Manifestação em defesa do povo palestino em Santiago, no Chile Foto MIT/LIT
Eduardo Almeida

Existe uma crise na ordem mundial imperialista, na qual agora se insere a guerra na Palestina. A crise da ordem incide sobre a guerra e, ao mesmo tempo, é fortemente alimentada por ela. Trata-se de um novo centro da luta de classes mundial.

O quadro geral da crise

A onda descendente da economia mundial, presente desde a recessão de 2007-09, se expressa nesse momento em um crescimento anêmico da economia internacional, com um processo recessivo em partes da Europa, redução do comércio mundial e crescentes problemas de dívida nos países semicoloniais. Existem desigualdades pronunciadas de país a país, no marco de uma decadência global.

O conflito entre o imperialismo decadente dos EUA e o imperialismo emergente chinês reduz o crescimento mundial e impõe padrões ainda mais duros de competição para as burguesias de cada país, obrigadas a competir com os padrões chineses.

Existem cada vez mais crises políticas, com pesadas divisões nas burguesias, como a atual no Congresso dos EUA, assim como em muitos países do mundo.

O crescimento da ultradireita a nível internacional é outra expressão dessa decadência.

Existem duríssimos reflexos nas condições de vida das massas, que levam a explosões em várias regiões do mundo, por vezes inesperadas ou mesmo inéditas. Tampouco isso é homogêneo, com muitos países em que impera um refluxo do movimento.

A crise da ordem mundial se traduz em uma polarização política e social, com acirramento desigual da luta de classes. Trata-se de um processo extremamente heterogêneo, com ritmos e intensidades distintas. Mas existe uma tendência crescente de enfrentamentos entre revolução e contrarrevolução.

A crise – e por vezes inexistência – de direções revolucionárias limita o desenvolvimento desses processos e muitas vezes os leva a novas derrotas.

As mobilizações na França contra a reforma da Previdência foram as maiores em décadas, e terminaram travadas pelas direções reformistas. As greves na Inglaterra e agora nas automobilísticas nos EUA atingiram partes dos países imperialistas com um ascenso diretamente operário. O ascenso contra o imperialismo francês no Sahel africano, com golpes contra os governos títeres, trazem também elementos inéditos de mobilizações de massas antiimperialistas, que não ocorriam há muitos anos.

A guerra da Ucrânia expressa essa crise na ordem mundial, e por outro lado a agrava. O imperialismo russo tentou recompor sua área de influência, ocupando a Ucrânia. Mas o resultado é que entrou em um atoladeiro de grandes proporções.

Agora é o imperialismo norte-americano que assume o papel central na defesa de Israel, com todo o peso de desgaste que isso pode produzir.

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Uma região conflagrada pela revolução e contrarrevolução

Trata-se de uma região historicamente polarizada entre revolução e contrarrevolução em processos convulsivos.

A dominação das potências imperialistas, em particular a norte-americana, se apoia em burguesias locais associadas que somente podem intermediar a renda petroleira através de ditaduras sanguinárias.

Em primeiro lugar, ali estão ali as maiores reservas de petróleo do mundo, estratégicas para o imperialismo.

Em segundo lugar, pela presença do Estado israelense. Por um lado, ele assegura a dominação militar do imperialismo. Mas por outro, é um fator de radicalização política permanente, de conflitos e guerras. Israel não pode conviver democraticamente com uma maré humana árabe contrária à usurpação dos territórios palestinos.

Em terceiro lugar, os contrastes sociais são brutais. A riqueza do petróleo e a pobreza das massas, tornam a região literalmente um barril de pólvora. Depois do período marcado pelo nacionalismo burguês, como o nasserismo egípcio e o partido Baath na década de 50 do século XX, veio a recolonização do imperialismo, com a capitulação e associação das burguesias locais.

Essas burguesias corruptas e repressivas têm um padrão de vida extremamente luxuoso, perante a miséria das massas.

O quarto elemento é que a região é quase toda marcada por ditaduras odiadas, com dezenas de anos de existência.

O grande ascenso da “primavera árabe”, um processo revolucionário massivo entre 2010 e 2013 contra essas ditaduras, foi em geral derrotado. Como parte dessas lutas, a guerra civil na Síria começada em 2011, foi esmagada pela ditadura de Assad com apoio direto da aviação de Putin. Agora, começa a haver sinais de reativação das lutas.

No Egito, o general Sissi deu um golpe em 2013 contra o governo Morsi, da Irmandade Muçulmana, primeiro eleito da história egípcia. Agora, a ditadura começa a dar sinais de crise importante, com a retomada de algumas mobilizações.

Os brutais antagonismos de classe e de opressão nacional não são resolvidos no marco de democracias burguesas.

A manutenção das ditaduras odiadas e a existência de Israel renova a cada dia a radicalização política do processo.

Por outro lado, a revolução tem limites severos para se aprofundar. Em geral, existe um pequeno peso da classe operária, as direções revolucionárias são praticamente ausentes. Essa combinação impede que o movimento de massas possa avançar e abrir um momento superior das revoluções. Isso está presente na história heroica do povo palestino, como de toda a região.

Em Israel, o governo de ultradireita de Netanyahu enfrentava uma crise política importante, ao tentar impor uma reforma no judiciário que anulava a Suprema Corte do país. Junto com isso apostava em ataques ainda mais duros contra os palestinos incentivando a ação dos colonos judeus sobre a Cisjordânia.

A ação palestina de 7 de outubro foi um golpe político importante sobre a arrogância do estado de Israel e, em particular sobre Netanyahu que apregoava o controle absoluto da situação. Depois disso, teve de apelar a um governo de unidade com a oposição para recompor-se politicamente a passar à contraofensiva.

As disputas interimperialistas na região

O imperialismo norte-americano é hegemônico a nível mundial, assim como no Oriente Médio. No entanto, mesmo continuando a se exercer, existe uma decadência explícita da hegemonia dos EUA. As derrotas e a retirada de suas tropas do Iraque (2011) e Afeganistão (2021) são expressões disso.

No entanto, seguem sendo hegemônicos e os principais sustentáculos do Estado israelense que já recebeu 3,8 bilhões de dólares de ajuda militar em 2023, agora com reforço de mais 2 bilhões oferecidos por Biden. Os EUA também têm laços diretos e uma parceria com as ditaduras da Arábia Saudita e Emirados Árabes. Antes do ataque palestino de 7 de outubro, os EUA estavam patrocinando o reconhecimento da Arábia Saudita de Israel, semelhante ao que foi feito pelos Emirados Árabes Unidos e o Bahrein há três anos atrás.

O imperialismo russo tem interesses econômicos e políticos na região, essencialmente apoiado em um bloco com Síria, Irã e Hezbollah (no Líbano). A China tem importante e crescentes interesses econômicos em toda a região. É a maior importadora de petróleo do Irã (87% das exportações de petróleo desse país no mês passado) e da Arábia Saudita. Mas também tem negócios com Israel. Estava buscando assumir um papel de garantia da estabilidade burguesa da região e, inclusive, patrocinar uma reaproximação entre a Arábia e o Irã, em um movimento contrário da diplomacia dos EUA.

Apesar das disputas, a aliança entre esses blocos contra os processos revolucionários se mostrou com força na Síria, sendo partes fundamentais da derrota da guerra civil nesse país.

Em relação à Palestina, existem acordos entre os dois blocos contra a causa palestina. Mas também diferenças políticas importantes. Enquanto o imperialismo norte-americano e europeu apoia aberta e militarmente Israel, os imperialismos russo e chinês apostam na estratégia reacionária dos “dois estados”, dos acordos de Oslo, que já demonstraram seu fracasso. São partidários de uma “paz negociada”.  Não vão se colocar na defesa da causa palestina, como muitos reformistas pensariam. Mas não vão estar na linha de frente militar da crise como os imperialismos norte-americano e europeu.

Se a guerra da Ucrânia colocou em crise importante o imperialismo russo, agora é o imperialismo norte-americano e europeu que vai ter de assumir seu papel contrarrevolucionário de forma aberta, assumindo suas consequências.

Uma crise crescente que recém se inicia

A guerra na Palestina pode acelerar e polarizar ainda mais a crise da ordem mundial. Tanto em sua incidência na crise econômica, como na radicalização política a nível internacional.

Já estão começando a ocorrer mobilizações importantes em apoio à causa palestina. Nos EUA, ocorreram manifestações de muita importância em Chicago, São Francisco, Nova Iorque, assim como na Europa (Itália, França e outros países). Existiram grandes mobilizações em países árabes, como na Jordânia, Iêmen, Egito e outros.

Por outro lado, cresce a ultradireita em todo o mundo, muitas vezes associada a setores evangélicos.

As reações bonapartistas dos governos imperialistas são outra expressão dessa polarização. Existem perseguições explícitas contra os apoiadores da causa palestina nos EUA e na Europa. Existem proibições das manifestações pró-Palestina e ameaças de ilegalidade dos partidos que apoiem essa causa na França.

No momento em que escrevemos esse artigo, Israel está ultimando os preparativos para uma invasão terrestre sobre Gaza. Isso vai ampliar essa polarização e radicalização política em todo o mundo, ampliando o desgaste que já existe do sionismo.

A possibilidade de uma nova primavera árabe e ou de uma terceira intifada podem também ampliar em muito a crise na ordem imperialista mundial.

Existe uma nova e explosiva conjuntura mundial que recém se inicia e pode tomar múltiplas direções.

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