Julio Cortázar, escritor argentino

Se estivesse vivo, o escritor argentino, Julio Cortázar, teria completado 90 anos, no dia 26 de agosto. Autor de uma obra que rompe as fronteiras entre a realidade e a fantasia, Cortázar é um dos grandes nomes da literatura latino-americana e mundialEm 1967, em um comovente texto sobre a morte de Che Guevara, Cortázar escreveu uma introdução pedindo que fosse o próprio Che a conduzir sua mão no momento da dolorosa despedida. Um pedido sobre o qual ele próprio afirmou: “Sei que é absurdo e que é impossível, e por isso mesmo creio que ele escreve isto comigo, porque ninguém soube melhor até que ponto o absurdo e o impossível serão um dia a realidade dos homens”.

E se é verdade que Che, como todos os revolucionários, é exemplo daqueles que dedicam sua vida à arte de transformar aquilo que todos consideram “absurdo” e “impossível”, Julio Cortázar foi um dos que melhor soube levar para a arte um universo que desafia a existência de fronteiras entre a realidade e a fantasia.

Nascido em 1914, na Bélgica, onde seu pai exercia cargo diplomático, Cortázar mudou-se com quatro anos para a Argentina, onde viveu até 1951, quando deixou o país devido a divergências com o peronismo. Viveu em Paris até sua morte, em 1984, deixando-nos uma obra considerada herdeira do realismo fantástico de Jorge Luis Borges (O Aleph) e de Gabriel Garcia Marques (Cem Anos de Solidão), mesclada, ainda, com a influência dos surrealistas franceses e com as concepções da filosofia oriental.

Labirintos criativos

Optando por narrativas curtas (numa mistura de gêneros que vai dos contos à poesia, passando pelos ensaios teóricos, às vezes, presentes, juntos, em um único texto), Cortázar desenvolveu uma forma de escrita que tem como principais marcas a participação ativa dos personagens e do próprio leitor (dando a eles “poder de escolha”), a exploração do subconsciente e a permanente mutação da realidade que, quase sempre, nunca é o que parece ser.

É esta concepção que atravessa livros como Bestiário (1951), As Armas Secretas (1959), Os Prêmios (1960), O Jogo da Amarelinha (1963), 62: Modelo Para Armar (1968), Octaedro (1974) e Livro de Manuel (1973), dentre muitos outros.

O Jogo da Amarelinha foi um dos que mais causou impacto. Visto inicialmente como um livro “difícil”, devido às técnicas inovadoras que Cortázar usou, é hoje considerado uma das obras-primas da literatura latino-americana. Descrito como um “labirinto literário”, o livro de Cortázar discute os questionamentos mais profundos da humanidade, seus conflitos, dúvidas e paixões em um texto que, para espanto de muitos, pode ser lido de diversas formas, à escolha do leitor.

Fundamental em relação à produção e às idéias do autor, Octaedro é símbolo da rebeldia de Cortázar contra o mundo concebido com base no pragmatismo e na lógica conformista e alienada (ou seja, capitalista) imposta pela mesmice do cotidiano. O título decorre não somente do fato do livro conter oito contos, mas, sim, da idéia principal que percorre cada um deles: este é mundo que precisa ser visto e vivido a partir de vários ângulos e diferentes realidades, sendo que nenhuma delas pode ser considerada absurda, ou não mais absurda do que a própria realidade em que vivemos.

Jogos ao ritmo do jazz

A dimensão política da realidade aparece praticamente na totalidade da obra do escritor sempre sob um ponto de vista tipicamente “cortaziano”. É assim em O Exame Final (1969), que transcorre num clima absurdamente fantástico: enquanto jovens vagam pelas ruas de Buenos Aires, “assombrados” pela presença de um amigo desaparecido, políticos tentam dopar, com palavras sem sentido, uma massa que se comprime na Plaza de Mayo.

Igualmente intrigante é o mundo que surge nas páginas de O Livro de Manuel. Escrito quando o peronismo estava reassumindo o poder na Argentina, o livro tem como foco a América Latina e sua situação política. Na história, empurradas de um lado para o outro por sistemas e regimes distintos, mas igualmente absurdos, pessoas são obrigadas a participar de um jogo cujas regras não podem ser entendidas, muito menos desobedecidas.

Cabe lembrar que os direitos desse livro foram integralmente doados para grupos chilenos que resistiam ao golpe de Pinochet. Exemplo de que Cortázar, ao contrário da maioria dos intelectuais, não se recusou a assumir um lado na luta de classes (apesar de suas opções políticas questionáveis): foi um dos primeiros a visitar Cuba, depois da revolução, envolveu-se ativamente em organizações que lutavam contra as torturas e assassinatos na América Latina (o que lhe custou uma proibição de voltar à Argentina, mantida até 1983) e doou parte dos direitos autorais de seus livros para os familiares de presos e desaparecidos e, no final da vida, aos sandinistas.

Cortázar se voltou contra o que a literatura possa ter de conformista e conservadora e criou uma obra que muitos relacionam ao jazz, naquilo que ele tem de improviso e riqueza de ritmos. O autor argentino, desde seus primeiros livros, como Divertimento (1949) e Rayuela (1963), não só revela o absurdo em que se constitui a realidade atual, mas também nos lembra da possibilidade de sermos jogadores atuantes em qualquer situação, por mais absurda que pareça. Basta acreditar nos sonhos, como dizia Lenin, ou não se esquecer que mesmo aquilo que todos consideram impossível pode ser transformando em realidade.
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