Soraya Misleh, de São Paulo

Oitenta e dois na Cisjordânia – com uma morte – e nove em Gaza, além de quatro presos políticos por Israel. Esses são os dados oficiais recentes sobre palestinos sob ocupação infectados pelo novo coronavírus, divulgados por várias organizações e mídias. A situação acendeu o alerta para calamidade iminente em situação de extrema vulnerabilidade, decorrente da colonização e apartheid a que estão submetidos os palestinos há 72 anos (desde a Nakba, a catástrofe com a criação do Estado de Israel mediante limpeza étnica planejada em 15 de maio de 1948). Não é diferente em relação aos 5 milhões de refugiados em campos no Oriente Médio, impedidos de retornar para suas casas e vivendo amontoados, em condições precárias.

Enquanto o Estado sionista segue em sua desumanização cotidiana, circulava na semana passada a fake news de que teria já desenvolvido a vacina para a Covid-19, a qual estaria disponível até maio próximo. A imagem de salvador de vidas diante da pandemia global apresenta-se como propaganda ideal para encobrir seus crimes. Mais uma em sua tática de aid washing (lavar de ajuda).

Na verdade, o novo coronavírus explicita ao mundo sua face cruel. Em meio ao “desastre de terríveis proporções” – como afirma a ONG israelense Bet´Selem –, símbolo do desprezo pela vida dos palestinos foi a ação contra um trabalhador palestino que apresentava possíveis sintomas de Covid-19. À suspeita do seu empregador israelense, a resposta de seus colegas militares foi jogá-lo na beira da estrada, “como lixo” – como noticiou o Monitor do Oriente Médio. Profissionais da saúde palestinos o recolheram e levaram a hospital em Nablus, na Cisjordânia. Seu teste deu negativo.
Outra mostra da desumanidade que permeia o regime de apartheid é a ordem de evacuação a palestinos do Negev [em árabe, Naqab] dada também em 24 de março para demolição de duas casas. Apesar do estado de emergência, segundo Suleiman Freehat, membro do Comitê Local do bairro afetado, Rakhma, a polícia israelense, juntamente com funcionários do Ministério das Finanças e do Fundo Nacional Judaico, invadiu a vila e ameaçou seus moradores. Segundo ele, as autoridades israelenses “não ofereceram assistência aos residentes para lidar com o surto de coronavírus”. É o que aponta o Monitor do Oriente Médio, que reportou o caso. “Enquanto isso”, afirma Freehat, “eles têm feito o possível para nos perseguir e ameaçar nossas vidas e lares diariamente” – noticia este portal.

A aldeia palestina no Negev é uma das centenas não reconhecidas por Israel em que não é permitida construção permanente ou sequer serviços básicos – as demolições e invasões são frequentes. Rotina que se mantém, como mostra esse caso, a despeito da pandemia.

Essa é uma das regiões em que se deu a limpeza étnica planejada em 1948 – quando, em localidades como Acre [Akka, em árabe], denúncias revelam que os sionistas contaminaram o aqueduto com bactéria causadora de tifo, provocando uma epidemia. Muito ao contrário da propaganda de salvador.

O desprezo à vida dos palestinos não é novo e é ainda demonstrado com outra medida em meio à pandemia atual: milhares de trabalhadores palestinos que enfrentam o controle em check point para servir de mão de obra barata no Estado sionista tiveram “permissão” para se alojar em Israel por pelo menos dois meses – na verdade, uma medida compulsória, já que não poderão retornar a sua casa no período, se quiserem manter o emprego.

A determinação é resultado de um acordo com a Autoridade Palestina (AP), criticada como gerente da ocupação sionista, sob o pretexto de impedir a transmissão de um local para outro. A tal da cooperação mútua tem sido elogiada pela mídia tradicional, mas não passa de mais uma ação entre tantas que demonstram o servilismo da AP – a qual foi criada a partir dos desastrosos acordos de Oslo entre a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e Israel em 1993, com dependência econômica integral e cooperação de segurança com a ocupação.

Embora a promessa israelense tenha sido de que os trabalhadores palestinos receberiam moradia adequada e que seus empregadores garantiriam condições sanitárias adequadas, os que se deparam com essa situação duvidam. Reportagem do Al Monitor, publicada em 20 de março, traz declaração de um deles, Taiser Abd el-Rahim, dada ao website Ynet: “Minha família está esperando que eu lhe forneça comida”, observando que ele “teria que cobrir o custo de suas acomodações do próprio bolso”. “Talvez meu empregador possa encontrar um lugar para eu [dormir] por uma noite ou duas ou três, ou até uma semana, mas mais do que isso, começará a custar caro a ele. No final, eu mesmo pagarei para garantir que tenha um lugar adequado para dormir. Nenhum dos trabalhadores que cruzam a fronteira se sente bem com isso. Todos eles têm pavor do vírus. É muito possível que daqui a três dias alguém seja infectado. Então, se voltar [para a Cisjordânia], toda a sua família poderá morrer”, conclui esse trabalhador palestino, que mora em Nablus.

Enquanto coloca em risco a vida dos trabalhadores palestinos, Israel – que conta mais de 3 mil casos de Covid-19 e 12 mortes – recomendou a quarentena a seus cidadãos e restringiu a circulação nas fronteiras.

A situação nas prisões
Nos cárceres israelenses, também, nada de novo sob o signo da ocupação. Grassa a negligência médica, que se estende às medidas anunciadas ante os quatro casos, transmitidos durante interrogatórios. Em risco, a vida dos 5 mil presos políticos palestinos, entre os quais 43 mulheres e 180 adolescentes e crianças – 26 menores de 16 anos. Conforme a Associação Palestina de Apoio e Direitos Humanos aos Prisioneiros (Addameer), “as prisões estão superlotadas, as salas, as células e as seções são pequenas e não possuem ventilação adequada … faltam esterilizadores, materiais de limpeza, medicamentos como antibióticos e nutrição necessária”.

Segundo a Rede de Solidariedade aos Prisioneiros Palestinos (Samidoun), a administração penitenciária israelense “proibiu os presos políticos palestinos de comprarem 170 itens diferentes na ‘cantina’ ou loja da prisão, incluindo produtos de higiene e limpeza”. Conforme a Sociedade dos Prisioneiros Palestinos, vegetais frescos e congelados, carne, peixe, óleo e ervas também foram retirados da cantina. Esta última entidade se mostrou apreensiva de que isso represente um novo ataque aos prisioneiros palestinos enquanto estão mais isolados devido à pandemia de coronavírus.
As organizações denunciam que, desta vez sob o pretexto da quarentena, Israel tem negado aos prisioneiros políticos palestinos visitas de familiares e advogados – mas não permite telefonemas, por exemplo. Ou seja, está usando a epidemia para ampliar a punição coletiva. A mesma medida não foi adotada em relação aos presos comuns israelenses. Quinhentos foram libertados e os demais agora têm recebido visitas separados por uma barreira de vidro – como sempre foi para os palestinos. As entidades explicitam ainda que a negação de acesso aos representantes legais não veio acompanhada do fim dos interrogatórios, que podem incluir tortura psicológica e física, como de praxe. Mais uma demonstração de que nenhuma dessas medidas tem razão minimamente humanitária. Também não foram suspensas transferências prisionais, que se dão sem qualquer precaução.

As medidas restritivas, ainda conforme as organizações, somam-se a outras que devem agravar a vulnerabilidade dos prisioneiros em suas celas superlotadas e sujas. Consultas médicas e exames foram suspensos, inclusive para os portadores de doenças graves e feridos. “Mesmo fora do contexto da pandemia da Covid-19, os prisioneiros palestinos enfrentam regularmente longos atrasos em busca de aprovação para o tratamento”, enfatiza a Samidoun, que completa: “Esse desrespeito israelense pela vida e pela saúde dos prisioneiros palestinos representa uma ameaça ainda maior na era da Covid-19, e a resposta israelense não fez nada além de reforçar essa realidade.”

Em seu chamado por respostas coletivas à pandemia, a organização Cientistas do Movimento da Juventude Palestina (SPYM) destaca que “o rigor científico deve incorporar uma compreensão das forças sistêmicas da opressão e da despossessão”. E enfatiza: “Devemos permanecer atentos a todos os indivíduos e populações que são estruturalmente privados dos meios necessários para diminuir sua exposição ao vírus e, em geral, de atendimento médico de qualidade. Os palestinos que continuam lutando contra a colonização sionista e a limpeza étnica, por exemplo, enfrentam acesso restrito a hospitais e não recebem o tratamento necessário devido ao maquinário brutal da ocupação militar, cerco e apartheid. A privação médica não é uma consequência incidental de um projeto colonial, mas uma medida inerente a esse sistema voltado para tornar a terra e a sociedade fatalmente inabitáveis ​​para a população nativa. (…)” Acrescenta, assim, que “além de restringir o acesso dos palestinos aos cuidados de saúde, o Estado sionista é o principal ator para conter as respostas emergenciais na Palestina”. Guardadas as diferenças peculiares a Israel e seu regime institucionalizado de apartheid, assim atuam também seus aliados Bolsonaro e Trump, respectivamente no Brasil e nos Estados Unidos.

Na mesma linha, o SPYM ressalta: “Sabemos muito bem que a Palestina ocupada e os campos de refugiados ao redor compartilham condições semelhantes causadas pela colonização e cerco. (…) Enquanto lutamos para impedir a disseminação do coronavírus entre nossos espaços, não podemos esquecer a situação das populações mais necessitadas e vulneráveis, desde palestinos e refugiados presos e colonizados até famílias sem documentos, brutalmente forçadas a campos de concentração na fronteira EUA-México, onde as crianças são separadas à força dos pais e enjauladas em salas geladas e mal-iluminadas, em meio a negligências médicas e falta de recursos. Além da atmosfera de prisão dos centros de detenção, voltados para incutir medo desenfreado, terror e sofrimento entre os indocumentados e promover efetivamente a limpeza étnica por meio de um processo estruturalmente imposto e obrigatório de separação familiar, cujos impactos sobre as vítimas são muitas vezes irreversíveis, não podemos esquecer as condições deploráveis ​​das prisões norte-americanas, que abrigam algumas das populações mais precárias e carentes e são igualmente predispostas estruturalmente ao aumento do risco de infecção. Ironicamente, o trabalho nas prisões é usado para fazer os mesmos desinfetantes e máscaras faciais que muitos indivíduos estão acumulando na tentativa de compensar a ameaça de infecção.” A situação nos Estados Unidos não é exceção, como observa o SPYM, frente ao encarceramento em massa “de comunidades marginalizadas sujeitas a padrões racializados e coloniais”. “Prisioneiros e detidos – incluindo aqueles mantidos em campos e centros de detenção por procurar migrar ou encontrar segurança – são pessoas extremamente empobrecidas e da classe trabalhadora sujeitas aos estragos do capitalismo, bem como à desumanização das prisões”. A organização conclui: “Em lugar do interesse próprio, devemos insistir (…) em uma consciência ética e estrutural de como o capitalismo, o colonialismo e o imperialismo se cruzam e se tornam ainda mais brutais em tempos de crise global.”
As organizações reivindicam ação das distintas organizações, como Cruz Vermelha, além de fortalecimento da solidariedade internacional neste momento, pela libertação de todos os presos políticos palestinos, os quais ameaçam entrar em greve de fome. Desde a semana passada, alguns já começaram a recusar refeições e no dia 25 um deles ateou fogo a sua cela em protesto. São, como corroboram as entidades, a expressão da situação de seu povo, mas também da resistência.

(O documentário “Gaza” ilustra muito bem o cotidiano vivido pela populaçao de Gaza. O documentário venceu o prêmio Goya em 2019)

Coronavírus em Gaza
Em outra prisão – a céu aberto –, a faixa de Gaza, o prenúncio de calamidade. A última informação, divulgada pelo jornal Haaretz, em 27 de março, é de nove infectados por Covid-19. Os dois primeiros casos confirmados foram de palestinos que retornaram do Paquistão. O cenário devastado por quase 13 anos de bloqueio israelense desumano e bombardeios frequentes aponta para a vulnerabilidade extrema dos 2 milhões de palestinos que vivem na área mais densamente povoada do mundo.

Num quadro de extrema pobreza, dependência de ajuda humanitária, infraestrutura destruída, apenas quatro horas de eletricidade por dia, 96% da água potável contaminada, em que a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece que o sistema de saúde local é incapaz de lidar com a pandemia, diante de seu colapso, manter o cerco israelense é criminoso. A estreita faixa vem tomando medidas para conter a propagação do novo coronavírus, mas as consequências do bloqueio e sua permanência precisam ser revertidas imediatamente para impedir que os palestinos enfrentem mais uma tragédia.

Segundo matéria do G1, publicada em 23 de março, “pelos cálculos do diretor do escritório da OMS em Gaza, Abdelnasser Soboh, o território seria capaz de absorver apenas os primeiros cem casos da doença e, assim mesmo, de forma gradual: do total de 62 respiradores, apenas 15 estão disponíveis”. Faltam medicamentos, equipamentos e hospitais. Enquanto isso, Israel tem feito com que trabalhadores de Gaza produzam máscaras para suprir o Estado sionista.

Se o cerco desumano e a ocupação destruíram a infraestrutura e a assistência adequada, Gaza apela, nas palavras do colunista Ramzy Baroud, para a “essência de ser palestino”, que inclui não só a resistência heroica, mas a compreensão da importância da solidariedade internacional. Mais do que isso: urgência. O fim do bloqueio israelense à estreita faixa e, nesse marco, a libertação da Palestina, do rio ao mar, são questão de vida ou morte.

Em Bethlehem, na Cisjordânia, em que há 17 casos confirmados de Covid-19, palestinos ergueram bandeiras italianas. Agora é a hora de todos erguerem, do alto de suas janelas, também a bandeira da Palestina, símbolo de todas as lutas justas contra a opressão e exploração. Pelo fim da ocupação, do apartheid, do racismo e da colonização. Vidas palestinas também importam.