Como centenas de famílias sem-teto transformaram um terreno abandonado em um bairro organizadoO terreno do Pinheirinho ocupa uma área de 1,3 milhão de metros quadrados na Zona Sul de São José dos Campos (SP). Local dividido entre condomínios de classe média alta e indústrias, que se aproveitam da Dutra e do fácil acesso a São Paulo e Rio. Um terreno cujo tamanho é equivalente a 130 quadras de futebol e que, há 40 anos, estava esquecido na periferia da cidade.

Até que, em fevereiro de 2004, a área foi ocupada por cerca de 300 famílias sem-teto, expulsas de um terreno no vizinho bairro do Campo dos Alemães. Nos anos seguintes, apesar de sucessivas ameaças de reintegração, o acampamento cresceu de forma exponencial, impulsionado pelo grave déficit habitacional na cidade.

Quando as primeiras bombas de gás lacrimogêneo caíram no Pinheirinho na manhã do último dia 22, quase 1,6 mil famílias viviam no assentamento, totalizando algo como 9 mil moradores, a maior ocupação urbana da América Latina. Nesses oito anos, as famílias transformaram o terreno em que só havia mato em um bairro, com ruas e a maioria das casas de alvenaria, comércio e até igrejas, sem qualquer apoio do Estado.

Quando o povo governa
“Aqui são os próprios moradores que se organizam”, explica Valdir Martins, o Marrom, um dos dirigentes da ocupação, em conversa com o Opinião Socialista, no Pinheirinho, um dia antes da barbárie perpetrada pela polícia de Alckmin. Naquele momento, diversos movimentos sociais, estudantes e ativistas prestavam apoio à luta dos moradores.

“As moradias aqui são divididas por 14 setores”, explicou Marrom, ressaltando que o Pinheirinho contava com uma organização superior a de muitas outras ocupações, até mesmo de outros países. “Temos reuniões de coordenação toda segunda-feira, tem reunião de setores toda terça e, todo sábado, tem uma assembleia geral, então falamos toda semana para milhares de pessoas”, explica, detalhando que os temas vão “desde as enchentes lá em São Bernardo até o que está acontecendo na Europa, no Oriente Médio ou a crise dos EUA”. Pelas regras do acampamento, todas as crianças eram obrigadas a estarem matriculadas em uma escola.

Os vários moradores que entraram no Pinheirinho após a ocupação foram expulsos de suas casas pelos alugueis cada vez mais altos. Outros, já viveram a experiência de antigas ocupações. O próprio Marrom já é experiente dirigente dos movimentos populares. “Comecei a atuar nas Comunidades Eclesiais de Base no Paraná, vim pra São José em 1976 pra estudar e virei metalúrgico, trabalhando na São Paulo Alpargatas”, conta.

A atuação sindical começou cedo e lhe rendeu uma demissão e várias perseguições. “No sindicato eu gostava de atuar junto aos trabalhadores das pequenas fabriquetas”, diz. São nas pequenas fábricas que as condições de trabalho são bem piores. Entre os principais dramas vividos pelos metalúrgicos, estava o da moradia. Marrom decidiu então se dedicar aos movimentos populares e foi liberado pelo sindicato para a tarefa. “É lá onde estão as pessoas pobres mesmo, as mulheres, os negros, os setores mais oprimidos da sociedade”.

Marrom afirma não prometer nada aos moradores, a não ser luta. “Dizem que pobre nasce apanhando e morre apanhando, aqui a gente muda essa história, se morrermos, vamos morrer lutando”.

Lutas e sonhos
O Pinheirinho, porém, é um lugar que se contavam não só relatos de luta e mobilizações. Reuniam-se incontáveis histórias de gente sofrida que encontrou lá uma oportunidade de construir sua vida e criar seus filhos. Como o jovem casal Priscila e Reginaldo, então moradores de um lote que batizaram de ‘Chácara do Ricardo’.

“Ricardo era o nome do irmão do Reginaldo. Ele morreu de câncer. O Reginaldo plantou o feijão formando o nome dele. Já está crescendo, dá para ver um pouco”, conta Priscila.

Reginaldo investiu todo o dinheiro de seu trabalho dos últimos anos na moradia. No amplo quintal, plantavam mandioca, melancia, cebolinha e banana. Viviam disso e da reciclagem. Em meio à terra, diversos brinquedos coloridos chamavam a atenção. É que, além da plantação, Reginaldo preparou o espaço para os filhos brincarem. Para Pablo, de três anos e a pequena Pâmela, com apenas um mês, quando crescessem um pouco.

Enquanto fechávamos essa edição, a ‘Chácara do Ricardo’ já era um amontoado de entulho, destruída pelas retro-escavadeiras da prefeitura.

Especulação destruiu o Pinheirinho
A violência da desocupação e a urgência com que a Justiça de São Paulo a garantiu, ignorando até mesmo uma decisão da Justiça Federal, assustou. Durante décadas aquele terreno esteve esquecido, por que só agora havia tamanho empenho para tomá-lo? Uma das respostas está no aumento brutal da especulação imobiliária dos últimos anos.
As terras alvo da disputa pertenciam inicialmente a uma família de alemães. Em 1969, os quatro irmãos da família Kubitzky foram assassinados em um crime nunca desvendado e não deixaram herdeiros. “As terras foram então griladas pelo Comendador Bento e, por meio de negociatas, acabaram parando nas mãos da empresa de Nahas, nos anos 1980”, explica ao Opinião Antônio Ferreira, o Toninho, advogado dos moradores do Pinheirinho.

A Selecta, por outro lado, sempre foi uma empresa de fachada. Contava com patrimônios que incluíam obras de arte, iates e terras na capital e Jaú, interior do estado. Faliu em 1989, quando Nahas quebrou a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. “O processo de falência já deveria ter terminado, todos os bens da massa falida já foram vendidos para pagar os credores, e não havia nenhuma dívida trabalhista, já que a empresa nunca teve funcionário”, explica Toninho. Além disso, acumula dívidas com o Governo Federal e Municipal, R$ 16 milhões só de IPTU.

Alvo da especulação, o terreno viu seu valor ser multiplicado por cinco nos últimos anos, sendo avaliado, agora, em R$ 180 milhões. Destruído, o Pinheirinho será, agora, entregue à Selecta e às empreiteiras.
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