A morte de Dorival Caymmi, aos 94 anos, no último 16 de agosto, significou, segundo muitos críticos, o fim de uma geração de compositores que marcou a história da música popular brasileira.

Nascido em Salvador em 30 de abril de 1914, Caymmi era filho de um funcionário público e músico amador descendente de italianos e de uma dona-de-casa negra. Aos 13 anos, começou a trabalhar num jornal. Aos 16, compôs sua primeira música, “No sertão”. Quatro anos depois, estreou na Rádio Clube da Bahia, onde, em 1935, ganhou seu próprio programa: Caymmi e suas canções praieiras.

Dois anos depois, aos 24 anos, Caymmi embarcou num “Ita”, navio que viajava do Nordeste para o Sul do país. Assim chegou ao Rio de Janeiro, onde pretendia estudar Direito e trabalhar como jornalista. Sem nunca abandonar a música – atividade que ele considerava muito mais um prazer do que um trabalho – Caymmi também se apresentava na Rádio Tupi, onde começou a fazer sucesso.

Foi nessa época, no final dos anos 1930, que a carreira do músico baiano tomou um impulso decisivo. Uma de suas canções, “O que é que a baiana tem”, chamou a atenção por seu estilo inovador e ritmo empolgante e tornou-se tema do filme Banana da Terra, protagonizado pela “Pequena Notável” Carmem Miranda que, diga-se de passagem, criou seu espalhafatoso figurino de roupas rendadas e cobertas por balangandãs inspirada pela música de Caymmi.

Embarcando com Carmem em sua carreira internacional, a música de Caymmi ganhou o mundo no mesmo momento em que o músico aprofundava-se no tema que se tornara sua principal característica: as belezas e tradições culturais da Bahia e, especialmente, o mar, como “Rainha do mar”, “Promessa de pescador” e a belíssima “O mar”. Caymmi trouxe misteriosas histórias de pescador para a música brasileira, mas também foi ele que trouxe uma das mais belas e originais influências africanas na cultura brasileira.

Canções de um Brasil idealizado
Na década de 1940, o músico baiano entrou em contato com a produção de Noel Rosa e mergulhou no universo do samba-canção, um estilo cujas melodias e letras adocicadas serviam como veículo para canções cheias de “dor-de-cotovelo” (como “Marina”, de 1947) e de um otimismo meio ingênuo, característico de um Brasil que vivia sob os ventos democratizantes do pós-guerra e o início da ilusão desenvolvimentista.

Refletindo esta situação, a obra de Caymmi nesta época é marcada por várias canções inspiradas no “populesco”, nacionalista e, muitas vezes, idealizado (pra não dizer distorcido) universo de Jorge Amado, em músicas, inegavelmente belas, como “É doce morrer no mar”, “Modinha para Gabriela” e “Retirantes”.

Também marca deste período e exemplo da profunda ligação de Caymmi com as enormes contradições do povo brasileiro, foi seu envolvimento com o Partido Comunista que, na época, tinha entre seus filiados intelectuais e artistas o próprio Jorge Amado, Graciliano Ramos, Cândido Portinari, Procópio Ferreira, Nélson Pereira dos Santos e Oscar Niemeyer. Fruto curioso desta relação com o PC foi o “jingle” composto, clandestinamente, por Caymmi para a campanha eleitoral de Luís Carlos Prestes ao Senado.

Sempre sintonizado com as mudanças no cenário artístico e cultural, Caymmi também embarcou na Bossa Nova, tendo duas de suas mais belas canções – “Rosa Morena” e “Saudade da Bahia” – gravadas por João Gilberto. Aliás, a música de Caymmi já era uma espécie de revolução antes da bossa nova, pois já estava distante daquela abordagem de “meu mundo caiu”, característica da música brasileira nas décadas de 40 e 50.

A modernidade de suas canções se comprova nas constantes gravações e reinvenções pelos maiores e mais diversos compositores brasileiros, como Elis Regina, os “novos baianos” Caetano, Gal e Gilberto Gil, além, é claro, de João Gilberto e Tom Jobim. “Rosa Morena”, “Só Louco, “Nem Eu”, “Dora”, “Saudades da Bahia” são algumas das clássicas canções inúmeras vezes revisitadas.

O elogio à preguiça
A lendária calma de Caymmi e os enormes intervalos entre suas produções deram muito pano pra manga no que se refere à sua mítica preguiça, muitas vezes utilizada como forma nada disfarçada de preconceito e racismo. Afinal, num país que, permanentemente, se quer pensar moderno, o ritmo do cantor foi muitas vezes associado à herança maldita de um povo que, devido a seu passado escravista, tem horror ao trabalho.

Se é verdade que o cantor nunca fez muito esforço para negar a história e até mesmo alimentou a lenda, o fato é que há muito de bobagem nesta história toda. Evidentemente moldada pela ótica de uma classe dominante (esta sim, preguiçosa e improdutiva), a preconceituosa acusação só merece ser avaliada pela ótica subversiva o escritor egípcio Albert Cossery que, se contrapondo à lógica do trabalho mecânico e incessante imposto pelo capitalismo, defendeu, cheio de sarcasmo, o direito de nos entregarmos ao prazer de não fazer nada para realizar a mais humana das atividades, pensar: “fazer nada é uma atividade interior; não é preguiça, é reflexão”.

E, nesse sentido, Caymmi fez, de fato, um “nada” maravilhoso, cheio de poesia e beleza. Um registro poético e doce de um povo que sonha com uma vida melhor. Uma vida que seja imensa, misteriosa e sedutora como o mar, que seja doce como a morte encontrada em meio à vastidão. Tal atitude revelava também certo (e saudável) descompromisso com as exigências do mercado e mais compromisso com o público.

A obra de Caymmi não pode ser considerada extensa: aproximadamente 120 canções distribuídas em 20 discos, em que se destacam as melodias praieiras, as de inspiração no folclore da Bahia e os samba-canções urbanos. Para isso, Caetano Veloso, outro baiano, tem uma explicação. “É verdade que Caymmi compôs pouco mais de 100 músicas, mas todas são obras-primas. Quem é o compositor que pode se dar a esse luxo? Eu queira ser um preguiçoso assim.”

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