Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU
Desde 2005, quando um beijo lésbico foi vetado pela Globo, emissora mantém casais gays em novelas. Apesar do espaço, homossexualidade na TV ainda oscila do preconceito e chacota até um mundo de fantasiasDepois de inúmeras cenas de agressões e linchamentos de mulheres, a novela A Favorita surpreendeu pelo conteúdo homofóbico de seu surpreendente desfecho. O personagem Orlandinho (Iran Malfitano) apaixona-se por Céu (Deborah Secco) e deixa de ser gay. Como se ser gay fosse opção ou doença, Orlandinho opta por ser heterossexual e “cura-se” da homossexualidade.
Ao mesmo tempo em que a novela apresenta um ex-gay, deixa de expor uma relação lésbica. A personagem Catarina (Lilia Cabral), após deixar o marido por sofrer violência doméstica, vive uma forte amizade com Stela (Paula Burlamaqui), que é lésbica. O suspense sobre o romance das duas gerou certa polêmica entre os telespectadores desde o começo, uma vez que, mesmo antes de a novela começar, especulava-se que Lilia Cabral viveria uma personagem lésbica, o que não aconteceu. Provavelmente, por impedimento da Rede Globo.
Ao fim, Stela deixa a cidade por se ver apaixonada por Catarina e não ser correspondida. Mas a amizade das duas não acaba. Mais uma vez, o esperado relacionamento homossexual não acontece, apesar de a novela terminar com as duas viajando juntas para Buenos Aires.
Em contraste com a relação de amizade entre uma personagem lésbica que vive uma vida normal – mas que é completamente coadjuvante na novela – e uma mulher forte que larga o marido, o que mais impressiona é o desfecho da novela em seu núcleo principal: no final, a personagem Flora (Patrícia Pillar) revela-se lésbica e apaixonada por sua rival Donatela (Cláudia Raia). Por ser lésbica e ter um amor doentio por Donatela, Flora se tornou uma megavilã, típica das novelas: uma psicopata cruel, sem escrúpulos, que enlouquece e morre no último capítulo.
A presença gay nas novelas
Já faz algum tempo que diversos setores do movimento GLBT (Gays, Lésbicas Bissexuais e Transgêneros) vem comemorando a presença cada vez mais constante de casais gays nas novelas da rede Globo. Todas as últimas novelas das oito tinham um casal gay, ainda que completamente fora da realidade: personagens gays que não se tocam, não tem problemas familiares, não passam por grandes crises psicológicas, não tem amigos gays, não contestam nada nem se enfrentam com ninguém e, em sua maioria, são respeitados e aceitos por toda a comunidade em que vivem. Enfim, gays que não existem: totalmente aceitáveis pela sociedade e pelos telespectadores.
É inegável que houve, nos últimos anos, certo avanço da visibilidade gay na TV brasileira, atingindo até mesmo a Rede Record, da Igreja Universal do Reino de Deus, ainda que esse avanço vise o lucro em cima de uma importante fatia de mercado, que é o público homossexual. Isso é fruto do avanço do movimento GLBT que, ainda que organizado em forma de ONGs institucionalizadas e ligadas ao governo, conquistou vitórias importantes, como o tratamento gratuito de Aids e a visibilidade crescente das paradas. Exatamente por ser fruto do movimento das ONGs, essa visibilidade que vemos na TV esbarra nas mesmas limitações dessas organizações: vê o público gay como mercado consumidor e evita o enfrentamento com os setores conservadores.
Esse avanço sutil na visibilidade na TV pode ser observado pela reação do público com os personagens das novelas. Em 1985, a novela Um Sonho a Mais trazia três travestis, interpretadas por Ney Latorraca, Marco Nanini e Patrício Bisso. O choque do público foi tamanho que elas desapareceram da novela. A Próxima Vítima (1995) trazia um casal gay explícito, interpretado por André Gonçalves e Lui Mendes. Ao fim da novela, o ator André Gonçalves foi espancado no Rio de Janeiro. Torre de Babel (1998) tinha um casal lésbico interpretado por Silvia Pfeifer e Christiane Torloni. Houve manifestações de grupos conservadores, como a organização ultraconservadora católica TFP (Tradição, Família e Propriedade). Diante da reação negativa do público e do patrocinador, o casal acabou sendo morto na explosão de um shopping.
Já em América (2005), a possibilidade de um beijo gay no último capítulo, impedido por decisão da Globo, fez com que a novela batesse o recorde de audiência. De lá pra cá, todas as novelas possuem um casal gay – fórmula que atrai o público gay para assistir e discutir as novelas, mas depois joga um balde de água fria em qualquer expectativa desse público.
A visibilidade da TV e a visibilidade que queremos
Na TV, quando não é motivo de chacota, como em várias novelas e em duvidáveis programas de humor – como Casseta & Planeta, Zorra Total, Toma Lá Dá Cá, A Praça é Nossa etc. – nem retratada com personagens carismáticos, mas completamente distantes dos homossexuais da vida real, a homossexualidade é associada à algo passível de cura ou associada à perversão, criminalidade, e desequilíbrio mental, como mostra A Favorita.
Embora tenha havido um avanço sutil, a visibilidade historicamente reivindicada pelo movimento GLBT está longe de ser alcançada. Lutamos por visibilidade para mostrar que somos reais e quem realmente somos. Lutamos por visibilidade para poder mostrar nossas reivindicações e garantir nossos direitos. E, acima de tudo, lutamos por visibilidade para acabarmos com a homofobia e andarmos nas ruas sem medo.