Tácito Chimato
Faleceu no dia 6 de outubro de 2020 o guitarrista Eddie Van Halen. O mesmo fundou, em conjunto com seu irmão Alex, a banda Van Halen, um ícone dos anos 1980. O legado de Eddie, porém, ultrapassa qualquer limite de tempo. Se Hendrix, com o uso de pedais e microfonias, derrubou os limites da guitarra elétrica nos anos 60 e Eric Clapton, que na mesma época definiu o “som” de guitarra do rock, eternizando a guitarra Les Paul com os amplificadores Marshall, Eddie Van Halen, décadas depois, subiria o nível ainda mais. Dono de um estilo totalmente original, o mesmo foi responsável por trazer técnicas que até então eram usadas meramente como truques por outros guitarristas para o lugar de destaque do instrumento.
Sua marca registrada (ainda que não tenha sido o inventor) foi o tapping, na qual as duas mãos do guitarrista passeiam pelo braço da guitarra: enquanto se pressiona com as pontas dos dedos, a outra mão passeia pelo braço, produzindo um número muito maior de notas do que as palhetadas. O uso dessa técnica imprimiu um novo padrão de virtuosismo no instrumento, já que dessa forma a velocidade dos solos cresceu a um outro nível. Além disso, o próprio sempre fez questão de dominar a guitarra por completo, criando um novo modelo personalizado, a Frankenstrat, onde o mesmo se usou de diversas peças de velhas guitarras para criar um tipo específico para seus malabarismos. Tudo isso tornou sua obra objeto de estudo obrigatório a todos que almejam um novo padrão de técnica, qualidade originalidade, sendo essa última a grande obsessão do guitarrista.
Da infância à fama: a Erupção do Van Halen
Edward Lodewijk Van Halen nasceu em Amsterdã em 1955. Vindo de um berço musical, seu pai era clarinetista, saxofonista e pianista, e sempre fez questão de educar na música ele e seu irmão, Alexander Arthur Van Halen. Ainda criança, imigrou em 1962 com a família para Los Angeles, sendo famosas as histórias de que parte da verba da viagem foi garantida pelos shows do pai no navio. Chegando na cidade, é matriculado com seu irmão para aulas de piano clássico, vindo daí sua grande bagagem em música erudita. Mesmo assim, o próprio sempre foi incapaz de aprender partituras, aprendendo desde cedo a desenvolver os ouvidos para escapar das punições do rígido professor.
Tudo mudou quando ambos descobrem as bandas inglesas da segunda metade da década de 60, em especial o som do Cream, um “supergrupo” com os melhores instrumentistas britânicos da época – incluindo Clapton na guitarra. Como já possuíam uma formação, não foi difícil para ambos tirar as primeiras notas de seus respectivos instrumentos. Eddie, inicialmente, escolhe a bateria e seu irmão Alex a guitarra. Porém, após ver seu irmão solando bateria, Eddie decide trocar de instrumento com ele, se tornando obcecado em reproduzir os solos de Eric Clapton nota por nota, tentando o feito por horas a fio durante o dia. Desnecessário dizer que conseguiu, sendo motivo de orgulho para o próprio até o fim da vida.
Dez anos depois, após tocarem em diversas bandas da região, os irmãos encontram Dave Lee Roth, e decidem convidá-lo para um novo projeto. Enquanto os irmãos eram verdadeiros obcecados em longos estudos, Dave era um verdadeiro fanfarrão: errava notas, abria espacates, se pendurava de ponta cabeça em qualquer lugar do palco que lhe aguentasse, se entregando por completo a uma performance teatral completamente diferente de outros vocalistas da época, que se mantinham sob o palco focados em exalar testosterona. Isso transforma o show do Van Halen em uma grande festa, com um público bem mais variado, oposto aos shows de rock pesado onde a cor preta e os punhos cerrados para cima reinavam.
Com a entrada de Michael Anthony no baixo, fica claro que é questão de tempo até a banda se tornar um fenômeno. Gene Simmons, baixista do Kiss, vê um show em 1976 e se impressiona com o tamanho do público para uma banda que, mesmo sem gravar um disco, já atraía mais público na Califórnia que diversas bandas consolidadas. O próprio decide gravar uma demo em 1977 e a entrega na mão de um empresário da Warner Bros., que no ano seguinte lança o primeiro autointitulado álbum em 1978.
Eruption, segunda música do disco, é uma faixa acidental, gravada por acaso quando Eddie brincava com a guitarra sem saber que o estúdio estava rodando. Nela, em seus menos de dois minutos de duração, fica claro que um novo estilo de guitarra estava acontecendo. Hoje, com o acesso a vídeo fácil pelo Youtube e redes sociais, é fácil descobrir como guitarrista reproduz cada nota. Porém, em 1978, a faixa teve o mesmo impacto de um disco voador descendo na Terra. Nunca antes alguém havia executado aquele estilo de rock com tamanho virtuosismo, e ao mesmo tempo, com um som tão acessível. O disco chega a 10 milhões de cópias vendidas, e torna a banda um sucesso instantâneo nas paradas americanas.
Um verdadeiro trator
Um fato curioso colaboraria para o sucesso do Van Halen: no mesmo ano, a banda é escalada para abrir uma turnê do Black Sabbath, que já era um dos maiores grupos do mundo. Porém, o Sabbath entrava na sua fase decadente, com o descontrole do alcoolismo de Ozzy. Já o Van Halen estava em plena ascensão, faminto pelo sucesso. Enquanto toda a crítica dizia que era a pior decisão possível para uma banda iniciante fazer uma turnê abrindo para um nome consolidado, já que seus shows mal seriam lembrados, a realidade provou o contrário. O Van Halen atropelou o Black Sabbath, esvaziando a plateia no show da banda principal em cada lugar que passavam. Prezando pela carreira da banda, Tommy Iommi, guitarrista e líder do Sabbath, dispensa o Van Halen, tornando o nome temido por toda a geração anterior de rockstars.
Outro show histórico foi a primeira incursão da banda em terras brasileiras: sem entender que o Maracanãzinho é um espaço muito menor que o Maracanã, a equipe técnica montou toda a estrutura do local para um show de arena. Além da estrutura interna não aguentar toda a iluminação, obrigando a banda a realizar o show para uma plateia na escuridão, são famosos os depoimentos de pessoas que terminaram o show com os tímpanos estourados ou desmaiadas por problemas de pressão. A banda, sem conseguir ver o público, não entendia o que estava acontecendo e focou em sua performance. Somente depois do concerto os quatro entenderam que deixaram boa parte do Rio de Janeiro surdo.
Tudo isso servia para alimentar o nome da banda como o próximo ícone do rock pesado, e o Van Halen tornou-se objeto de inspiração para toda a próxima geração. Basta ver as performances de Dave Lee Roth para entender de onde todos os artistas do Hair Metal tiraram seu acervo.
Mas era impossível roubar a cena de Eddie: com um sorriso gigante, cigarro no canto da boca e saltos acrobáticos enquanto solava, ele foi elevado ao status de deus da guitarra, podendo ser considerado tão importante quanto seus ídolos Clapton e Hendrix. Sua guitarra listrada, a Frankenstrat, passa a ser fabricada sob sua consultoria, e o próprio começa a ser convidado para gravações de artistas fora do rock, como o caso de Michael Jackson, que o chama para o solo da faixa Beat It. Eddie conta que, ao ouvir a voz de Michael no telefone, achou que se tratava de um trote, e só acreditou quando Quincy Jones, empresário de Michael, ligou pessoalmente o convidando. Ao chegar no estúdio, ouviu a faixa uma única vez e gravou o solo em um take só, sem cobrar por considerar mais uma “ajuda” a Michael que um trabalho sério. Anos depois, o mesmo daria risada da própria inocência, já que se tivesse pedido direitos pelo solo teria enriquecido muito mais.
Essa participação tornou-se objeto de fúria de Dave Lee Roth, que sempre lutou para ser o principal elemento onde quer que passasse. Dave decide sair da banda e partir para uma carreira solo, levando o Halen a convidar Sammy Hagar para os vocais. Com ele, a banda atravessaria a segunda metade dos anos 1980 no topo, mas entraria em decadência na década seguinte, com o estouro de bandas mais próximas a estética punk e hardcore do que o metal espalhafatoso da Califórnia.
O legado e as contradições de Eddie Van Halen
Pese todo o talento e sucesso da banda, é inegável que a mesma se construiu sob a clássica édipe machista do sexo-drogas-rock n´roll. São notórias as incursões de Dave Lee Roth sob as fãs da banda, onde o próprio pagava para os funcionários levarem as mulheres mais bonitas da plateia para o camarim. Além disso, com o sucesso, as exigências eram cada vez mais irrealizáveis. Partiu do Van Halen a ideia de pedir em todos os shows uma bacia cheia de MM´s, mas sem a cor marrom. Sempre que encontravam um doce na cor errada, a banda destruía o camarim, hotel e até se recusava a realizar show. Eddie sempre disse que era uma questão de segurança para saber se os contratantes realmente estavam preocupados com a banda. Mas não há justificativa para a humilhação de quem tinha que passar horas seguinte limpando uma bagunça consequente de um surto ególatra.
Eddie foi um homem de seu tempo, com todas as contradições. Em uma época de “cancelamentos”, certamente ele e o próprio Halen já há muito tempo seriam condenados por essa e inúmeras atitudes machistas e burguesas. Não há de ser passado o pano para nada pessoal acerca de seu indivíduo e as letras machistas do Van Halen. Mas também não há como passar ileso a um artista desse porte: Eddie Van Halen foi talvez o último instrumentista que tivemos próximos de um Mozart ou Beethoven em quesito de inovação e virtuosismo. Há um jeito de tocar guitarra antes e depois de seu trabalho, e sem sua obra, dificilmente o rock, o jazz e inúmeros gêneros onde a guitarra ocupa o protagonismo se desdobrariam para estilos ainda mais complexos nos anos a seguir. Basta ver as inúmeras homenagens de artistas de todos os ramos da indústria para entender que quem se foi não era somente um ícone do rock, mas sim um dos músicos mais geniais a caminhar sobre a Terra.
Seu legado certamente será eterno e objeto de visitação para sempre de todos aqueles que buscarem na música um refúgio para as pressões do capitalismo, e certamente eterno objeto de estudo entre acadêmicos do assunto, ou de jovens músicos que buscam na imagem de seu sorriso, seus saltos e suas listras a inspiração para o aprendizado. Fica nossa humilde homenagem a esse gigante. Vá em paz, maestro!