Em primeiro lugar, é preciso dizer que “Simonal: ninguém sabe o duro que dei”, documentário dirigido por Cláudio Manoel, do grupo Casseta & Planeta, Micael Langer e Calvito Leal, é imperdível. Não só por suas qualidades artísticas, mas também pelo seu tema.

Quem ver o filme poderá entender por que Wilson Simonal (1938 – 2000), negro e filho de uma empregada doméstica, transformou-se, sem dúvida alguma, em um dos mais importantes cantores de nosso país. Aliás, mais do que um intérprete e compositor, Simonal foi um “showman”, capaz, como poucos, de cativar e empolgar o público com seu repertório ousado, onde samba, rock, música pop e influências diversas da música negra se encontravam e se renovavam.

Uma figura marcante, capaz de levar mais de 30 mil pessoas ao delírio num histórico show realizado no Maracanazinho, ou de manter espectadores grudados na tela, nas suas muitas aparições na televisão, durante os anos 1960. Um personagem tão influente que, diga-se de passagem, inspirou o nome de toda uma geração de jovens negros que nasceram naquela década.

Tudo isso está num filme primorosamente dirigido, recheado com depoimentos e imagens de época. E que, acima de tudo, não deixou de colocar o dedo numa das feridas ainda abertas dos tempos da ditadura: o envolvimento de Simonal com o famigerado Departamento de Ordem Social e Política (Dops), cuja repercussão fez com que o cantor “caísse em desgraça” no cenário musical brasileiro.

Genialidade artística e atrocidade política
Antes de entrarmos nesta história, cabe lembrar que genialidade artística, origem na pobreza e o fato de pertencer a um setor oprimido estão longe de servir como “vacina” ou atestado de isenção contra atrocidades políticas.

Apenas para citar dois exemplos mundialmente famosos, basta lembrar que o “doido” surrealista Salvador Dalí delatou o seu colega de movimento e cineasta Luis Buñuel, provocando sua demissão do Museu de Arte Moderna de Nova York, quando o último se encontrava exilado nos EUA e, depois, apoiou efusivamente a tirânica e sanguinária ditadura espanhola de Franco. Já o homossexual Marcel Proust, autor do fantástico “Em busca do tempo perdido”, nunca escondeu seu ultra-conservadorismo político.

Infelizmente, Simonal também merece local de destaque nessa infame galeria. Independentemente de “exageros” e da possível contribuição do racismo e do “preconceito de classe” (como veremos abaixo) nas dimensões que a história tomou, o fato é que o cantor foi diretamente responsável pela prisão e tortura de seu contador, Raphael Viviani, que, depois de mover uma ação trabalhista contra Simonal, foi acusado de roubo pelo cantor.

Isso em pleno ano de 1971, quando o mais canalha dos ditadores, o general Garrastazu Médici, promovia uma guerra de extermínio contra a esquerda brasileira.

O episódio está todo no filme, com um comovente depoimento de Raphael; falas de Jaguar e Ziraldo, que alimentaram a polêmica nas páginas do Pasquim e, inclusive, de gente (cuja postura política dispensa comentários) como Pelé e Chico Anysio, dentre outros. Estes tentam limpar a barra de Simonal, apontando um suposto “patrulhamento da esquerda” como responsável pelo tristíssimo fim da carreira do cantor, que nunca se recuperou do baque, tornou-se alcóolatra e morreu de cirrose num quase total esquecimento.

Talvez que seja daí que brote a maior força e beleza do filme. Ao contrário de se posicionar ao lado daqueles que, hoje, querem fazer uma revisão da história, chegando a falar numa tal “ditabranda” (irmã gêmea de perigosas bobagens como a tese de “racismo cordial” que circula pela mídia), “Simonal: ninguém sabe o duro que dei” pode ser visto como uma tentativa honesta de resgatar a importância artística do cantor e recolocá-lo na história da música brasileira, algo que fica particularmente evidente nas falas finais de seus filhos, os também músicos Max de Castro e Simoninha.

Um “alienado útil”
Apesar de também não ser enfático neste sentido, é possível ver no filme que o destino de Simonal foi traçado por ele próprio e teve origem numa outra “desgraça”: a alienação.

Na primeira cena em que o vemos, Simonal conta uma “piada” que é sintomática em relação ao quanto ele se rendeu à lógica do sistema: seu anjo da guarda teria lhe dito “ou vai ser alguém, ou vai morrer crioulo mesmo”. E sua obsessão por “ser alguém”, e não “um crioulo”, não tinha limites e lembra em tudo a trajetória dos atuais jogadores de futebol e pagodeiros.

A fortuna que ele acumulou nos primeiros anos de carreira foi gasta em carros de luxo, badalação, ostentação e loiríssimas acompanhantes.

Alienando-se de sua origem, de sua negritude e da própria situação política que o país atravessava, Simonal colocou sua genialidade e talento a serviço de quem ou daquilo que lhe pagasse mais. Algo que marcou, inclusive, parte de seu repertório e entrevistas, recheados de citações machistas, homofóbicas e, salvo raras exceções, totalmente equivocadas do ponto de vista racial.

Endinheirado, transformou sua origem pobre em arrogância; famoso e influente, preferiu a “pilatragem” à crítica; excluído socialmente, rendeu-se ao “ufanismo” da ditadura e, quando se viu ameaçado, buscou auxílio entre seus poderosos contatos.

O fato de que a ditadura tenha se aproveitado disso, principalmente através da figura do inspetor do Dops Mário Borges, que, em entrevista à imprensa, apontou Simonal como informante, não é de causar surpresa. A postura do cantor, ao não negar a história, mas pelo contrário, propagandear que “era assim com os homens”, é exemplar de sua alienação e irresponsabilidade.

Tributo e justiça histórica
Por fim, seria também irresponsável de nossa parte não lembrar que o fato de Simonal ter sido um negro que invadiu o mundo dos brancos, flertou com suas mulheres e alcançou um “status” inimaginável para o filho de uma empregada doméstica, em muito contribuiu para que ele tenha sido jogado para o limbo da história.

Isso, de forma alguma, pode ser utilizado como “justificativa” ou “desculpa” para o asqueroso papel que ele cumpriu, mas, justiça seja feita, não pode ser uma coincidência que um bando de outros artistas que tiveram relações ainda mais promíscuas com os militares tenham passado ilesos ao período democrático.

Melhor teria sido que Simonal tivesse deixado como herança apenas sua música suingada e sua genialidade como cantor. Mas a história não é feita de “se” ou “talvez”. Porém, também é feita de contradições.

E, neste sentido, Simonal foi um poço sem fundo. Algo que, no documentário, fica melancolicamente marcado em um de seus mais belos e constrangedores momentos.

Cercado de loiras bailarinas e tendo um “carrão” ao fundo, Simonal pede licença para dedicar uma canção que fez (juntamente com Ronaldo Bôscoli) para seu filho recém-nascido: “Tributo a Martin Luther King”. Uma música cuja letra, lamentavelmente, o próprio Simonal nunca assimilou:

Post author
Publication Date