Estranhem tudo aquilo que não for estranho.
Tomem por inexplicável o que parecer habitual.
Sintam-se perplexos diante do quotidiano.
Tratem então de achar um remédio para o abuso.
Mas não se esqueçam: o abuso é sempre a regra.
Bertold Brecht, em A Exceção e a Regra, 1930.
Em vigorosa antítese à pasmaceira que informa a recente produção cultural brasileira, por exemplo, em televisão e cinema com a ressalva de que também nestes espaços, felizmente, existem (raras e) desabusadas exceções à regra , já há alguns anos pode-se dizer que um espectro revolucionário ronda as companhias do teatro coletivo de São Paulo. Mais do que isso: Bertold Brecht vive. A atualidade e a vigência de seu teatro dialético resumindo brutalmente, a crítica da crítica de séculos inteiros de história do teatro, tal como se convencionou entendê-lo faz com que Brecht, em torno aos problemas sociais e estéticos que levantou à sua hora histórica, caminhe outra vez espinha ereta, passos largos no chamado mundo dos homens. A relação do teatro de Brecht com a formação social brasileira, a bem da verdade, remonta já desde a década de 1950, tendo fervilhado no quente caldo cultural dos anos 60 e 70. Mas, não cabe aqui contar esta história. (A não ser que, curiosamente, a primeira montagem brechtiana em solo nacional através da tradicional Escola de Arte Dramática, a EAD de São Paulo referia-se justamente a esta mesmíssima peça.) O que cabe registrar para todos os efeitos é que, aqui sim, vale a periodização histórica em torno ao que seria uma verdadeira retomada: olhar para o passado, reinventar o presente para, então, construir o futuro. (Aos que estão por vir.)
Uma peça-didática para o chão de um teatro-fábrica
O Núcleo Dois [1] da Cia. Teatro-Fábrica de São Paulo (a alusão à categoria fundante do trabalho material, social e necessário tratando-se de uma ex-fábrica, re-ocupada , não poderia ser mais sintomal da perspectiva marxista), responsável pela montagem ora em questão, se insere no contexto histórico mais amplo do Movimento Arte contra a Barbárie. Tampouco, exíguo é o espaço, pode-se historicizar, aligeiradamente, projeto político-cultural de tamanha envergadura. O essencial é dizer que, a partir de um profundo questionamento à concepção burguesa do processo cultural cuja negatividade a lógica do capital elevou à enésima potência, na contemporaneidade capitalista e uma proposta prático-crítica que mobilizou o que há de melhor no teatro paulista, logrou-se o acúmulo social e político que, subseqüentemente, detonou a alteração na correlação de forças: da pujança das ruas até o parlamento dos de cima, a favor da função social de um teatro popular à altura dos interesses imediatos (e necessidades históricas) da maioria da população de São Paulo.
Como o caiçara que lê o ambiente em que vive, pode-se afirmar o prenúncio transitório de uma virada de tempo a se postar ao horizonte o qual em seu presságio, a forma cultural anuncia uma reviravolta de conteúdo político. Por fora dos holofotes do sistema estelar (o tal star system) das produções globais (ou globalizantes), desenvolveu-se toda uma vertente preocupada com questões tais como: pesquisa estética, formação crítica de um circuito popular, controle coletivo sobre a totalidade social do processo de trabalho criativo desde a socialização da produção, até a ampliação do público e, além de muito, muito mais: a não-alienação entre ator e espectador. (A continuidade e a sistematização, aqui entendidas como princípios-vetores, vão para além da miserável, presentista e descartável concepção de projeto encerrado este em um só produto contida nas leis de renúncia fiscal que norteiam a política cultural deste país. Brecht, como se pode notar, não se trata de uma escolha aleatória.)
A Exceção e a Regra, a sua vez, caracteriza-se por se inserir naquilo que Brecht chamou peças didáticas, aspecto este pouco sistematizado pela primeira apropriação de Brecht no país. A proposta de peça-didática, segundo se conta, nascera depois de um conflito legal envolvendo o autor e os respectivos responsáveis pela versão filmada da Ópera dos Três Vinténs (peça esta que viria a inspirar o clássico teatral de Chico Buarque, A Ópera do Malandro, transplantada para o solo fértil de contradições do desenvolvimento capitalista do Rio quarentesco da ditadura Vargas). Com a peça escrita no final dos anos 20 e, depois, levada às telas de cinema após penosa querela jurídica o autor dA Exceção apercebe-se então, e vividamente, da profunda necessidade de produzir arte à maior distância possível da fantasmagórica fetichização do que viria a se denominar indústria cultural. E, ao contrário do que a outra denominação possa sugerir, a peça-didática não serve à instrumentalização de uma suposta doutrina como costuma (pré) supor a, apressada, crítica profissional , ou seja, não objetiva o espetáculo-mercadoria (e, menos que menos, seu público-consumidor) , mas sim àqueles e àquelas que se propõem a parteggiare tal experiência de vida (e, por que não?, de luta, partigianna). Não se trata de uma profissão de fé.
Senão, vejamos. O termo peça-didática vem do alemão Lehrstück que o próprio dramaturgo traduziu ao inglês como learning-play , qual seja, um processo de ensino-aprendizagem que se dá enquanto expressão viva e momento constitutivamente orgânico da própria produção estético-social. No teatro de Brecht vale o enunciado, de inspiração gramsciana, que o camarada Edmundo Dias intelectual orgânico da classe trabalhadora brasileira tanto gosta de usar (quando em audiências operárias): ensinar como quem faz política, fazer política como quem ensina. A peça-didática seria, enfim, um exercício de dialética. Eis que de repente o leitor atônito puxa o freio de emergência e interrompe o fluxo, o continuum mesmo da narrativa. Tudo se move de lugar e, em alta velocidade , ouve-se intenso e agudo barulho: O que seria afinal de onde vem, para aonde vai essa tal dialética? Muitos estudiosos rastrearam a gênese histórica de sua expressão literária moderna já em Mefistófiles personagem-demônio de Fausto, romance alemão de Goethe que, ao abrir a voz, faz o tempo cantar: Tudo o que nasce merece perecer diz o ser-diabólico Eu sou o espírito que tudo nega. O princípio da contradição um pressuposto, salvo (ledo) engano, do próprio teatro dialético de Brecht fora já esmiuçado em brincalhona expressão da teatróloga trotskista Iná Camargo Costa, em pleno chão de teatro-fábrica, conversando com o jovem público do ciclo de palestras Diálogos com Brecht. Diz Iná: [o] que eu gosto de chamar de espírito de porco[2] (Costa, 2005, grifo nosso). É. Isso. É preciso cultivá-lo. E fazê-lo chafurdar, na real-nervura das contradições vivas.
Da peça-didática ao teatro-fórum: Augusto Boal e o Teatro do Oprimido
Na peça-didática incita-se a participação do espectador, como ator e co-autor do próprio texto. Sem pretender ensinar um conteúdo pronto e acabado, trata-se da construção dialética de um espaço estético essencialmente coletivo para a trans-criação de motivos-geradores, da ação cênica à práxis política: a serem experimentados, questionados, CRITICADOS. A aura que envolve a questão autoral de tão sólida que é se desvanece no ar. Diz o próprio Núcleo Dois, [trata-se de peça] onde espectadores e atores participam, ativa e conjuntamente, na construção de um conhecimento histórico-cultural dos temas abordados. Trata-se, enfim, de uma estrutura formal que enquanto método de trabalho prima pela unidade na diversidade. (Em base a pequenos fragmentos, ou mesmo tão-só a algumas linhas, desenvolve-se ponto de partida para o labor de companhias coletivas do teatro paulistano tais como, por exemplo, a Companhia do Latão.)
Nesse momento, adentramos o universo estético-social do dramaturgo brasileiro Augusto Boal e seu longo caminho para Brecht, criativo e renovador, no interior da internacionalmente reconhecida proposta de Teatro do Oprimido. (No período pós-64, a expressão oprimido lembrar é resistir: nunca é demais recordar adquiria nítida conotação: super-exploração econômica e opressão político-ditatorial.) A montagem recente incorpora a dinâmica mesma do teatro-fórum, sistematizada por Boal a partir da premissa brechtiana. Ao fim do espetáculo, os espectadores são convidados a refazer as ações da peça, propondo novas soluções cênicas para os conflitos em trama que são regularmente e sem exceção, ao menos no teatro brechtiano as contradições imanentes à Ordem do Capital.
A força-motriz do teatro brechtiano é, então, desenvolvida na perspectiva de Boal. Trata-se de construir um teatro popular enquanto espaço estético, questionando a alienação espectador/ator através de um sistema de exercícios físicos, jogos estéticos, brincadeiras corporais e técnicas de imagem/improvisação, mediante a linguagem teatral , e, parafraseando Gramsci, fazer valer a expressão de que todo homem é um artista. O teatro é pensado como forma de sensibilização, criação e discussão de dimensões sócio-culturais, ético-políticas e existenciais, pelos próprios grupos sociais, embora o espaço teatral (estético) mantenha-se destacado das demais instâncias como lugar de representação , mas no qual ator e espectador se confundem na mesma persona. Nesse sentido, é um modo através do qual diversas expressões artísticas música, dança e etc. podem estar dialeticamente articuladas, possibilitando a destruição-conservação-superação do espaço estético, que permita então a reflexão social, política e corporal; desmecanizando o quotidiano de pensar e sentir. Diz Boal:
O espaço estético existe sempre e quando ocorre a separação entre os dois espaços: o do Ator e o do Espectador. Ou a dissociação de dois tempos: hoje, eu, aqui, e ontem, eu, aqui mesmo; ou, hoje e amanhã; ou, agora e antes; ou, agora e depois. Eu coincido sempre comigo mesmo no momento presente, pois o estou vivendo e o ato de vivê-lo é lembrar o passado ou imaginar o futuro. O Teatro (ou Tablado, na sua expressão mais simples; ou Espaço Estético, na sua expressão mais pura) serve para separar o Ator do Espectador, aquele que atua daquele que vê. Estes dois podem ser pessoas diferentes, ou podem coincidir na mesma pessoa. (Boal, 1996, p. 33, grifos no original.)
De Boal a Brecht, de Brecht a Boal: por um teatro dialético
O efeito-distanciamento (o Verfremdungeffekt ou, simplesmente, efeito-V) e a não-identificação (empático-simpatética), entre personagens em cena e espectadores do público a suas vezes são recursos tipicamente brechtianos, para um teatro que não visa a contemplação e a catarse mas, sobretudo, a construção dialética de uma ponte estético-social que vá da atuação até a ação. O narrador, na peça-didática de Brecht, e o coringa, no teatro-fórum de Boal, apresentam-se tal como são: mestres-de-cerimônias cuja principal missão é desmistificar a ilusão ou, enfim , profanar toda e qualquer sacralização do teatro. No Teatro-Fórum o espetáculo (ideal) é baseado em fato (material), no qual personagens, Oprimidos e Opressores, são estimulados a entrar na cena do conflito de forma clara e objetiva em defesa de seus desejos e interesses. Neste confronto, o Oprimido fracassa e o público é convidado, pelo Coringa (o facilitador-mediador do Teatro do Oprimido), a entrar em cena; substituir/improvisar o Protagonista-Sujeito (o Oprimido) e, então, buscar alternativas outra vez, estético e social inter-transubstanciados, em dialética relação para o problema encenado. Aqui, não há qualquer indício de maniqueísmo pétreo entre opressores e oprimidos mas, antes que isso, a representação estética das relações dinâmico-causais que lhes são subjacentes.
O apelo à manipulação das emoções, em Boal e Brecht, é substituído pelo predomínio do recurso à razão, sem nunca perder de vista o humor e, até mesmo, a aproximação afetiva enquanto instrumentos de interpretação crítica (e transformação revolucionária) do que é ali re-apresentado. Além da necessidade de expressar-se política (e didaticamente) através da linguagem teatral, a nova proposta procura evidenciar também a necessidade de uma (relativa) autonomia estética na produção artística: deve continuar plenamente teatral e, enquanto tal, divertir o público. Nas palavras de Brecht, conciliar a preocupação estética com a inquietude política, sem nunca submeter uma à outra mas, justamente, encontrando um novo e surpreendente significado para ambas. Em tal universo estético-social, contudo, a aproximação entre arte e vida no interior do processo histórico adquire uma impostação programática cuja poética exige a derivação de um futuro em aberto. A função social da arte não se reduz a reproduzir a sociedade de seu tempo. O principal objetivo quer pelo conteúdo, quer pela forma trata-se de desempenhar um papel transformador a um só tempo cultural e político, ou seja, a arte e a revolução. E, acima de tudo e tanto mais nA Exceção , trata-se de desnaturalizar aquilo que é histórico. Sendo rigorosos: (quase) tudo. (O espírito que tudo nega afirma: se nasce, deve morrer.)
A Exceção é a Regra ou, afinal, Qual Remédio?
A peça escrita esta em 1926 narra a saga de um homem de negócios que empreende uma viagem através do deserto com dois empregados, um guia e um carregador para conseguir formalizar uma concessão para a exploração de petróleo. O businesman não mede esforços (meios) para alcançar seu objetivo financeiro (fim) trata-se, enfim, de vencer a concorrência mesmo que para isto tenha que abstrair a natureza humana de seus imediatamente subordinados. Em uma situação-limite, o patrão assassina o carregador de suas bagagens à queima-roupa em um ato-reflexo, instintivo e de auto-defesa pensando que este fosse atacá-lo quando, na verdade, o carregador tencionava tão-só ajudá-lo. A suposta pedra era um cantil: água. A segunda parte da peça é o julgamento deste assassinato e o modo como a justiça dos homens a realmente existente, burguesa enxerga, em um ato criminoso, algo como uma legítima defesa, favorecendo os de cima em detrimento dos de baixo. A peça mostra como os mecanismos, o funcionamento e a lógica da exploração do homem pelo homem são considerados regra, em uma crítica aguda de como se dá a sua produção social e histórica.
Há, aqui, uma relação cifrada entre a ilusão do palco e o verdadeiro enigma de efígie da sociedade capitalista. A cena burguesa em sua representação político-jurídica é concebida em referência a uma determinação que se encontra fora de si mesma. Expliquemo-nos. A cena política nas sociedades capitalistas o lugar social da luta mesma entre partidos e organizações políticas, onde se representam os interesses de classes não pode ser considerada, a partir de sua própria realidade imediata, enquanto transparente. Da representação política à emulação jurídica se apresenta a divisão hierárquica entre as classes. O cenário político e as metáforas teatrais, tomadas de empréstimo ao drama burguês por Marx, são perfeitamente apropriadas (ato, entreato, personagem, proscênio e etc.) não se revela aos sentidos diretamente segundo o que é: espécie de instância (ou superestrutura ideológica) da luta de classes em torno a seus interesses socioeconômicos (ou base material). A cena política revela-se opaca. A peça-didática assim como o teatro-fórum visa fazer evidenciar não simplesmente a falsa consciência sobre uma realidade falsa mas, ao revés, a consciência verdadeira de uma realidade falsa. Implodir a representação (política e teatral) tornando-a auto-evidente demonstraria, à luz solar, a violência estrutural que reveste a legalidade capitalista. A regra, para os trabalhadores não-proprietários é a exceção, para os proprietários não-trabalhadores. Não se trata ao final de uma sociabilidade de equivalentes. Em uma palavra: não são iguais. A liberdade é, nada mais, do Capital e sua Ordem.
Crônica de uma morte anunciada, não se faz qualquer segredo do desfecho trágico que aguarda o espectador. Afinal, não se trata de surpreender alguém levando-o às lágrimas com uma morte inesperada. Quando é necessário recorrer a algum procedimento ilusório como, por exemplo, apagar as luzes para simular o breu da noite os atores tratam de sublinhar o efeito, satirizando-o. E tudo começa com a explanação geral do coringa exegese narrativa em ação e movimento sobre as regras do jogo que compõe o teatro-fórum. Até aí, tudo como reza o figurino: no ~~~~script~~~~. As séries de Diálogos com Brecht, as oficinas abertas de teatro-fórum e os seminários sobre Marx lá do Teatro-Fábrica se vertem em estado prático: são agora instrumentos. Porém, à medida que se representam as relações contraditórias entre capital e trabalho ou, entre patrão e empregado vão aparecendo alguns problemas (cênicos). Há uma superexposição do patrão que, além do mais, é o coringa. O patrão funciona como uma espécie de deus ex-machina narrador omnisciente, omnipresente e, virtualmente, omnipotente , e, enquanto isso, na maioria das vezes, os trabalhadores são colocados como não-sujeitos, sempre passivos (ou quase). A relação ator-espectador se estabelece e, chegado o momento, passa-se a palavra o verbo-de-ação para o público. Agora se sabe. A Exceção é a Regra. Qual Remédio?… Que fazer?
Entre a intenção e o gesto: por uma conclusão espírito de porco
As primeiras soluções passam pelo privilégio do acaso, algo de sarcasmo e saídas individuais. O trabalhador que se recusa à HUMILHAÇÃO, porém, é intercambiável por aquele que deve vender sua força de trabalho. A justiça burguesa não pode ser benevolente com uma pobre viúva, proletária. Policiais não servem aos mais fracos. Não há reconciliação possível entre patrões e empregados. E tampouco se pode humanizar um sistema social que, por definição, carece de humanidade. Eis então que alguns jovens alguns deles já sexagenários vão ressurgindo com saídas que passam pela ORGANIZAÇÃO dos de baixo, contra os de cima. O Capital e sua forma por excelência, a mercadoria, ocultam detrás de si sob a aparência da coisificação, natural relações sociais e, sobretudo, históricas. São muitos os que intervêm no sentido de desnaturalizar o que é histórico, historicizando o que não é natural. Agora, se é possível agrupar arranjos temáticos e soluções cênicas, são eles, sobretudo, COLETIVOS. Há uma função social para a arte que não apenas a de mercadoria e entretenimento sobretudo enquanto instrumento de formação humanística e crítica. Fala-se (e se faz, em cena) muito sobre eixos e momentos de humanização, desalienação, emancipação e, enfim, liberdade. Os módulos de Marx em Brecht atividade última lá do Teatro-Fábrica re-aparecem aqui com força: (i) não há razão neutra, (ii) a propriedade privada é um roubo, (iii) o Estado serve aos de cima, (iv) as idéias dominantes são as da classe dominante, (v) capital e trabalho se negam mutuamente e, ao fim e ao cabo, (vi) a liberdade capitalista se sobrepõe à emancipação humana. Há um princípio-norteador de construção (dialética) coletiva para o espaço estético. Os fios da trama são desatados, para formar novos nós. Há troca e debate. O processo, de fato, avança.
Mas o silêncio angustiado de alguns tarda, mas não falha. São a voz da experiência intelectuais, versados em crítica pós-marxista a dizer que o comunismo dos anos 20 e 30, de um Brecht iludido, já não servia mais.[3] Tratar-se-ia de algo por demais esquemático, unilateral, datado e, quiçá, irremediavelmente anacrônico. Afinal, já não existiria a contradição fundamental entre Capital e Trabalho, ao menos não tal como Brecht a conheceu. Tudo estaria diferente. A jovem plebe se rebela contra a intelectualidade indiferente. Mas são ainda um coro desafinado. Mas e o Iraque?, pergunta-se um. Se não há exploração, como subiste o Capital?, retruca outra. Querem se fazer ouvir democraticamente. Do outro lado, monopólio da fala. (Aonde foi o Coringa?) Longas exegeses sobre Marx, e Brecht, e O Capital. Como típicos intelectuais, tendem a sintetizar em si mesmos, em absoluta soberba, a totalidade do devir. Já sabem o que foi, o que é e o que será. São, contudo, benevolentes: querem explicar-nos. (Estes sim, são doutrinários no pior dos sentidos , professores de uma fé.) A regra do jogo porém, é bem clara: atuar para agir. As soluções cognitivas devem vir acompanhadas de sua respectiva representação cênica. Mas, os assentos são por demais confortáveis. A exposição seria o ridículo… coisa de jovens exaltados! A experiente intelectualidade tem tanto a dizer que o horário do teatro-fábrica (inexorável, como é, o tempo) chega ao fim. É preciso fechar.
As caras amarradas não se contentaram com a sabedoria dos mais velhos, fossem eles realmente experientes ou, mesmo, velhacos como muito se vê por aí de vinte-e-poucos-anos. Não é uma questão cronológica, não em sentido estreito:
A indiferença é o peso morto da história. É o grilhão de chumbo [T.: palla di piombo] para o inovador, é a matéria inerte em que se afogam amiúde os mais esplendorosos entusiasmos, é o fosso que circunda a velha cidade e a defende melhor do que as mais sólidas muralhas, melhor que o peito dos seus guerreiros; porque engole em seus pântanos lamacentos os seus assaltantes, os dizima e desencoraja e, às vezes, faz com que desistam da ação heróica. (…) A maioria … [Os Indiferentes], ao contrário, diante de acontecimentos consumados, prefere falar de falhas ideais, de programas definitivamente esmagados e de outras fanfarronices semelhantes. Recomeçam assim o seu absenteísmo de qualquer compromisso. E já não por não verem claramente as coisas e, por vezes, não serem capazes de divisar belíssimas soluções para os problemas mais urgentes, ou para aqueles que embora requerendo uma [mais] ampla preparação e tempo são todavia tão urgentes quanto. Mas essas soluções são belissimamente inférteis; mas essa contribuição à vida coletiva não é animada por qualquer luz moral: é produto de curiosidade intelectual, e não do senso pungente de um compromisso histórico que quer a todos ativos na vida, que não admite desconhecimentos e indiferenças de nenhuma espécie. (Gramsci, 1917, grifo do tradutor.)
Os doutos senhores, moderados, não quereriam uma versão mais atual e vigente de Brecht e Marx. Desejariam tão-só quebrar o espírito radical de uma juventude exaltada. Não podem (ou não querem) enxergar que a valorização do Capital, de poucos, ainda passa pela exploração, mais-valia, de muitos. Criticam impiedosamente a Revolução com R maiúsculo. Será em favor da indiferença, com i minúsculo? Mal-sabem que a situação na qual produziu Brecht muito se assemelhava a que vivemos hoje. Em meados dos anos 20, a República de Weimar sob governo de colaboração de classes, dos social-democratas constituiu, mediante des-organização (a ilusão) operária, a ante-sala para a ascensão de Hitler ao poder, após incêndio do parlamento (a representação da ilusão). A revolução de baixo, proletária/decapitada Rosa Luxemburg, Karl Liebknecht e spartakistas entre a cruz e a espada , realizou-se pelo avesso: uma contra-revolução de cima, nazista/triunfante. A barbárie do Capital mobilizou em especial às classes médias intelectuais, inclusive e então levou ao holocausto. Mas os senhores já não têm o que aprender, só a ensinar. Que dizer?… À juventude se censura amiúde por acreditar que o mundo começa apenas com a mesma. Mas os velhos acreditam, ainda mais piamente, que o mundo finda com eles. O que é pior?. (Hebbel, Friedrich, citado por Gramsci, idem.)
NOTAS
[1] O Núcleo Dois tem coordenação de Sérgio Audi, Luiz Casado e Elidy Moreira. Surge para tratar das formas do teatro social, pesquisa sobre a prática do circuito popular de teatro desenvolvida pela companhia desde 1990, aprofundando a reflexão sobre a linguagem, gêneros, formatos de espetáculo e a comunicabilidade dos códigos utilizados na situação da formação de público. Este eixo de pesquisa pretende direcionar seus estudos visando aprofundar a experiência dos textos de Brecht e o estudo da arena como espaço de espetáculo, reflexões e ciclos de estudos sobre a função da arte no mundo contemporâneo, a ruptura, de perspectiva moderna, à luz do estudo do pensamento de Karl Marx. A primeira montagem foi A Exceção e a Regra, unindo o texto de Brecht à dinâmica do Teatro-Fórum de Augusto Boal. (Disponível em: http://www.fabricasaopaulo.com.br).
[2] Costa, Iná Camargo. Brecht e o Teatro Épico (Ciclo de Palestras Diálogos com Brecht). São Paulo, Cia. Teatro-Fábrica de São Paulo, 2005. Disponível em: http://www.fabricasaopaulo.com.br/download/brecht_1.doc.
[3] O argumento, contudo, não é inédito (a expropriação do trabalho alheio, aí sim, é indevida!). Segundo Schwarz (1999) baseado, este, em Adorno a obra de Brecht careceria hoje de revisão e crítica, dado que premissas centrais de seu trabalho teriam perdido força. Um pressuposto caduco seria o de que o mundo caminharia para uma ordem socialista. Outra premissa, referir-se-ia ao arsenal de técnicas épicas (ver Costa, 2005), que pareceriam desgastadas. Por fim, os recursos de ruptura da ilusão cênica (e, por extensão, política) tomados tal qual Brecht os compreendeu , supostamente deixariam de ser eficazes. Schwarz afirma também, no entanto, que o re-exame de peças isoladas pode reconduzir a bons achados: tal o ácido retrato de um capitalismo amoral, como que absoluto / isento de culpas e/ou recalque; como o exposto por exemplo em Santa Joana dos Matadouros (paródia da literatura clássica alemã, que a faz falar a jerga de businesmen). Tratar-se-ia de reduzir a verdadeira revolução de Brecht, estético-política, a mera questão de conteúdo não propriamente ético, mas tão-só moral. Ora, reduzi-la a isso a tornaria pó. Como dizia a nonna boa e velha: porca miséria.
REFERÊNCIAS
BOAL, Augusto. Arco-Íris do Desejo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
GRAMSCI, Antonio. Indifferenti, in: Cittá Futura, 11/feb./1917 (in: Scritti Giovanili 1914-1918. Torino: Einaudi, 1972). Exercício de livre-tradução de Roberto Della Santa Barros. Cotejado com a versão de P. C. U. Cavalcanti (Convite à Leitura de Gramsci. Rio de Janeiro: Achiamé, 1985) e conferido junto à tradução de C. N. Coutinho (Escritos Políticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004). Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/064/64tc_gramsci.htm.
SCHWARZ, Roberto. Os altos e baixos da atualidade de Brecht, in: Seqüências Brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.