses, determinados a ter um controle superior sobre a política e economia do país, os italianos, que consideram a Líbia como seu quintal, os britânicos, que estão determinados a salvaguardar os seus contratos, os turcos, ansiosos para reviver a sua influência no antigo hemisfério Otomano, e correm por fora os chineses e os russos.
O fato é que o governo do CNT tem sido incapaz de garantir a estabilidade em um país repleto de homens armados, até agora tinha Kadafi como desculpa. Falta ao governo um exército para controlar o país, os clãs e grupos de interesse que continuam a prosseguir os seus fins.
Do lado do povo falta a construção de instituições da classe trabalhadora, com seus partidos e sindicatos, que defendam os verdadeiros interesses da população mais carente. Tendo a perspectiva de construir um governo que vise defender a manutenção dos Comitês Populares armados. Que exproprie todas as propriedades e a fortuna de Kadafi e dos membros do ex-governo. E puna sem misericórdia seus ex-sócios.
Os bens congelados no exterior devem ser confiscados e colocados sob o controle dos Comitês Populares. Todos os contratos feitos pelo governo anterior com o imperialismo, particularmente os da indústria do petróleo, devem ser suspensos A indústria petrolífera nacionalizada e colocada sob controle dos operários e do povo, para atender às enormes necessidades das massas líbias.
Enfim o povo libio deve escolher entre continuar com o governo pró-imperialista da CNT, que não foi eleito por ninguém, ou avançar na revolução, construindo seu próprio governo e expulsando a OTAN do país, para tornar a Líbia de fato independente.
O próximo passo: Iêmen ou Síria
Há uma grande discussão sobre qual país árabe irá derrubar primeiro o seu ditador. A fila é grande e envolve ditadores de países como Bahrein, Jordânia e Arábia Saudita.
Mas a grande maioria está apostando em Síria e Iêmen.
Na Síria a morte de Kadafi incentivou novos protestos e esperança. O Conselho Nacional Sírio, anunciado em Istambul neste mês, começou a tentar se aproveitar do sucesso que o CNT tem internacionalmente para se firmar como uma alternativa a Bashar Assad e buscando apoio internacional.
Mas um abismo de diferenças política e ideológicas separa os vários segmentos da oposição à ditadura dos Assad. E nem falar que Europa e Estados Unidos estão absolutamente relutantes em dar apoio a uma oposição à ditadura que durante tantos anos foi fiel e garantiu a estabilidade para o imperialismo e a existência do Estado de Israel na região.
Destaque-se ainda que as massas sírias ainda não estão armadas e as rupturas nas forças armadas ainda não ganharam envergaduras. A derrubada violenta de Kadafi ofereceu uma lição sangrenta da resistência destas autocracias.
Além disso, o governo cuidou para que não surgisse nenhuma Praça Tahrir; com a maioria dos jornalistas barrados, não conta com cobertura internacional; não há uma cidade livre como Benghazi. Exemplos que o imperialismo não quer ver mais e nem ouvir falar.
Ainda que manifestantes portem faixas com Gaddafi se foi, sua vez está chegando, Bashar. Mas como afirma Bassma Koudmani, dissidente síria e figura-chave no conselho: A revolução em solo realmente chegou a um ponto crítico, onde ela deu tudo o que podia em termos de resultados por meios pacíficos.
O problema é que dentro da Síria, alguns dissidentes temem uma guerra civil e preferem apoiar uma reforma gradual. Enquanto isso as mortes se multiplicam.
No Iêmen doze pessoas morreram durante violentos confrontos, depois da morte de Kadafi, em Sanaa, entre as forças do presidente Ali Abdullah Saleh e seus oponentes. Mais cinco foram mortos em Al-Hassab (norte da capital) nos combates entre as forças de Saleh e do líder tribal Sadiq al-Ahmar.
Militares continuam a se unir aos protestos, alguns morreram em conflitos.
Este conflito fez com que o Conselho de Segurança da ONU aprovasse, por unanimidade, um pedindo ao presidente Saleh, para que, cumpra o plano do GCC, deixe o poder e acabe com a repressão as manifestações.
Saleh havia dito que concordava com o plano proposto pelos seis estados do Golfo, mas se negou a assiná-lo ou a implementar alguma de suas propostas.
Veremos mais enfrentamentos violentos no Iêmen.
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[1] Américo Gomes, advogado com especialização em Política e Relações Internacionais, com informações de Soumaya Ghannoushi, da Al Jazera e The Guardian, Dueling legitimacies in Libya.