Henrique Canary, da Secretaria Nacional de Formação

As religiões mundiais sempre disputaram as almas mundanas de distintas formas. Algumas, como o judaísmo e o islamismo, impunham sua doutrina através de um sistema de vigilância e punição, em que a lei divina era base da vida e da conduta. Já o cristianismo iniciou uma nova dinâmica na história das religiões ao basear sua doutrina em uma prática positiva, o amor ao próximo e, como recompensa, a vida eterna no paraíso ao lado dos seus e sob a proteção eterna de Deus.

Mas nenhuma dessas religiões, surgidas ainda quando o mundo só conhecia o comércio regional e a acumulação mínima de riquezas, poderia de fato corresponder às relações econômicas de uma sociedade capitalista. Judaísmo, catolicismo e islamismo não tinham, nem poderiam ter, dogmas que regulassem a acumulação capitalista que ocorreu a partir do final do século XV.

Assim, junto com o desenvolvimento do comércio mundial e das grandes cidades manufatureiras, surge o protestantismo e suas diferentes ramificações.

Diferentemente do catolicismo, o protestantismo oferece aos puros de coração e tementes a Deus não só a vida eterna e o reino dos céus, mas também a possibilidade de acumular livremente riquezas materiais e usufruí-las em vida. Para a doutrina protestante, o bem-estar material do homem é um sinal de que Deus está feliz com seus atos e resolveu recompensá-lo.

Com o desenvolvimento do capitalismo, todas as religiões assumiram, em maior ou menor grau, uma forma-mercadoria. Quem liga a TV nos diferentes canais religiosos percebe que o reino dos céus há muito deixou de ser a única recompensa para os fiéis.

As distintas seitas resolveram apostar na antecipação dos prêmios para disputar as almas disponíveis no mercado. Junto com o reino dos céus, oferecem dinheiro, um novo emprego, um bom marido, a fidelidade da esposa e uma vida feliz para toda a família. Ao invés do inferno como castigo, aterrorizam os infiéis com idéias sobre o olho-gordo, a falência da empresa e o envolvimento dos filhos com as drogas.

Mais do que isso, para disputar o enorme contingente de almas pobres, desoladas, exploradas, desesperadas e arrasadas pela miséria capitalista, as religiões apostam em novas “estratégias de marketing”, como se diz hoje em dia.

A revista Época trouxe na capa a foto de Raica Oliveira, símbolo de sucesso e beleza segundo os padrões de mídia vigentes, modelo internacional e namorada de Ronaldo, o “Fenômeno”. Na reportagem intitulada “O novo espiritismo”, a revista afirma: “Pode-se dizer que o rosto de Raica, uma das mulheres mais bonitas do país, é a face-símbolo de uma nova fase na religião. Esqueça os copos que se movimentam sozinhos sobre a mesa branca, as operações com canivete e sem anestesia do médium Zé Arigó e as sessões de exorcismo coletivo transmitidas pelo rádio”.

Como tudo no mundo capitalista, a religião, além de ser uma das mais poderosas formas de dominação ideológica, se transformou em mais uma mercadoria que se torna mais ou menos atrativa ao consumidor de acordo com as vantagens que oferece. Época continua: “‘Do que mais gosto na minha religião é a idéia de que podemos sempre voltar à Terra de novo e aperfeiçoar nosso espírito’, diz Raica, o rosto do espiritismo jovem. ‘Sempre temos uma segunda chance’”.

O que as religiões não oferecem, e nem podem oferecer, é a solução real dos problemas sociais e econômicos enfrentados pelas pessoas em sua vida presente. Ao contrário, as igrejas e seitas apostam no aumento da miséria material da maioria da população para seu crescimento numérico e financeiro. A juventude, maior atingida pelo desemprego e pela violência, é a vítima preferencial dos mercadores de alma dos dias atuais. As religiões continuam vivas e fortes, mais pela miséria espiritual da sociedade capitalista do que pela força e coerência de seus sistemas teológicos.

Em um mundo onde a AIDS cresce e dizima países e povos, a Igreja Católica proíbe a seus fiéis o uso da camisinha. Em um mundo onde a opressão das mulheres é a marca da sociedade, o islamismo perpetua essa opressão com normas estritas de comportamento familiar e convívio social.

Foi-se o tempo em que as religiões poderiam, sob circunstâncias especiais, cumprir um papel progressivo. A ascensão de Joseph Ratzinger, antigo colaborador da Juventude Hitlerista, por exemplo, ao trono papal foi o golpe final nos setores progressivos da Igreja Católica, ligados à Teologia da Libertação e aos movimento sociais das décadas de 70 e 80.

A lógica passiva da religião é oposta ao espírito contestador e revolucionário da juventude. Não é à toa que uma das maiores queixas dos teólogos de plantão seja a “falta de religiosidade” da juventude. As religiões se adaptam aos novos tempos, reescrevem suas bulas e encurtam suas vestes tradicionais, sempre na busca dos corações mais jovens e sinceros, mas nunca perdem a sua essência: a pregação da submissão do homem a uma força estranha e superior a si próprio, que, apesar de ser fruto de seu cérebro, o domina e o faz curvar-se. Tal realidade é até certo ponto inevitável. Enquanto alguns homens se curvarem diante de outros homens, não há razão nenhuma para que não se curvem também diante de deuses, santos, anjos, demônios e profetas.

Temos um grande respeito por todos que querem transformar a sociedade e são religiosos. São distintos dos que utilizam as religiões para manter a dominação da burguesia. Não podemos, porém, deixar de falar da interpretação marxista da religião.

A revolução socialista dará ao homem o pão e a paz prometidos pelas distintas religiões há milênios e promoverá a completa separação entre o aparelho de Estado e os interesses das igrejas. Fé e religião serão tratados como assuntos estritamente íntimos e não mais como um assunto de Estado. Assim, sem recorrer a nenhum tipo de medida repressiva, o governo socialista dissolverá as bases materiais sobre as quais se assentam as igrejas e seitas: por um lado, a miséria absoluta e o desespero espiritual da maioria esmagadora da população e, por outro, o gordo financiamento, direto ou indireto, das igrejas por parte do Estado.

O socialismo, ao promover a completa libertação material e espiritual do homem, provocará a lenta e gradual desaparição do sentimento religioso como sentimento de submissão e passividade diante de algo superior. Do sentimento religioso, restarão somente seus princípios sociais positivos: a bondade, a solidariedade, a harmonia com a natureza, a igualdade e o amor.

Como dizia Marx, é a realidade que precisa ser primeiramente revolucionada para que se revolucionem as idéias. E adendava: “A religião é o suspiro da criatura aflita, o estado de ânimo de um mundo sem coração, porque é o espírito da situação sem espírito. A religião é o ópio do povo”. Raica Oliveira não é somente um símbolo de juventude, sucesso e beleza. É o símbolo de uma sociedade enganada.

*escreve nesta coluna sempre que o assunto é polêmico

Post author Henrique Canary*
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