Na véspera do dia 25 de novembro, Dia Internacional de Combate à Violência Contra a Mulher, mais um crime chocou a cidade de Salvador: o corpo de uma mulher, entre 17 ou 19 anos, foi encontrado mutilado e parcialmente carbonizado em uma avenida movimentada de um dos bairros de classe média alta da cidade. Na manhã do dia 25, a imprensa divulga mais um assassinato: uma mulher de 44 anos foi assassinada com mais de dez facadas por seu ex-companheiro na porta de sua casa, na periferia de Salvador.
A violência sofrida pelas mulheres tem se dado não só dentro de casa, mas em todos os espaços por elas ocupados, de inúmeras formas. Se olharmos as estatísticas no Brasil, perceberemos a situação de barbárie em que vivem as mulheres. A exploração capitalista faz com que elas sejam as mais pobres, as que trabalham mais horas, as que mais adoecem e as que recebem os menores salários.
Estatísticas revelam o que as mulheres sentem no corpo e na alma…
A violência doméstica é um crime silencioso, sustentada pelo medo, submissão e desamparo das vítimas, que deixa seqüelas e desmoraliza as mulheres. Fragilizada e exposta pela violência cíclica (uma vez ocorrida e desamparada, volta a acontecer com mais intensidade e cada vez em curtos espaços de tempo), a mulher nem sempre está livre para dispor da proteção penal do Estado, pois, culturalmente, deve sofrer calada.
Várias pesquisas divulgadas nos últimos dias revelam o que acontece com muitas mulheres nos domicílios brasileiros. Uma pesquisa realizada em 2001 pela Fundação Perseu Abramo revela que uma em cada quatro mulheres já foi vítima de ataques (assédio sexual, estupro, espancamento etc); sete em cada dez mulheres mortas foram assassinadas pelos próprios maridos, que também são responsáveis por 56% dos casos de espancamento.
No primeiro semestre de 2006, o Ibope, com o Instituto Patrícia Galvão, realizou uma outra pesquisa sobre violência doméstica. Os dados revelaram que 51% dos entrevistados declararam conhecer ao menos uma mulher que é ou foi agredida por seu companheiro; 82% dos homens (mais que oito em cada grupo de 10) pensam que “não existe nenhuma situação que justifique a agressão do homem a sua mulher”, mas 38% (quase quatro em 10) pensam que “mulher que trai o homem até que merece apanhar”. Esses números colocam o Brasil como campeão de agressões contra as mulheres.
Somente este ano mais de oito mil ocorrências foram registradas só na Bahia. No Ceará, mais de 100 mulheres foram brutalmente assassinadas de janeiro a novembro deste ano. Em Pernambuco esse dado é mais alarmante: foram quase 280 assassinatos, de janeiro até novembro de 2006.
De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) 60% das mulheres agredidas no Brasil em 2005 nunca deixaram o lar, nem por uma noite, em função das agressões sofridas; menos de 10% procuraram serviços especializados de saúde ou segurança. Em média a mulher demora 10 anos para pedir ajuda pela primeira vez.
Em uma outra pesquisa realizada pelo Senado Federal em 27 capitais brasileiras com mulheres com mais de 16 anos constatou que 53% das entrevistadas que já sofreram algum tipo de violência doméstica se dirigiram à delegacia. Deste total, apenas 22% procuraram especificamente a Delegacia Especializada de Atendimento a Mulher. Das mulheres que foram até a delegacia, 70% não tinham para onde voltar e, então, retornaram à própria casa e tiveram que enfrentar novamente o agressor após denunciá-lo à polícia.
Mulheres negras: as maiores vítimas
A violência doméstica não tem apenas gênero: tem cor, raça, território. A maioria das vítimas são mulheres negras, pobres e moradoras das periferias das grandes cidades, é o que aponta um estudo feito pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) realizada em São Paulo.
A mulher negra conforma o contingente mais explorado e oprimido dentro do conjunto da população trabalhadora: vem abaixo do homem branco, do homem negro e da mulher branca recebendo uma média salarial de 1,7 salários mínimos por mês. Ocupam os piores postos de trabalho (a maioria do setor de serviços) e os mais precarizados. Entre os desempregados, a mulher negra tem uma taxa de desemprego quase 50% maior que entre os não-negros; e a maior parcela de mulheres chefes de família está concentrada na Região Metropolitana de Salvador e, destas mulheres, mais da metade são negras.
A combinação do racismo e machismo faz com que as jovens negras liderem as estatísticas de vítimas por causas externas (homicídios, acidentes, suicídios) por estarem mais sujeitas a exposição em áreas consideradas de risco, ou seja, bairros pobres da periferia, bares e outros pontos de vulnerabilidade e violência (a maioria das mulheres que vivem em favelas no Brasil são negras). O levantamento revela ainda que ocorrem mais óbitos entre as jovens negras (10 a 24 anos) do que entre as jovens brancas no estado de São Paulo. A diferença que chamou a atenção dos pesquisadores, no entanto, está na causa dessas mortes.
Levando em conta as causas externas, mais da metade das jovens brancas (71%) morrem em função de acidentes de trânsito. Já mais da metade das jovens negras (58%) morrem assassinadas.
As jovens negras (na faixa de 15 a 24 anos) ainda lideram outras estatísticas: são ainda em maior número no caso de mortes decorrentes de problemas no parto ou complicações da gravidez, devido ao acesso desigual à assistência médica. No caso das mulheres com idade entre 25 e 39 anos, há 32% mais casos de mortes entre as negras do que entre as brancas. As doenças do fígado afetam 89% mais negras do que brancas e estas, por sua vez, têm taxa superior em 10% nas mortalidades por câncer de mama. As mortes por complicações na gravidez e no parto são 32% maiores entre as negras em comparação com a população de mulheres brancas entre 25 e 39 anos.
Apesar de todos os discursos sobre o fim do preconceito racial e da emancipação feminina, a sociedade ainda submete a mulher negra a um cotidiano cruel de machismo e racismo, colocando-a diante de uma situação dramática e apontando imensos desafios. Além de lutar pelas reivindicações gerais das mulheres contra a opressão, a mulher negra é forçada a exigir uma política específica de combate ao desemprego, à violência e à baixa escolaridade que atingem de forma particularmente aguda a população feminina negra.
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