Secretaria Nacional LGBT
Assim caminha a humanidade sob o capitalismo, desde sempre mergulhado na opressão e na hipocrisia.
Pra começar, somos “obrigados” a comemorar o fato de que, pela primeira vez, tenha rolado uma cena em que dois homens fazem sexo em canal aberto no Brasil.
“Obrigados” porque qualquer avanço que vejamos na representação de LGBT’s na mídia precisa, sim, ser saudado. Não como uma concessão, mas reflexo de décadas e décadas de lutas.
Como escrevi quando do “primeiro beijo gay”, os meios de comunicação são, invariavelmente e sempre, veículos ideológicos da classe dominante e, portanto, oscilam, num ritmo determinado (e ao mesmo tempo “distorcido”, já que influenciado por uns tantos e variáveis fatores) pela luta de classes.
Digo isto porque no momento em que vivemos (de aprofundamento da crise econômica e, consequentemente, marcado pela necessidade de também oprimir mais, para explorar mais), os constantes ataques conservadores têm sido insistentemente enfrentados por aquilo que chamamos de levante negro, primavera das mulheres e, no caso, rebeldia LGBT; o que tem imposto contradições tanto na luta de classes quanto nos movimentos. E também nos meios de comunicação.
A lamentável existência de um canal que praticamente monopoliza os meios de comunicação, a rede Globo (que, diga-se de passagem, não só passou ilesa pela chegada dos governos do PT ao poder, como foi agraciada, por Lula, com o perdão de uma dívida bilionária; tudo isto no caminho contrário ao do programa de democratização da mídia que construímos nos anos 1980) e seu principal produto, a telenovela, são exemplares neste sentido.
Não é coincidência que o beijo entre Félix e Niko veio com o gostinho das Jornadas de Junho. Já a censura à relação entre Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg ecoou, simultaneamente, a simples e nefasta existência de gentalha asquerosa como Bolsonaro, Malafaia, Cunha, Edir Macedo e toda a canalhada fundamentalista, e as ruas, os beijaços, o “Fora Cunha”. Refletiu a reação conservadora e a resistência a tudo isto.
Não dá pra menosprezar, também, que no centro das contradições está a essência do capitalismo: o lucro e o mercado. Não há um burguês em sã consciência que dê as costas para milhões de LGBTs e seus aliados, potenciais consumidores, que tomam as ruas nas paradas. Até mesmo porque encontram terreno fértil em paradas cada vez mais distantes de Stonewall e mais atreladas ao mercado pink e à lógica do turismo. O setor social e a raça dos personagens LGBTs que têm pipocado nas novelas é reflexo disto. A invisibilização e ridicularizaçao das/dos trans também é parte da mesma história.
E é preciso destacar que as urubúricas asinhas deste povo foram infladas pelos governos petistas. O kit anti-homofobia foi jogado no lixo como subproduto das negociatas pra salvar o pescoço corrupto de Palocci. O PLC 122, engavetado pra satisfazer os mesmos babacas. E tudo isto foi consequência da malfadada “Carta ao Povo de Deus”, a versão fundamentalista da conciliação de classes na qual o PT chafurdou sua própria história.
Então, a tão esperada cena de sexo na TV aberta (já tão comum em seriados e filmes destinados e acessíveis a setores da classe média) precisa ser, sim, saudada. Inclusive pela “coragem” dos atores. Mas é uma conquista nossa. Não uma concessão. Começou com o “direito” aos carinhos e carícias que conquistamos nos espaços públicos. Teve suas preliminares nos beijaços que estalaram nos cantos que se recusavam a conviver com a ideia de que qualquer forma de amor vale amar e se expressar. Esquentou com o calor do suor que tomou nossas peles passeata após passeata. Explodiu num delicioso grito de prazer quando ousamos superar os gemidos contidos e explodirmos desenvergonhados orgasmo.
Sim, foi um tesão. Sim, gozamos. Inclusive politicamente.
Mas, como disse acima, também tem muita hipocrisia (e, com certeza, terá ainda mais) envolvida nesta história. Primeiro da própria Globo e o fato de que, por exemplo, os capítulos das novelas de sábado continuarem sendo sucedidos pela nojeira LGBTfóbica, racista e machista da Zorra Total. Depois pelo escândalo que os conservadores farão. Hipócritas como são, é certeza que irão fazer barulho público, ao mesmo tempo que, na surdina, se excitam com as cenas “picantes” héteros que há muito invadem as novelas, em horários bem mais cedo do que vimos ontem.
Por fim, há a mais trágica delas. O silêncio impune diante da violência e assassinatos que nos cercam. Ainda estamos de luto pelos majoritariamente latinos LGBTs assassinados em Orlando. Esta mesma semana choramos com o espancamento da trans Viviany, nunca “perdoada” pela sua ousadia profana na Parada de Sampa, transformada em heresia medieval. Estamos ainda impactados pela morte brutal do Diego (no Rio, mas natural de Belém, de onde estou escrevendo) e do Léo, em Salvador. Ambos, diga-se de passagem, amigos de compas do PSTU.
Por isso, nossa satisfação por termos forçado a Globo a romper mais um “tabu” não pode só se expressar em gozo. Tem que se traduzir em luta para que toda e qualquer expressão de nossa sexualidade, contanto que não lese ou violente ninguém, como dizia uma lamentavelmente pouco conhecida resolução dos bolcheviques, em 1922, seja nada mais do que um direito diante do qual o Estado (obrigatoriamente laico) não meta suas mãos. Onde nossa liberdade comece exatamente onde começar a do/a outra. E não termine aí, como prega o individualismo tacanha do capitalismo.
Sim, homens e mulheres LGBTs também amam. Não somos”seres” hipersexualizados como querem e pregam os que tentam nos animalizar. Não somos doentes pervertidos e indecentes como querem nos pintar. Mas, sim, transamos.
E representar isto nos meios de comunicação, na cultura e na arte não é um atentado contra a sociedade. É parte dela. Está há séculos nas esculturas e quadros. Nas poesias e livros. E já estava mais do que na hora de aparecer nas telinhas. Quem não quiser ver é só zapear. Mas, é melhor se acostumarem. Não por causa da Globo, mas, sim, porque continuaremos lutando e na sociedade pela qual eu e tantos/as outros/as lutam isso será a regra, não a exceção. Uma sociedade que, na minha opinião, só poderá ser socialista. Não a tosqueira tacanha, censora, opressiva e repressora que foi o stalinismo. Mas, sim o verdadeiro socialismo.
Isso, sim, será liberdade, liberdade!!