João Paulo, de Natal (RN)

Considerado um dos maiores cronistas brasileiros, o gaúcho Luis Fernando Veríssimo chegou aos 83 anos de idade no último dia 26 de setembro

Ele é tímido, reservado, econômico nas palavras e avesso a entrevistas. Falando assim nem parece o mesmo sujeito por trás dos textos bem-humorados e irônicos que dissecam as contradições humanas e revelam o quão ridículos e divertidos podem ser os pequenos dramas do cotidiano. Filho do consagrado escritor gaúcho Érico Veríssimo, o cronista Luis Fernando Veríssimo é dono de uma inteligência e de um senso crítico refinados, principalmente quando o assunto é comentar as comédias da vida pública e privada dos outros. Com mais de 80 títulos publicados e mais de 5 milhões de livros vendidos, Veríssimo tornou-se um sucesso de crítica e público e ajudou a popularizar a crônica no Brasil. No último dia 26 de setembro, o cartunista, cronista e romancista chegou aos 83 anos de idade em plena forma literária, mantendo a qualidade de observador perspicaz da realidade e o texto talentoso que o transformou em um dos maiores cronistas brasileiros.

Dos jornais para os livros
Luis Fernando Veríssimo nasceu em Porto Alegre, em 26 de setembro de 1936. Embora tenha feito os primeiros estudos na capital gaúcha, viveu boa parte da infância e da adolescência em Washington, nos EUA, onde concluiu a educação básica na Roosevelt High School, por causa do trabalho de professor de seu pai na Universidade de Berkeley. O contato com a língua inglesa (bem mais sintética que a nossa) deixou marcas na formação e no texto de Veríssimo, como, por exemplo, o estilo enxuto, de frases rápidas e concisas, bem mais fáceis de ler, mas não menos profundas.

A paixão pelo jazz e o aprendizado do saxofone também são frutos do tempo em que o escritor morou nas terras de Charlie Parker e Dizzy Gillespie, suas influências musicais. Até hoje Veríssimo toca sax e se orgulha de dizer que faz parte do “menor sexteto do mundo”, já que o grupo possui apenas cinco integrantes. O talento para o humor apareceu cedo em sua vida. Aos 14 anos, junto com a irmã Clarissa e um primo, Luis Fernando Veríssimo produziu um jornal com notícias da própria família. Ficava fixado no banheiro e chamava-se “O Patentino” (patente é como é conhecida a privada no Rio Grande do Sul).

Em 1956, Veríssimo voltou ao Brasil e passou as décadas de 50 e 60 trabalhando como tradutor, redator publicitário e jornalista. No jornal Zero Hora, após ter voltado à capital gaúcha em 1967, ele chegou a exercer a antiga função de copydesk (revisor de textos). Mas seria apenas dois anos depois, quando Veríssimo passou a assinar uma coluna diária no jornal, que o cronista veria seu trabalho ganhar espaço e notoriedade. A partir daí, durante os anos de 1970, 80 e 90, suas crônicas sobre cinema, literatura, esporte e política começaram a inundar a imprensa nacional, sempre tendo o humor e a ironia como marcas registradas. Hoje, escritor consagrado, Luis Fernando Veríssimo assina duas crônicas semanais, publicadas nos jornais Zero Hora e O Estado de S. Paulo e republicadas para muitos outros jornais do país. É casado com Lúcia Massa e tem três filhos.

Embora tenha começado a trabalhar cedo na imprensa, o autor só publicou seu primeiro livro aos 38 anos, um pouco tarde para os padrões. Entretanto, em 1974, em plena ditadura militar, Veríssimo estreou com O Popular, no qual já demonstrava ser um escritor com total domínio de seu ofício. Na apresentação do livro, Veríssimo já expressava a sutileza de seu humor e uma inteligência peculiar ao se descrever. “O autor começou do nada, mas desenvolveu-se rapidamente e em nove meses estava pronto para nascer. (…) Tem duas filhas, um filho e uma Variant, nenhum dos quais está pago. Torce pelo Internacional, o que é um consolo. Gosta de viajar e de comer. Sinais característicos: nenhum. Olhos: dois. Cabelos: raros. Sexo: com moderação. Estado civil: onde? onde?”. Era o início oficial da carreira de um escritor que, como poucos, consegue traçar um perfil satírico dos costumes e comportamentos da sociedade brasileira.

Um artista versátil
Depois do primeiro livro, Luis Fernando Veríssimo emplacou um sucesso atrás do outro, o que, tempos depois, fez dele o autor mais lido no país a partir do ano 2000 (superando até Paulo Coelho). Em 1975, publicou seu segundo livro de crônicas, intitulado A Grande Mulher Nua, que logo foi seguido por Amor Brasileiro (1977), Ed Mort e Outras Histórias (1979), O Analista de Bagé (1981) e A Velhinha de Taubaté (1983). Ainda na década de 1970, o autor começou a desenhar os cartuns de As Cobras, cujos personagens discutem futebol, política, economia e filosofia existencialista sem o menor senso de moral. Destaque para “Queromeu, o corrupião corrupto”, um retrato bastante atual dos parlamentares brasileiros, e para “Durex, o adesista”, sujeito que adere a qualquer governo, seja qual for, algo muito semelhante ao que faz o MBD. Mesmo Veríssimo tendo aposentado os personagens em 1997, ao completar 60 anos, já que, segundo o próprio escritor, “não ficava bem um sexagenário desenhando cobrinhas”, a série As Cobras, ao lado dos quadrinhos da Família Brasil, mostrou também sua habilidade no mundo dos traços.

A versatilidade de Luis Fernando Veríssimo é a prova de que o escritor é um daqueles artistas cuja genialidade pode se expressar em diversos gêneros. Cronista reconhecidamente talentoso, como atesta o sucesso de Comédias da Vida Privada (1994) e Comédias da Vida Pública (1995), além de As Mentiras que os Homens Contam (2000), Veríssimo ainda exibe uma grande capacidade narrativa nos seis romances que publicou, o último deles foi Os Espiões (2009). Merecem destaque também os livros Gula, O Clube dos Anjos (1998), Borges e os Orangotangos Eternos (2000) e A Décima Segunda Noite (2006). Todos repletos de um humor fino, sempre aliado a enredos inteligentes. Nem mesmo a poesia deixou de ser usada pelo autor para espalhar sarcasmo e visão crítica. Em Poesia Numa Hora Dessas?!, publicado em 2002, Veríssimo sentencia em versos curtos e irônicos: “O Brasil é um país verdadeiramente incomum / Enquanto parte vai pra Cucuia / Outra parte vai pra Cancun”.

O cronista gaúcho também já teve sua obra adaptada para o cinema e a televisão. Em 1994, a coletânea de histórias de humor Comédias da Vida Privada foi lançada com sucesso na TV, e tornou-se um especial na Rede Globo (1994), além de uma série de 21 programas entre os anos de 1995 e 1997. Em seguida, o personagem Ed Mort foi levado para a telona, com direção de Alain Fresnot, tendo Paulo Betti no papel principal. As histórias de Ed Mort ainda receberam outras adaptações para o teatro e os quadrinhos.

Os personagens impagáveis e o observador político
Parte da popularidade da obra de Luis Fernando Veríssimo se deve aos personagens impagáveis que ele criou a fim de parodiar os tipos mais comuns do cotidiano e, ao mesmo tempo, ironizar a própria realidade brasileira. Lançada em 1983, a Velhinha de Taubaté se transformou num marco da crítica política bem-humorada do autor. Criada no final da ditadura militar e tida como “a última pessoa no Brasil que acreditava no governo”, a Velhinha de Taubaté era monitorada de perto pelo Congresso Nacional para que seguisse confiando nos políticos. Do contrário, o caos se instalaria no país. O personagem era uma metáfora sobre a credibilidade do povo nas instituições e foi usado muitas vezes para ridicularizar os governos de José Sarney, Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso. A cada novo escândalo ou política econômica rigorosa, os políticos se mobilizavam para impedir que a Velhinha deixasse de acreditar no governo. Mas em 2005, em meio à crise do mensalão do governo Lula, Veríssimo decidiu “matar” o personagem, em sinal de protesto contra o mar de lama petista. Foi demais para ela.

Muitos dos livros de crônicas de Luis Fernando Veríssimo são dedicados à crítica política e econômica, a exemplo de A Versão dos Afogados (1997) e Aquele Estranho Dia que Nunca Chega (1999), onde é possível encontrar as posições políticas do escritor contra o neoliberalismo de FHC. Até mesmo o governo Lula, que gerou expectativas para o cronista, também foi alvo de críticas. Em 2008, na época do lançamento do livro O Mundo é Bárbaro (E o que Nós Temos a Ver com Isso), Veríssimo declarou numa entrevista que o PT e o PSDB eram iguais. “Esta política econômica é a continuação da feita por Fernando Henrique. O PT é o PSDB de barba. Lula foi uma decepção para quem esperava um governo de esquerda”, disse.

Além da Velhinha de Taubaté, Veríssimo também criou, exclusivamente para os quadrinhos, a curiosa Família Brasil. Uma família de classe média que vive as mais inusitadas aventuras a cada nova política do governo, sempre sofrendo com as variações no padrão de vida como consequências dos pacotes econômicos. E como não mencionar o engraçadíssimo Ed Mort, um detetive pobretão que satiriza os romances policiais de estilo noir, e o surreal Analista de Bagé, um psicanalista gaúcho grosseiro e freudiano ortodoxo, que trata seus pacientes na base do joelhaço. A maioria dos personagens saídos do genial universo do autor traça um divertido perfil de nossa sociedade e nos mostra que o riso inteligente ainda pode ser uma importante ferramenta para ironizar as contradições do dia-a-dia.

Não foi à toa que o cronista Luis Fernando Veríssimo alcançou o status de fenômeno literário, conseguindo ser ao mesmo tempo um escritor refinado e popular, o que para muitos é uma façanha. Veríssimo lida com uma matéria-prima comum a todos nós, mas que nem todos dão a devida atenção: o cotidiano, um universo onde desfilam os dramas e conflitos humanos, sejam eles cômicos ou não.

Com irreverência, charme e concisão, o autor foi se consolidando, a cada livro de crônicas, como um atento observador da política nacional e um historiador da vida entre quatro paredes. Ao chegar aos 83 anos de idade, Luis Fernando Veríssimo demonstra que, semanalmente em muitos jornais do país, seu talento segue ignorando os modismos e os efeitos do tempo. É a prova de que a mão deste fotógrafo da natureza humana, sob as lentes do humor e da ironia, continua firme.

Texto adaptado do artigo em ocasião dos 75 anos do escritor, publicado em 2011