No dia 12 de outubro, o cinema mundial perdeu um de seus mestres, o italiano Gillo Pontecorvo, um dos mais brilhantes representantes do chamado “cinema político”, que nas décadas de 1960 e 70, levou para as telas, das mais diferentes formas, a luta dos povos contra a exploração e a opressão social.

Apesar de afastado da direção cinematográfica desde os anos 80, Gillo Pontecorvo continuava a ser uma das principais referências sempre que o tema cinema e política viesse à tona. Uma fama construída principalmente a partir de dois filmes impressionantes e insuperáveis, tanto do ponto político quanto estético: “A batalha de Argel” (1966) e “Queimada” (1969).

Não foi um acaso que estes dois belíssimos filmes tenham sido realizados na década de 60. Afinal, foram anos marcados pela luta contra o imperialismo e colonialismo europeu, particularmente na África, na Ásia e no Oriente Médio; pelos ideais revolucionários que questionavam o poderio norte-americano de Cuba ao Vietnã; pela explosão da luta pelos direitos civis no próprio solo dos EUA e pela rebeldia da juventude que varria as ruas de Paris, do México e outros países.

Infelizmente, foram os anos em que os senhores do poder e do Capital responderam com golpes militares, repressão indiscriminada, torturas e assassinatos.

O brilhantismo de Pontecorvo residia exatamente em utilizar sua arte para representar esse mundo com uma força poucas vezes encontradas em outros cineastas. Sempre defendendo que o cinema deveria ser, acima de tudo, um instrumento de crítica, reflexão e interpretação da realidade, nunca uma forma de entretenimento esvaziada de sentido, o diretor foi um dos melhores exemplos de que, para atingir tais objetivos, não era necessário apelar ao discurso fácil, nem transformar seus filmes em “panfletos” destituídos de qualidade artística.

Poucas, mas vigorosas batalhas
A filmografia do Pontecorvo não é das mais extensas. Além dos dois filmes citados, o cineasta realizou cerca de outros 15 – como “A Grande Estrada Azul” (1957), “Kapò” (1959) e “O adeus a Enrico Berlinguer” (1984) – infelizmente, dificilmente encontrados no Brasil.

Mas suas obras-primas foram, de fato, “A batalha de Argel” e “Queimada”, filmes em que a câmera funciona como uma verdadeira metralhadora voltada contra a opressão e a exploração imperialistas e colonial.

Faces de uma batalha pela liberdade
Realizado apenas quatro anos após a independência argelina, conquistada em 1962, o filme de Pontecorvo tem, ao mesmo tempo, a força e peso da realidade que marcam os bons documentários e a expressividade e profundidade que só são atingidas pelos grandes artistas no cinema.

Filmado em preto em branco, em planos que se detêm nos detalhes de cada ação e, particularmente, nos rostos da população argelina, o filme é centrado na luta da Frente de Libertação Nacional (FLN) entre 1954 e 1960. Mesclando realidade e ficção, o filme é pontuado por seqüências inesquecíveis que evidenciam a posição política de Pontecorvo.

Já na primeira cena, vemos, em 1957, um argelino torturado, humilhado e desesperado sendo obrigado a revelar onde está um dos últimos dirigentes do levante iniciado três anos antes. A chegada dos militares ao local nos remete a 1954 e a uma Argel dividida entre o elegantíssimo Bairro Europeu e o miserável amontoado de casas no Casbah, o bairro muçulmano.

Foi mergulhando sua câmera por estas vielas que Pontecorvo construiu uma história incrivelmente tocante e, ao mesmo tempo, “didática” do ponto de vista revolucionário. Suas lentes e diálogos revelam as distintas táticas utilizadas pelos combatentes, o nascimento da consciência política, o debate entre aqueles que contrapõem “terrorismo” ou a ação de massas (representada através da poderosa greve geral que paralisou Argel, em 1958) como caminho para a revolução e, também, o que acontece do lado dos opressores: de suas táticas à exploração da morte de pessoas inocentes que residiam confortavelmente nos territórios ocupados.

Neste sentido, Pontecorvo produziu uma das melhores falas do cinema político mundial. Em março de 1957, Ben M´ Hidi (dirigente da FLN, preso e assassinado na prisão em um episódio semelhante ao de Vladimir Herzog, no Brasil) foi preso e apresentado à imprensa em uma espécie de “espetáculo”. Questionado por um repórter se não achava covardia utilizar-se de mulheres transportando bombas em cestas de frutas, M´Hidi responde: “Não é mais covarde atacar vilarejos indefesos com napalm que matam muitos milhares mais? Claro que usar aviões nos facilitaria muito a vida. Dêem seus aviões e podem ficar com nossas cestas”.

Para se ter uma idéia da força do filme, cabe lembrar que, em 2003, o jornal The New York Times revelou que o Pentágono o estava exibindo para seus oficiais para que eles estudassem os “desafios” que seriam enfrentados no Iraque.

Fogueira da hipocrisia
Igualmente imperdível é “Queimada”. Nele, o diretor criou uma fictícia colônia portuguesa no Caribe, para a qual Sir William Walker (Marlon Brando), um agente a serviço da Coroa Britânica é enviado com a missão incitar uma insurreição entre os negros cativos e extinguir a escravidão. Para tal, Walker encontra um aliado no carregador negro José Dolores.

No decorrer do filme se percebe que os objetivos de Walker nada têm a ver com a luta pela liberdade. Suas razões são puramente mercantis e se enquadram na política britânica no século 19: escravos não recebem salário e, portanto, não fazem parte do mercado consumidor, fundamental para a expansão política e econômica da Inglaterra. Uma “necessidade” que faz com que o personagem de Brando, simultaneamente, articule a tomada do poder da futura “nação independente” com a oligarquia açucareira.

Dez anos depois, os personagens centrais voltam à cena em papéis diferentes. Dolores transformou-se em um líder “guerrilheiro” e a oligarquia convoca Walker para auxiliá-los a deter a horda de homens e mulheres, livres, porém, miseráveis, que ameaçam seu poder.

Tão forte e complexo quanto “A batalha de Argel”, “Queimada” se debruça sobre os principais temas relacionados ao colonialismo nas Américas, da exploração capitalista, ao racismo; da covarde subserviência das elites locais à hipocrisia sem limites dos agentes imperiais.

Neste sentido, só se pode concordar com o crítico de cinema Luiz Zanin quando afirma que “em Queimada está em cena não uma representação de fatos históricos, mas o próprio modo de funcionamento da história”.

E assim foi todo o cinema de Pontecorvo. Indo muito além da simples representação dos fatos, seus filmes são compostos da mesma “matéria” que compõe a história: a luta. E foi exatamente através de filmes compostos pelo embate de planos e posições de câmera, silêncios e gritos, diálogos e músicas, que Pontecorvo deixou sua maior contribuição para a própria história e para a arte.

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